Leila Krüger - Poema


 FLOR DE FIM



Como saber?
Se a tristeza é breve
se a alegria é forte
se a paz é leve.
Se a fé rebrota
no inverno gris.
Se teus dedos
na madrugada
fazem meu fim.
Como saber?
Entender tua cor.
Como saber?
Se já não sou.
Como não ser?
Se nós somos flor...


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: flor


Kosovo, 1999, Nesse ponto, um míssil atingiu um homem
KOSOVO


A dor da separação
castiga minh'alma.
A raça à qual pertenço
condena os meus passos.
A água que me dessedenta
congelou o meu grito.
Sirenes, explosões, desolação e mortes
eis o meu cardápio.
Que mal fiz aos adultos do mundo?
com cinco anos
e já participo das primeiras lições de ódio,
onde se urde, secretamente,
o desdém (DRESDEM) à raça humana.
Quisera ter nascido árvore,
sem clamor, sem dor,
sem família.
Quisera ter nascido lama
e, dessa forma, sem precisar
conviver com irmãos
apodrecendo em cativeiros da loucura humana.
Quisera ter nascido pedra
para não ter de ver
tantos corações empedernidos
por ideologias.
Quisera não ter nascido!
Deus meu,
clamo pelo colorido das praças,
pela mesa posta em família,
pelos clows nas tardes de Domingo.
Clamo por todos aqueles que se perderam
no labirinto e, cativados pelo minotauro,
foram seduzidos ao ódio de uma guerra,
uma guerra, uma guerra.
Estou com cinco anos:
a lua acaba de se apagar.





In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.93-4.
Imagem retirada da Internet: Guerra do Kosovo

João Cabral de Melo Neto - Poema


Alguns Toureiros


Eu vi Manolo Gonzáles 
e Pepe Luís, de Sevilha: 
precisão doce de flor, 
graciosa, porém precisa. 
Vi também Julio Aparício, 
de Madrid, como Parrita: 
ciência fácil de flor, 
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri, 
dos confins da Andaluzia, 
que cultiva uma outra flor: 
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez, 
que cultiva flor antiga: 
perfume de renda velha, 
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais deserto, 
o toureiro mais agudo, 
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira, 
de punhos secos de fibra 
o da figura de lenha 
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava 
o fluido aceiro da vida, 
o que com mais precisão 
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número, 
à vertigem, geometria 
decimais à emoção 
e ao susto, peso e medida,
sim, eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais asceta, 
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão 
com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 
sem poetizar seu poema.

In.João Cabral de Melo Neto. Antologia Poética. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p.156.
Imagem retirada da Internet: toureiro


Autran Dourado - Conto


            Autran Dourado

Os Mínimos Carapinas do Nada


No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio...

Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada...

Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação.

Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário.

Não que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passa-tempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto-crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era.

Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada.

Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia.

Porque havia três categorias de livres oficinas que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a arete e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas.A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante.Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote.Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres.

A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebiam valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada.

O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais.

O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade.

Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite.

E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação.

Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do que afirmava os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada , era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da arte.

Vovó Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mas longe e mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a sue lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas , nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou o Dr. Viriato.

Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vence a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir.

O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, de caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento a conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de certa dama de nossa cidade.

E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas.

Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê , me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque francês.Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo.

Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãoos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichando e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito.

Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mário, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovó Tomé. Mas é um caso longo não é para agora.

Não , não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas.Me lembro( e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida.Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material.Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus.

No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou pra min, olhou para vovô Tomé, e disse com ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia acreditar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé.

Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas.

Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas.
Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação.

No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse.E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens.Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis.

Vovô não tinha a pachorra e a tranqüilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisas e uniformes, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ela já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada.

Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada.

E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido.

Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada.
Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada.

In. Os melhores contos, Global Editora - São Paulo, 1997, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pag. 510.

Castro Alves - Poema



Noite de amor


(RECITATIVO)


PASSAVA a lua pelo azul do espaço
De teu regaço
A namorar o alvor!
Como era tema no seu brando lume...
Tive ciúme
De ver tanto amor.


Como de um cisne alvinitentes plumas
Iam as brumas
A vagar nos céus,
Gemia a brisa — perfumando a rosa —
Terna, queixosa
Nos cabelos teus.


Que noite santa! Sempre o lábio mudo
A dizer tudo
A suspirar paixão
De espaço a espaço — um fervoroso beijo
E após o beijo
E tu dizias — "Não!... "


Eu fui a brisa, tu me foste a rosa,
Fui mariposa
— Tu me foste a luz!
Brisa — beijei-te; mariposa — ardi-me,
E hoje me oprime
Do martírio a cruz


E agora quando na montanha o vento
Geme lamento
De infinito amor,
Buscando debalde te escutar as juras
Não mais venturas...
Só me resta a dor.


Seria um sonho aquela noite errante?...
Diz', minha amante!...
Foi real... bem sei...
Ai! não me negues... Diz-me a lua, o vento
Diz-me o tormento...
Que por ti penei!

Imagem retirada da Internet: Castro Alves
Fonte: Jornal de Poesia

Carlos Drummond de Andrade - Poema



Para sempre




Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento. 

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.


Imagem retirada da Internet: mãe

José Epifânio Parente Aguiar - Conto


Tem disco voador no pedaço


 


Chegou à casa da mãe, em Miracema, acompanhado da mulher. Pediu "bença" e perguntou: - Cadê Salu? - Meu fii, ele tá lá no mercadin, invernado na cachaça. - Parece que a senhora tá de saída pra lá? - É, vou comprar uns tempero. - Pera aí, mãe, aguarda um instantin que eu vô arrancá ele dessa pingaiada. Às pressas, o visitante, seu irmão, redigiu um bilhete e o despachou pela mãe, assim:

 
- Caro Salustiano, permita-me a intimidade, Salu. Estou hospedado no Plaza Hotel, em Miranorte. Na condição de pesquisador de fenômenos ufológicos, recebi comunicados sobre aparições de OVNIS nas proximidades de uma das aldeias de índios xerentes, a de Funil, no município de Tocantínia. Em levantamento sobre estudiosos da matéria detectei na internet que vossa senhoria é um dos poucos em Tocantins que pesquisa tais fenômenos e é, portanto,  a pessoa talhada para compor  a nossa equipe e assim nos dirigirmos até aquela localidade. Esclareço que sou catedrático aposentado pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Madri, colombiano, radicado há mais de seis anos no Vale do Amanhecer, entorno de Brasília. Como o tempo urge, dentro de duas horas quero estar com vossa senhoria para discutirmos uma estratégia de ação, se vos interessar, e partirmos imediatamente para a aldeia e, in loco, levantarmos quais são os interesses desses alienígenas, se são amigos ou hostis. Aliás, reconforta-me saber que os dinossauros desapareceram por causas naturais, mas apavora-me pensar que possamos ser varridos por extraterrestres. Como se vê, meu caro Salu, a nossa missão reveste-se de uma importância dramática. Assinado: Pablo Navarro Sanchez.


Ao  receber o bilhete, extasiado e espantado, Salu largou o copo, pendurou a conta e a passos largos voltou para sua casa, ficando a mãe para trás, pois já estava atrasado e não queria deixar tamanha sumidade a esperá-lo. "Cadê o professor?", foi logo perguntando, ao entrar. "Está neste quarto aqui do lado e pediu, por enquanto, para não ser importunado, pois está concentrado, fazendo meditação. Porém, quando ele der três toques na porta, será a senha para você entrar", instruiu-lhe a esposa do irmão, sentada no sofá. "Caraca!! Como é que me acharam depois de tanto tempo? Participei de um congresso de ufologia na década de setenta , coordenado, à época, pelo saudoso general Uchôa. Foi uma decepção, nem acreditaram que já fui abduzido. Como o mundo é pequeno, véi", comentou Salu.  De repente,  grunhidos estranhos soaram... uma pausa,  grunhidos, nova pausa, mantras ininteligíveis foram pronunciados, tudo se intercalando por uns vinte minutos. Salu, escolado, deduziu: - Ih véi, o mestre tá recebendo entidades, o cara incorpora legal, entende? - Entendo,  respondeu-lhe a cunhada. Depois de um  novo intervalo a tão esperada senha foi apresentada: Três toques, Salu se levantou, pegou na maçaneta e entrou, cheio de expectativa. Ali, deparou-se com a seguinte cena: Um senhor, sentado na cama com um lençol branco cobrindo-lhe a cabeça e o tronco, estático. Salu, por uns cinco segundos ficou estatelado, mas resolveu reagir e bradou, com seu inglês tocantino: - relou mai friende! Quebrado o silêncio, de repente o professor Pablo, com um salto, levantou-se, jogou o lençol para trás e gritou: - Sou eu, Salu. Este, num misto de surpresa e decepção, explodiu: - me pegou filho da p...

José Epifânio Parente é sociólogo, ex vice-prefeito de Miracema do Tocantins
Imagem retirada da Internet: ovni

Álvares de Azevedo - Poema



Canção da sesta (LXI)


Se teus cílios de sereia
Te dão um ar peregrino,
Que longe é de ser divino,
Fada do olhar que me enleia.

Eu te adoro, ternamente,
Minha terrível paixão!
Sempre com a devoção
Que tem pelo ídolo um crente.

As florestas e o deserto
Perfumam-te as tranças rudes;
Tens na fronte as atitudes,
Do que é enigmático e incerto.

Como em torno do incensário,
Em teu corpo o perfume arde;
E fascinas como a tarde,
Ninfa do ar mais funerário.

Ah, o filtro, mesmo se forte,
Não vale tua delícia,
E conheces a carícia
Que faz reviver a morte!

Tens ancas muito amorosas
De teus seios e teus rins,
E arrebatas os coxins,
Com flexões tão langorosas.

Vezes, para ser vencida
Tua raiva de mistério
Prodigalizas, de ar sério,
O beijo como a mordida;

Tu me laceras, morena,
Com riso de algum despeito,
E pões depois no meu peito
Teu olho, lua serena.

Sob teu sapato rendado,
Sob os teus pés que são seda,
Ponho de alma sempre leda
O meu gênio com meu fado.

Minha alma por ti se cura,
Por ti que és o lume a e cor!
És a explosão do calor
Em minha Sibéria escura.


Imagem retirada da Internet: musa

Álvares de Azevedo - Poema



CANTO III
FLORES DO LUAR

PRELÚDIOS

Eu sonhei tanto amor e tanta glória!
A minha fronte de lauréis cingida
E uma auréola de luz, sublimes versos
Amores e ventura aqui na vida!


E ela, o anjo do céu que eu sonhei tanto,
Ela junto de mim sorrindo amores!
Aérea música a soar - balsâmicos
Os ares de mil flores!


E ela, o anjo do céu que sonhei tanto,
A contar-me seus sonhos de outra vida - 
Nós dois sozinhos em viver deserto
Com alma a tudo mais ensurdecida!


E ela perto de mim, longe do mundo,
Em campinas de flores junto a um lago;
E ela perto de mim, no céu, nos sonhos,
Na vida - em beijo mago!


Que belos sonhos! que de amores santos
Que êxtases mágicos em que eu vivi!
E esse amor de visões, de reza e lágrimas
Minha vida de sonhos, - só por ti!

                      (...)

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) - Poema


A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
        Dos troncos de ramos secos.
        O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
        Aqueço-me trêmulo
        A outro sol do que este.

O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
         De Aristóteles falando.
         Mas Epicuro melhor

Me fala, com a sua cariosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
          Sereno e vendo a vida
          À distância a que está.
        

Carlos Drummond de Andrade - Poema


Pablo Picasso - Figuras na Praia
Sonetilho do falso Fernando Pessoa


Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
Muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
Posso durar. Desisto
De tudo quanto é misto
E que odiei ou senti.

Nem fausto nem Mefisto,
À deusa que se ri
Deste nosso oaristo,

Ei-me a dizer: assisto
Além, nenhum, aqui,
Mas não sou eu, nem isto.

Imagem retirada da Internet: Figuras na Praia

Francisco Perna Filho - Poema


Os rios
frequentam a minha sala,
sempre estou vazio,
leio
o curso
das águas,
não me afogo
nem grito,
principio.

Imagem retirada da Internet: água



Cafarnaum



velhos armários, 
guardando nas suas gavetas
o cheiro aveludado de tantos invernos,
esculpidos em retratos sonâmbulos,
carpidos no ranger de redes
e no murmúrio oblongo de potes de barro.
Nada há de velho que não enterneça.
nem o mofo,
nem o lodo,
nem os anos embotados no imaginário humano.
Nada passa que não nos faça avançar para antes,
para uma anterioridade lírica,
sob a luz das lamparinas
talhadas em ausências e muita solidão.
Nada há de novo que não nos mostre o velho,
o passado,
o que fomos nós,
nos passos tênues dos nossos avós,
                               no lastimoso grito memorial
                               dos nossos corpos na dança secular;
dos nossos corações empedernidos
pelas inúmeras cicatrizes
que clamam refeição.
O que há em nós
é um imenso desejo de reconstituição
de refazimento.
Um desejo
de saciar a nossa fome ancestral,
agora, no presente futuro.


In. Refeiçao. Goiânia: Kelps, 2001.

Francisco Perna Filho - Poema


Foto by Dulla
Anotações

Fundada em lonjura,
a saudade é áspera.
Farpado arame,
pintura descascada.

Turvo canto,
lânguido e impessoal
como a ausência,
sem defesa na hora que ataca,
como a fera que espreita e devora.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.43.

Eustáquio Gorgone de Oliveira - Poema




NOVOS POEMAS



Não me aterroriza a tua falta
               mas o vazio das palavras.
Da  ausência posso retirar imagens
e pôr nos carretéis
os abraços.
Das palavras, tudo é em vão.
Um pássaro doente, voando,
diz mais do que eu.
Por isso tua ausência
é o eclipse menor.
Ela pouco me fere.
É uma cidade inteira
que, imóvel, me persegue.

As palavras, sim, inflamam o corte.

As pedras não indagam.
No silêncio, guardam definições.
Sem a pegajosa angústia,
o tempo passa por elas.
Os sinais das chaminés
cristalizam nosso inverno.

Cada qual em seu bridão,
enredamos a vida com palavras.


In. OIRO DE MINAS a nova poesia das GERAIS. Seleção de Prisca Agustoni.  S. l.: Pasárgada; Ardósia, 2007.  
Fonte: Antônio Miranda
Imagem retirada da Internet: imagem

Brasigóis Felício - Poema


O TEMPO E OS OSSOS




Não sou nenhum mago
mágico ou médico de dementes
para saber das coisas do tempo
como sabem da morte e da vida,
intensamente,
        os que estão doentes.
Não sou nenhum idólatra
da solidão que rói meus ossos
e range e ruge como um bicho
        nos meus olhos
se uma estrada me espera
e no tempo são seis horas.

Não sou, não serei nunca um visionário
a não ser pobre advinho do meu transe
e um que sabe dos limites
e mesmo se entregando
não esqueceu jamais que é um corpo.

Por isso doem tanto os fins de tarde
as noites no início,
e as crianças sorrindo
uma hora antes de morrer.
Por isso. Só por isso me entrego
ao tumulto dos butecos
e de vez em quando me permito
passear dentro da noite,
          como um louco.

Imagem retirada da Internet: ampulheta

Brasigois Felício - Poema


O BARRO DO TEMPO


Quem nos fez assim tão frágeis?
Como deuses erigidos
por sobre o barro do tempo,
não resistimos ao vento.

Feitos de terra e de medo
e mais o clamor aos céus,
resistimos ao cansaço
da caminhada inútil.

Quem nos fez assim tão fortes
para resistir à desavisada, ao desamor
devia nos dar coragem
(vertigem, vertente, voragem)
para enfrentar sem terror
essa miragem chamada amor
esse fantasma chamado morte.

In. Hotel do Tempo (Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 1979. Prefeitura de Goiânia e União Brasileira de Escritores). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981,p.181.

Imagem retirada da Internet: homem de barro.

Gregório de Matos - Poema


BUSCANDO A CRISTO


A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lagrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados,

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

Imagem retirada da Internet: no madeiro

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