Mahmud Darwish - Poema

Mahmud Darwish


















Eu venho do outro lado



Eu venho do outro lado
Eu venho do outro lado e não tenho memórias
Nasci como os mortais, eu tenho uma mãe.
E uma casa com muitas janelas,
Tenho irmãos, amigos.
E uma cela com uma janela fria.
Minha é a onda, quebrada pelas gaivotas,
Tenho minha própria visão,
E uma muda extra de grama.
Minha é a lua no limite distante das palavras,
E a recompense dos pássaros,
E da imortal oliveira.
Eu caminhei por este continente antes das espadas
Tomarem o corpo vivente das sagradas escrituras.
Eu venho do outro lado. Represento o céu exteriorizado em sua mãe
Quando o céu a martiriza
Quando me puno para meu próprio aprendizado.
Para uma nuvem retornando.
Eu aprendi todo o valor das palavras no galanteio do sangue
Então eu pude exceder a regra.
Eu aprendi que todas as palavras se sacrificam
Para formar uma única palavra: pátria…


Tradução de Fábio Vieira
Imagem retirada da Internet:

Francisco Perna Filho - Poema


























Cântico do amor maior
                                 


Valho-me do acaso,
para ver no teu sexo,
o nexo da vida

São compridos os meus olhos
para lá das esquinas,
dos semáforos,
dos destinos.

Percorro teu trechos,
tuas curvas,
para sorver os teus frutos,
ainda tenros, quando chego;
maduros, quando findo.

Carol dos Anjos - Ensaio Poético



Bons Dias?!


A parafernália toda posta com porcas, parafusos e gente. Tudo de forma sistêmica que manipula qualquer mula que se recusa a pensar em sua própria existência. E ainda que se tente pensar é foda, porque as estruturas estão introjetadas. Não nos ensinam o que somos e sim exatamente o que não devemos ser. De uma forma tão maniqueísta que toda possibilidade do ‘vir-a-ser’ é errada e deve ser incluso fora desta.

Todo grito que acredito ser explosão, não passa de uma repercussão esperada para ser enquadrada como peça da engrenagem. Revolucionária e reacionária se confundem para além da cacofonia política...

Meus derrames semânticos e delírios léxicos ali postos completos, mas nunca nus... Olhos sempre com pus. O cisco do seu olho a trave do meu. Sangrando, pulsando corações que gritam... Somos filhos quentes de uma guerra fria, tentando virar gente. Entre o mal escrito e ‘mal dizido’ constituímo-nos filhos de pais presentes na indústria cultural maternalmente econômica.  Gosto sem gosto de um narciso sem espelho e maldizente transitando em ruas muito bem sinalizadas... Que é para não errar o caminho.

... Tudo sordidamente concatenado e (é) claro como a poluição. Chaminés... Nossas bocas e cigarros imitam-se... Novela, cinema e a própria vida plástica da modernidade liquida. Sonhos de Odara! Aqueles que aprendemos ter dentro das probabilidades de ser.

Eu, tu, nós, eles... Já nem sei que pronome usar quando me vejo lá dentro. O cheiro de cores e os desencontros casuais.

Me vejo no seu rosto de pierrô e vouyer, sou uma legião de ex, de pré e sou. Encontramo-nos no nó nu da clarabóia de muitas janelas.

Pensava em tudo isto antes de lhe responder o Bom Dia que me dera entre os dentes, como frase solta em meio à multidão de cordialidades hipócritas... As aparências...

- Não vou mais desperdiçar bons dias...

Imagem retirada da Internet: people

Milton Hatoum - Crônica


Livros de verão e literatura de verdade



Há poucos meses, na Feira do Livro de Guadalajara, vi uma cena que, de algum modo, diz muito sobre a literatura e a solidão, essas irmãs siamesas.
A Feira estava cheia de gente, mas não necessariamente de leitores. Ao visitar o estande de uma editora, vi um escritor de língua espanhola, sentado diante de uma mesinha, à espera de leitores. Ele tinha um ar desolado e conversava com uma mulher. Quando eu passava perto dos dois, ele perguntou à mulher onde estavam os leitores. Ela sorriu e apontou para uma fila de leitores excitados, que queriam comprar a edição espanhola de Cinquenta Tons de Cinza, o best-seller do momento.
É improvável que os leitores dessas historinhas de sexo e violência - ou sexo com violência - leiam romances de Conrad, de Dostoievski ou de Graciliano Ramos. Quantos se aventuram a ler Coração das Trevas, Crime e Castigo ou Infância? Para a maioria dos leitores, um livro de ficção é puro entretenimento, algo que não convida a pensar nas relações humanas, no jogo social e político, na passagem do tempo e nas contradições e misérias do nosso tempo, muito menos na linguagem, na forma que forja a narrativa. Talvez por isso o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez tenha afirmado que a poesia é a arte da imensa minoria. Isso serve para a literatura e para todas as artes. Os poucos, mas felizardos espectadores da peça O Idiota, dirigida por Cibele Forjaz, sabem disso.
Flaubert costumava lamentar a época em que viveu: a crença entusiasmada e cega no progresso e na ciência, as batalhas fratricidas na França, a carnificina das guerras imperialistas, e a idiotice e bestialidade humanas, que ele explorou com ironia em sua obra. Em uma carta de sua vasta correspondência, escreveu que o ser humano não podia devorar o universo. Referia-se ao consumismo crescente na segunda metade do século 19.
O que o "Ermitão de Croisset" diria dos dias de hoje, quando a propaganda insidiosa na tevê não poupa nem as crianças e tudo gira em torno da vida de celebridades, de uma fulana famosa que teve um bebê, de sicrano que se separou de beltrana ou traiu uma fulaninha? Qual o interesse em saber que a princesa da Inglaterra está grávida?
Essas baboseiras são ainda mais graves num país como o Brasil, cuja modernidade manca ou incompleta exclui milhões de jovens de uma formação educacional consistente.
No começo da década de 1990, quando eu passava uma temporada em Saint-Nazaire, um jovem operário entrou no meu apartamento para consertar o vazamento de uma tubulação. Quando passou pela sala, viu um romance em cima da mesa e exclamou:
Ah, Stendhal. Li vários livros dele, e o que mais aprecio é esse mesmo: A Cartuxa de Parma.
E onde você os leu? Quando?
Aqui mesmo, ele disse. Na escola secundária.
Era uma das escolas públicas daquela pequena cidade no oeste da França.
Nicolas Sarkozy e outros presidentes conservadores tentaram prejudicar o ensino de literatura e ciências humanas na escola pública francesa, mas nenhum deles teve pleno êxito. Aprender a ler e a pensar criticamente é um dos preceitos de uma sociedade democrática, e esse mandamento republicano ainda vigora na França. O que os prefeitos e secretários de Educação dos quase 5.700 municípios brasileiros dizem a esse respeito?
A precariedade da educação pública é um dos problemas estruturais da América Latina. Até mesmo a Argentina, que já foi uma exceção honrosa, começa a padecer desse mal.
Comecei essa crônica evocando a solidão de um escritor em Guadalajara. Melhor assim: a solidão está na origem do romance moderno, é um de seus pilares constitutivos e faz parte do trabalho da imaginação do escritor e do leitor.
O tempo se encarrega de apagar todos os cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento os crepúsculos, cabanas e toda essa xaropada que finge ser literatura. Enquanto isso, Coração das Trevas, publicada há mais de um século, é uma das novelas mais lidas por leitores de língua inglesa.
Imagem retirada da Internet: books

Paulo Aires - Poema




NOTÍCIA DE BARRO, VENTO E SOL

Cão de barro e sopro, 
Insone bicho noturno, 
Urdido em poeira, água e sol,
E sete luas e dez outonos.

Trago na voz páginas e páginas 
de brasa e vento
(e uma multidão de perguntas 
queimando a língua).

E as vidas e os livros e os diários inconclusos,
e os livros-vidas que vou lendo, 
indagando, decifrando ou não,
e os caminhos que hei de percorrer...

Essa sorte de poesia – sentença de pedra e fogo -
Herança de deuses distantes.
E a vida e o desassossego de suas mochilas.
E o secreto calendário dos dias que virão...

__________________________
 In.SINAIS DA TRAVESSIA, livro inédito, sem data marcada...)
Imagem retirada da Internet: library

Chico Buarque - Poema


A História de Lily Braun




Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom


Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz


E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou


Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues


Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris


E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê


Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar


Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz

Fernando Pessoa - Poema



Primeiro/ Ulysses


O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo -
o corpo morto de Deus,
vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Respeitou-se a ortografia original.


In. Obra Poética. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1984.
Imagem retirada da Internet: Dom Sebastião

Francisco Perna Filho - Poema


PARTIDA



No primeiro tempo, só aplausos.
depois vieram os gritos,
as vaias.
Os gols?
ninguém os viu.
Após a partida,
todos foram embora,
só sobraram ecos,
fotos
e um grande vazio.

Imagem retirada da Internet: leaving

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