CRONICONTOS



Valdivino Braz - acervo do autor

 Na linha do trem




                                             Valdivino Braz


Ele estava lá, na venda, a poucos metros da linha de ferro que cortava o poeirento subúrbio, e por onde os trens passavam apitando ao aproximar-se dos cruzamentos de ruas com a linha, para que as pessoas não os atravessassem naqueles momentos. A passagem veloz dos trens, bólidos disparados, com o impacto de seu peso e das rodas sobres os trilhos, como que sacolejava a terra, fazendo tremular coisas — vasilhas, panelas e outros utensílios — nas prateleiras das casas. O ruído ensurdecedor, com efeito, parecia que não só se repercutisse no ar, mas também ressoasse chão adentro da casa, ao que até o telhado trepidava; ou fosse que a casa então se assemelhasse a um velho caminhão de mudança, escanhotado, aos sacolejos por trechos irregulares de uma rua sem asfalto.

E lá estava ele, aquele homem, na venda, pelo meio da tarde, a beber, pausadamente, seguidas doses de cachaça. Silencioso, sombrio, pensativo, com um semblante tristonho e o olhar perdido para além do barranco à beira dos trilhos de ferro. Por certo que fitasse um ponto indefinido a outros homens naquela venda, porém fixo ou nítido para si, e ele por aí se abstraísse com o seu sorumbático silêncio. Perdido em pensamentos, como se dizia. Ou em “cinco sentidos tristes”, no dizer das cartomantes ao lerem a sorte de alguém e, na sequência reveladora das cartas do baralho — “as cartas não mentem” —, apondo sobre a mesa o naipe do cinco-de-paus, tomado por sinistro. Indício ou prenúncio de algo fatídico, infortúnio, desgraça, tragédia. “Infeliz no jogo, infeliz no amor”. A vida altera seus próprios ditados.

Ali, pois, mergulhado no fundo de algo doloroso, que não se expressa, não se verbaliza, mas transparece sombreado no rosto de sua dor, provinda de um sofrimento profundo por demais. Pesadume. Uma tristeza que emerge à tona dos olhos, ditos “espelhos da alma”, e aí permanece, como se a peso de chumbo, na água cinzenta em que o ser sofredor se afunda e se dilui em um surdo estado de choro. Um choro que evita ou tenta não se mostrar, mas paira no olhar pesado de dor.

O sol de agosto era de estalar as vagens secas dos pés de fedegoso que cresciam rarefeitos pelos barrancos, ou em meio ao capim-jaraguá às margens e ao longo da linha de ferro. Nas curvas da linha, o capim alto inclinava-se tal uma cabeleira verde ou ressequida, conforme fosse o clima. (“Para cabelos ressecados e quebradiços, use Extrato de Quiabo com Queratina. Queratina é ideal no tratamento de cabelos fracos. Queratina rejuvenesce seus cabelos”. O anúncio vinha do rádio da venda, regulado em médio volume, nos intervalos de dolentes canções. Lá então, anos 50, para fortalecer as raízes capilares e amaciar os cabelos, as mulheres usavam o óleo de rícino, o azeite de oliva e quejandos que lhes fossem indicados). O calor intenso daquele mês poeirento debulhava também os frutos ressecos das mamoneiras e dos pés de pinhão encostados nas cercas em torno das casas. Precárias cercas de arame e taquara, ou de varas comuns, a delimitar os domínios dos casebres, alguns deles habitados pelas famílias dos ferroviários, funcionários da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.

Quieto lá no seu canto, sentado num tamborete, o homem bebia e, vez em quando, vinha até a porta da venda e olhava à sua direita, perscrutando a distância; depois voltava e se sentava novamente, pedindo outra dose de pinga. No espaço de pouco movimento àquela hora da tarde calorenta, e além do dono da venda e do homem silencioso, havia apenas dois outros fregueses, por certo que sexagenários, escorados num canto do balcão e desfiando uma prosa demorada, de cabelos brancos. Também eles observaram com certa curiosidade o homem ali calado. O dono do comércio, uma vez até tentou puxar dedo de prosa, mas o estranho meio que apenas sussurrou, dando mostras de que não estava a fim de conversa, e foi deixado em paz, se é que paz havia no interior de seu enigmático silêncio e de sua sombria solidão.

Por volta das quatro horas da tarde ou pouco mais, com aquele sol de rachar mamona, a notícia correu pela vizinhança e se alastrou pelo bairro. O trem acabara de pegar e matar alguém. E outro não era — já se deduz — senão aquele homem tristonho na venda, que lá só estava e bebia enquanto esperava. Esperava pelo passar das horas. Esperava pelo trem. E quando este surgiu numa meia-curva da linha férrea, o homem já tinha retirado do bolso umas notas amarrotadas e acertado a conta com o dono da venda, a seguir deixando o estabelecimento. O dono e os dois velhos chegaram até a porta e viram-no cambalear ligeiro em direção à passagem de rua que cruzava a linha de ferro. Ouviu-se o comboio, um trem de carga, se aproximar, célere, e apitar insistentemente. Se houve grito, ninguém ouviu, a rolagem do trem e o apito agudo abafaram; ao certo que nem houve tempo para gritar.

O trem parou lá mais adiante do ponto fatídico, e logo, como de costume em tais ocorrências, foi juntando gente curiosa no local. Metade daquele homem, da cintura para baixo, ficou para trás, largada de viés à margem da ferrovia. E o tronco arrastado se encontrava mais adiante. A camisa toda aberta, esfiapada, expondo o peito magro; os braços dobrados nos cotovelos, voltados para cima e enrijecidos, com os punhos cerrados; os olhos estatelados e a boca escancarada — o grito? A expressão do rosto — como descrevê-la? — congelada como se num misto de espanto e contração de dor, inesquecível para quem o tenha visto. O rosto morto, impressionante, de um homem de uns trinta e poucos anos.

A multidão ali, pra lá e pra cá, em torno da tragédia, das partes separadas do morto e dos argumentos do maquinista. Comentou-se que o tresloucado gesto do homem teria sido por causa de mulher, paixão por uma prostituta, certamente dos cabarés ali das redondezas mesmo. O dono da venda disse ter observado que o freguês parecia entristecer-se mais ao ouvir do rádio certas músicas de amor infeliz; então contraía o semblante e emborcava na boca o copo de cachaça. E que, a certa altura, num gemido, o estranho teria sussurrado um nome de mulher — não deu para ouvir claramente — e usado a palavra “puta”.

O triste fim daquele homem desconhecido. Enquanto a polícia com a perícia não chegava para as providências de praxe, a tarde abafada foi se fechando. Aos poucos, insinuava-se o crepúsculo, alterando, com um céu amarelado, mortiço, o cromatismo do funesto cenário. E ainda por ali as pernas sozinhas do morto, de peito aberto o tronco solitário; a expressão escancarada do rosto sofrido, transfigurado, como se perplexo ao violento encontro com a morte, por suposto que, de resto, procurada. O trágico fim da linha, partida ao meio, na exata linha do umbigo. Na linha do trem, tal como, nas linhas da mão, a linha da vida. De tristes amores, o destino de tristes amantes, diria a ele a ledora de sorte; mas não disse. O cinco-de-paus sobre a mesa. Cinco sentidos tristes.


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Na linha do trem, baseado em fato real, foi vencedor do 53º Concurso Sesi Arte e Criatividade (Goiânia, julho, 2017), juntamente com, também do autor, o imagético poema  A Lua no Milharal..

Valdivino Braz é jornalista aposentado, escritor e poeta. Publicou 17 livros: romances, contos e poemas. — nove de seus livros são premiados em concursos, entre eles o Concurso Nacional de Poesia Cidade de Belo Horizonte (MG), em 1992, com o livro A Trompa de Falópio — Rapsódia de Homero Canhoto. Braz acaba de publicar um novo livro, O Cos Iluminado, de poemas.













2 comentários:

  1. Gostei muito, Valdivino Braz! "Quieto lá no seu canto, sentado num tamborete, o homem bebia e, vez em quando, vinha até a porta da venda e olhava à sua direita, perscrutando a distância; depois voltava e se sentava novamente, pedindo outra dose de pinga."... Enquanto se preparava interiormente, para encerrar de vez, com esse sofrimento profundo, advindo da alma!

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