Maurilio Tadeu de Campos - Crônica





Elis, a estrela do Brasil




Ah, como essa coisa é tão bonita / Ser cantora, ser artista / Isso tudo é muito bom...”
                                                                                                                                     (Joyce/Ana Terra)




Sorriso nervoso de dentes pequenos, gestos de braços se agitando combinados ao canto forte. Elis chamou a atenção e imediatamente conquistou inúmeros fãs. Na era dos Festivais, ainda no tempo da TV em preto e branco, assisti a final do Festival Nacional da Música Brasileira de 1965. Elis imprimiu seu talento a uma bela canção de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, Arrastão, que venceu o Festival. O Berimbau de Ouro foi parar nas mãos dos seus autores, que o repassaram à intérprete por merecimento. Elis projetou-se nacionalmente, porém, com a canção Menino das Laranjas de Theo de Barros e Geraldo Vandré. E mostrou a que veio: ser a melhor intérprete da música popular brasileira de todos os tempos. E foi se renovando, ampliando seu repertório, revelando novos e já conhecidos compositores, deixando a sua marca de mulher combativa e determinada. Apesar de ter vivido apenas trinta e seis anos notabilizou-se como artista e ainda hoje é referência na canção popular do Brasil e de além fronteiras. Descoberta em Porto Alegre, sua cidade natal, surgiu para a música e consolidou-se como grande cantora. Procurou trabalhar a sua voz como se fosse um instrumento, extremamente afinado, dominando graves e agudos com facilidade. Numa entrevista revelou que cantar era o que mais gostava de fazer; e isso ela fazia isso muito bem, com segurança e perfeição. O sucesso marcou a sua trajetória de artista, aplaudida e reverenciada em muitos palcos brasileiros e do exterior.
Sempre em busca de maior esmero técnico roçou, com algum risco, períodos de interpretações mais frias, mas soube imprimir à sua carreira momentos vibrantes, intensos, como grande atriz do canto, combinando emoção à técnica de grande intérprete.  Seus shows foram disputados por platéias ávidas e numerosas, como em Falso Brilhante, que teve mais de mil apresentações e ficou dois anos em cartaz. Transversal do Tempo foi outro espetáculo cuja polêmica marcou uma fase altamente politizada da cantora em anos difíceis. Saudade do Brasil, outro de seus shows em que a popularidade e a grandiosidade de Elis podiam ser observadas em suas interpretações. E o seu último, O Trem Azul, confirmou a sua versatilidade. Soube conduzir com maestria vários programas de TV, a partir de O Fino da Bossa, apresentados, todos, com talento e, acima de tudo, com carisma e precisão.   
No auge da carreira e repleta de planos saiu da vida, inesperadamente. Ficamos atônitos. Não conseguimos aceitar que, de repente, o Brasil perdia a sua melhor intérprete popular. O rádio, a TV e outros meios de comunicação voltaram-se à morte de Elis. Naquele 19 de janeiro de 1982 nada mais se ouvia a não ser o som da sua voz e as imagens das suas apresentações. As notícias expunham o que não queríamos acreditar. Choraram Marias e Clarices; chorou a nossa Pátria, mãe gentil. Hoje vemos e ouvimos Elis por meios eletrônicos, como desenhos de luz, agrupamentos de pontos, de partículas, processamentos de sinais, uma forma nebulosa feita de luz e sombra, como uma estrela. Há exatos trinta anos Elis Regina intensificou seu fulgor de estrela de primeira grandeza e jamais será esquecida. Brilhará eternamente no universo da música popular de todos os tempos. 

Maurilio Tadeu de Campos - Professor, poeta e escritor.
Imagem retirada da Internet: Elis Regina

Gerardo Mello Mourão - Poema


 EVA




Adormecera à beira do riacho
e o sonho e a flor dessa maçã
da primeira saudade - do primeiro desejo do mundo
habitavam seu sono.

Despertara - e dela despertaram
um tato uns olhos um perfume - e o véu
dos cabelos cobria ancas
seios nunca vistos:

Eva bailava sobre chão de folhas

desde então
desde sono e sonho se incorpora sempre
ao homem sonhador o sortilégio
da primeira mulher
coisa e criatura e criadora
de seus tatos seus aromas - aflição e festa
de estrelas na pupila.

                                           Copacabana - 29-7-98

Imagem retirada da Internet: Eva

Eugénio de Andrade - Poema


Francisco de Goya "O Sono da razão produz monstros" (1797
Passamos pelas coisas sem as ver



Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.


Rui Costa (1972 - 2012) - Poema



Elegia Azul



Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes.


Poema de Rui Costa in "Os Dias do Amor", selecção de Inês Ramos, pág. 370
.......................
Sobre o autor:


"Rui Filipe Morais Aguiar da Costa, de 39 anos, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu a profissão de advogado durante seis anos em Lisboa e Londres, concluiu um mestrado em Saúde Pública em Leeds, residia há dois anos no Brasil e morreu durante a sua recente estada no Porto para as festas do Natal e passagem de ano com a família.

Era considerado um dos mais inovadores e promissores autores da nova literatura portuguesa.

fonte: Poesia Portuguesa




Antônio Cícero - Poema


GUARDAR


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Imagem retiradada Internet: gavetas

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