Hélio Pólvora - Os Dez Mandamentos do Conto



 Uma poética do Conto Literário



Horacio Quiroga, autor de Cuentos de la selva, El desierto e Los desterrados, entre outros livros, elaborou em Buenos Aires, 1927, o Decálogo do Perfeito Contista. O contista gaúcho Sérgio Faraco submeteu o decálogo a alguns contistas brasileiros, entre eles Hélio Pólvora, que emitiu os seguintes pareceres:


                                                                 I

Crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchékhov — como na própria divindade.

Creio em Edgar Poe, que estudou a estrutura da história curta e para ela cunhou o tributo de “singular efeito único”. Poe foi o mestre do gothic appeal — e convenhamos que o leitor gosta de mistérios, sejam os do sobrenatural, sejam os da personalidade. Não creio mais em Maupassant, porque concordo com Sherwood Anderson: não há, na vida, histórias seqüenciadas; há “instantes” que devem atuar como epifanias. O conto maupassantiano tem início, miolo e fim bem elaborados, numa fusão episódica que se sobrepõe a acontecimentos normais da vida. Não divinizo Rudyard Kipling apenas por causa da sobrecarga de exotismo Mas creio no todo-poderoso Anton Pavlovitch Tchékhov, Senhor do Conto, do qual retirou o arcabouço clássico para que pudesse espelhar a vida baça. E creio, também, em Machado de Assis, que escreveu contos funéreos à maneira de Poe, contos anedóticos à feição de Maupassant e contos modernos, tchekhovianos, nos quais os silêncios eloqüentes valem por todo um manual de ambigüidade e apelo à cumplicidade de quem o lê.

                                                                   II

Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguiste sem que tu mesmo o saibas.

Sim, olhemos sempre para o alto, para as distâncias. Mas o conto, tal como a Casa Celestial dos crentes, tem várias mansões e muitos são os caminhos até elas, segundo o ponto de vista (viewpoint) do autor. Os mestres devem ser tomados como referência, não como ídolos onipotentes e inalcançáveis. Dentro de cada contista que se sente maduro ou em vias de amadurecer há, pelo menos, um facho a guiá-lo na noite escura da criação. Quando esse facho crescer a ponto de se transformar em tocha olímpica, então as cordilheiras e os cumes das cordilheiras estarão a seus pés. Para isso não bastam as musas: Hemingway falou em dez por-cento de inspiração e noventa por-cento de transpiração.

                                                                  III

Resiste tanto quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência.

Nesta nossa modernidade, ou pós-modernidade, como queiram, predominam temas recorrentes: a literatura de ficção está sempre a reescrever-se. Mas não se trata de remake, porque serão sempre o temperamento e a formação do autor, com o seu ponto de vista, que farão do tema assemelhado um relato novo e original. Quiroga tem razão: há que confiar no desenvolvimento da personalidade. “Meu amigo, façamos contos”, disse Diderot, citado por Machado de Assis como epígrafe a Várias Histórias. “O tempo passa e o conto se completa sem disso darmos conta”. Jorge Luís Borges disse que “o conto, por sua índole sucessiva, corresponde intimamente a nosso ser que se desenvolve no tempo”. Verdade: no conto nada se perde, tudo se completa e se transforma. O conto é para quem o escreve — e quem o lê — meio de busca e averiguação. Brota bem de dentro do autor, tanto quanto o poema. O conto é a maneira de o autor-narrador conviver com os seus conflitos básicos. Por isso o conto há de aprimorar-se, ou simplesmente mudar, na medida em que o autor-narrador muda de conceito, ponto de vista e insight. O conto, ainda que acabado, estará sempre a pulsar, a germinar e a fermentar nos misteriosos meandros das entrelinhas.

                                                                   IV

Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração.

Reconheço que é preciso acreditar, embora de desilusão em desilusão estejamos a perder as velhas crenças. Mas a fé no conto literário prevalece nos contistas ardorosos. Estes vêem no conto um enigma, uma esfinge a decifrar — ou então um espelho em que refletir e identificar a própria personalidade. Sem o ardor dessa identidade amorosa, caminha-se com mais vagar e tropeços. E, como disse o poeta António Machado, “el camino se hace al andar”. O contista William Saroyan fez praça de franqueza: quando tivermos fome, devemos comer com vontade, quando sentirmos raiva, devemos estrebuchar de cólera. E, analogamente, quando estivermos a escrever um conto, entreguemo-nos a ele de corpo e alma. Mesmo porque, conforme lembrou Saroyan, “cedo morreremos”. E disse mais: “Do not pay any attention to the tales other people make, I wrote. They make them for their own protection, and to hell with them. (…) Forget Edgar Allan Poe and O. Henry and write the kind of stories you felt like writing. Forget everbody who ever wrote anything”. Palavras da introdução a The Daring Young Man on the Flying Trapeze.

                                                                      V

Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

Há quem comece um conto cegamente, guiado pelo instinto, por uma luz bruxuleante de vaga-lume. Pelo visto, Quiroga não acreditava na intuição. E há, paralelamente, os que estruturam o conto na cabeça, deixando-o sazonar até o instante de deitá-lo no papel em branco. Eu procedi assim com “O Grito da Perdiz”, que ficou germinando uns dez anos, acreditem. São atitudes, jeitos, temperamentos. Quanto à importância do início e do fim, ela foi salientada por Tchékhov, para quem a nota inicial deveria retornar, como mesmo timbre ou timbre parecido, no fecho. Não me refiro àquele final de impacto, maupassantiano, senão a uma impressão ou estado de ânimo, ou pressentido instante revelador, que deveria abrir e fechar-se como um leque, definindo-se em toda a plenitude da onda, ou de um impulso único.

                                                                  VI

Se queres expressar com exatidão essa circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” — não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes.

São os instantes, as emoções, as circunstâncias que ditam as palavras. Há palavras (ou seja: formas de dizer) peculiares ao que se deseja exprimir. São únicas, insubstituíveis. Infelizmente, há momentos em que o ficcionista, errando no labirinto, defronta o indizível. Impõe-se, nesse caso, a arte da sugestão, com a qual seria possível, de acordo com Stevenson, transformar um jornal diário em nova Ilíada. A ambivalência é a maior conquista do ficcionismo moderno. Lutemos, pois, com as palavras, que nem sempre a luta será vã. Mas, ao contrário do que recomendou Quiroga, convém que nos preocupemos com o ritmo, a musicalidade da prosa. Devemos ter ouvidos abertos, afiados. A lição é de Flaubert: na solidão de Croisset, ele cantava as sentenças e ia torneando a prosa, livrando-as de nós e rugosidades. Frases sem o fluxo da música interior são típicas de prosadores surdos.

                                                                 VII

Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo.

Nada tenho contra o adjetivo. Sem ele, o que seria da prosa gostosa de Eça de Queiroz? Certas categorias gramaticais parecem apegadas a determinados prosadores. Que seria de Monteiro Lobato se lhe retirássemos a força verbo-motora? O adjetivo faz parte intrínseca da prosa retórica, como, por exemplo, a de William Faulkner, que é um dos grandes ficcionistas atuais. Logo, defenda-se o adjetivo, que não é tão ornamental quanto parece: quando bem empregado, tem a sua carga imagética necessária. Nem sempre, mestre Horacio Quiroga, o substantivo é capaz de vibrar sozinho: requer um fundo musical, um acompanhamento de violino ou violoncelo. Quando se fala em escritor adjetivoso, condena-se o mau prosador, aquele prosador artificial e artificioso, que agita águas rasas para parecer profundo. Em mãos do escritor consciente, artesão, carpinteiro, engenheiro e arquiteto de palavras, o adjetivo é argamassa, é adorno sem exagero. Quem tem medo do adjetivo? Tchékhov e Machado dois artistas reticentes, não o temeram.

                                                                VIII

Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor . Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

De quando em quando os personagens se afirmam por conta própria, com um impulso interior de que não suspeitávamos. E, em vez de dar-nos as mãos, nos puxam sem cerimônia pelo braço, arrastam-nos para suas aventuras ou desventuras, seus abismos ou suas planícies rasas. Além disso, conforme já observado, não se abre o caminho inteiro, de ponta a ponta: ele se desdobra na medida em que caminhamos, em que o nosso roteiro prossegue. Quiroga pretende ater-se, naturalmente, ao essencial, ao fulcro, ao ponto ou turning point do relato. Quanto a esse aspecto, de acordo: desvios resultam cansativos. Convém atentar que o conto tem desenvolvimento unicelular, ao contrário do romance, que admite afluentes. Se um conto apresenta subplots, então se desviou para a novela, que, com as suas sobreposições, não passa de um romance curto. O conto independe de extensão: poderá completar-se nas densas “duas polegadas quadradas” de Samuel Rawet ou no latifúndio de Grande Sertão: Veredas. Decerto, Quiroga elaborou o Decálogo tomando por modelo o conto clássico ou imediatamente pós-clássico. De lá para cá, algumas regras foram atiradas pela janela, conforme o conselho de Saroyan.

                                                                   IX

Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.

Perfeito, mestre. A emoção, enquanto se escreve, é má conselheira. Não podemos sufocá-la de todo, porque o escritor mergulha na água limpa ou na lama do que escreve, e se conjuga, e se transmite. Mas, deve-se contê-la, sufocá-la o mais possível. Uma vez escrevi um conto em estado de sofreada exaltação, depois o reli e vi que era bom, e deixei a emoção transbordar; ela me inundou, saí pelas ruas em estado de êxtase e comunhão. Mas seria atitude prudente, uma vez concluído o conto, ou considerado acabado, guardá-lo na gaveta durante algum tempo. A gaveta funcionaria como refrigerador. Louise Bogess, americana que escreveu sobre a arte do conto literário, recomendava essa atitude: esfriar o conto, o que significa esfriar a emoção. Graciliano Ramos, depois de concluído Caetés, levou anos cortando uma palavra aqui, outra ali, fazendo substituições. Escrever, para Hemingway, consistia em cortar palavras. Para outros, menos áticos e mais retóricos, significa acrescentar. Joseph Conrad, um dos pais da prosa moderna, advertiu que era preciso esgotar o assunto, sorvê-lo como se extrai o suco da cana-de-açúcar, deixar o bagaço do assunto. Não há regras definitivas, há temperamentos que elaboram regras próprias. Em vez de “assunto” eu deveria dizer “tema” (theme), para sinalizar aquilo que a personagem principal capta e absorve em conseqüência do andamento do conto.

                                                                  X

Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua historia causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens, e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.

Uma lição valiosa. Literatura de peso se faz em silêncio. Os outros — sejam amigos, sejam, competidores ferrenhos — devem servir de emulação positiva. Escreve sem pensar no que será amanha o teu escrito, se ele terá passaporte para a eternidade ou morrerá despercebido. Os livros fazem seu próprio destino, como observou Terenciano Mauro. Escreve para desabafar, movido por necessidade interior; para calar por algum tempo os teus fantasmas, para consolar-se, para purgar. Os humildes escrevem assim, para se acalmar e se conhecer, sem pensar na glória do tipo pedestal. A verdadeira glória está na escrita, está na capacidade de quem escreve e no que ficou dito. Escreve também sem pensar na crítica. Afinal, para que serve a crítica? Em geral, ela é burra ou caprichosa, ou preconceituosa. A crítica ensinou alguém a escrever bem? Escreve, pois — porque entre os teus valores é na tua escrita que mais confias, e por ela serás absolvido.



Fonte:
Recolhido de Itinerários do Conto. Interfaces críticas e teóricas da moderna Short Story. Editus – Editora da Universidade stadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002, 252 p.
In. singrando horizontes


Imagem: Gjol


Flávio Paranhos - Conto




Um senhor distinto



O carro estacionou na porta do saloon. Aquilo me incomodou bastante. Da janela do quarto onde me encontrava, pude ver um senhor de paletó e gravata, aparentemente muito distinto, descer do carro. Senti-me incomodado. Não que eu fosse exigente, afinal, a prostituta que acabara de me servir já recolocava seu espartilho e calçava suas botas. Não. Eu não era assim tão exigente. O que me incomodava era o fato de que estava em pleno velho oeste e hospedava-me naquele velho saloon e não fazia sentido um senhor engravatado descer de um carro ali. Não cabia. O senhor era muito distinto, é verdade. Mas isso não mudava muito as coisas. Preocupado, procurei pelo meu cavalo. Ainda estava ali. Fiel e sempre pronto para me receber de um salto, caso fosse necessário fugir rápido (como tantas vezes já fora). Despachei a prostituta cansada (eu sou terrível) e comecei a me vestir. Precisava descer e conversar com o senhor distinto. Precisava me livrar daquele incômodo (não, eu não o mataria, referia-me realmente ao incômodo, sem duplo sentido). Já pronto, descendo a escada que dava para o salão principal, batia propositadamente com as esporas de meu par de botas contra os degraus. Pareceria determinado. O senhor distinto já estava instalado em uma das mesas, bebendo seu cowboy duplo (sem duplo sentido). Tinha um fáscies absolutamente incaracterístico. Indiferente, mesmo. Também indiferentes estavam todos os demais presentes, como se aquilo fosse absolutamente incaracterístico. E normal. Isso, mais que incomodar, me irritou profundamente. Caminhei em direção à mesa do senhor distinto. Parei em frente a ele. Nada falei. Deveria parecer óbvia (e atrevida) minha intenção de me juntar a ele.
- Gostaria de me acompanhar ? - ele me perguntou com um tom de voz simpático, que me irritou ainda mais.
- Obrigado - tentei parecer o mais indiferente possível.
- Fique à vontade. - Depois, dirigindo-se ao garçom: - Mais um uísque duplo, aqui pro meu amigo. Sem gelo, por favor.
Aquilo já era demais. Pedir por mim e acertar exatamente o que eu queria era demais. Apesar da provocação, contive-me. Ainda não era hora.
- Como sabia que eu queria um cowboy duplo?
- Apenas um palpite.
- E se seu palpite estivesse errado?
- Você me diria e mudaríamos o pedido.
Sua naturalidade estava me desarmando. Precisava me cuidar.
- E se eu aceitasse por educação?
- Não faria isso.
- Por quê? Acha que sou um mal-educado?
- Não. Apenas um palpite.
- Sei...
Silêncio. Não me sentia disposto a quebrá-lo. Não me incomodava. Ele sim.
- Quem é o senhor? - quebrei o silêncio.
- Ninguém em especial. E você?
- Ninguém em especial? Que diabo de resposta é essa?
O garçom trouxe meu uísque. Sua naturalidade me espantou.
- O senhor não é quem diz ser - decidi atacar.
- Como assim?
- Diz que não é ninguém em especial.
- E?
- Acontece que não se chega a um lugar desses em um carro e vestido de paletó e gravata.
- Por que não?
- Porque não é lógico. Aqui é o velho oeste.
- Não vejo problemas.
- Você não cabe aqui.
- Não percebo ninguém, além do senhor, que esteja se importando com isso - ele tirou um cachimbo de uma bolsinha e iniciou o ritual para acendê-lo.
- Isso só piora as coisas. A naturalidade com que o tratam aqui é bastante curiosa. Diria até que é suspeita.
- Suspeita?
- É. Como se estivessem num transe. Incapazes de alcançar o absurdo da situação.
- Mas nada há de absurdo.
- Quer dizer que o absurdo não existe, que tudo é relativo, que depende do referencial?
- Não. Quero dizer apenas que não é absurdo que uma pessoa honesta sente-se em um bar e beba seu uísque enquanto espera a vez para ser atendido por uma prostituta.
- Prostituta? Não vai conseguir. Elas não gostam de estranhos por aqui.
Como para me desmentir, a que acabara de me servir desceu a escada e veio em direção a ele. Parou à sua frente (quase como eu havia feito, minutos atrás) e esperou.
- Pode começar - ele ordenou.
Ela se abaixou, retirou seus sapatos e meias, e começou a lamber-lhe os entrededos dos pés.
- Mas isso é ultrajante! – protestei, levantando-me e me preparando para as vias de fato. - Não pode obrigar a pobrezinha a fazer isso! Nenhum dinheiro vale isso. Quanto ele lhe paga, menina? Eu cubro.
- Meu amigo, não se exalte. Não a estou forçando. Nem sequer estou pagando.
- Não paga?
A surpresa me derrubou de volta à cadeira.
- Não. Esta moça tem enorme prazer em me fazer esse carinho.
- Carinho?
- Não acha? É tão relaxante...
A prostituta terminou seu “carinho”, recolocou as meias e os sapatos metodicamente no sujeito e se levantou, com um sorriso. Ninguém à nossa volta parecia ter notado a cena. Ou se importado com aquilo.
- Escute aqui. Nada que o cerca é natural. O senhor não é natural. Todos agem com naturalidade, mas nada disso é lógico. Não sei o que está acontecendo, mas sei que não estou insano. Não me sinto insano.
- Não está.
- Como sabe?
- Um palpite, apenas.
- Não quero mais saber de seus palpites. Quero saber o que significa tudo isso!
- Nada.
- Como?
- Nada significa. Precisa significar algo?
- É claro que sim. Tudo significa alguma coisa.
- Sendo assim, qual é o significado de sua curiosidade extrema a meu respeito?
- Não inverta as coisas. É uma curiosidade natural.
- A sua curiosidade pode ser natural, mas eu não sou?
- Está tentando me confundir. Não me engana.
- De maneira nenhuma. Gostaria apenas de acalmá-lo.
- Estou calmo.
- Se é assim...
- Mas continuo querendo saber o que o senhor representa aqui.
- Não estou representando. Estou agindo naturalmente.
- Está querendo me irritar?
- Por favor...
Naquele momento senti minhas forças me deixarem. Precisava resistir. Todos haviam sucumbido, menos eu. Precisava resistir.
- O senhor já fez o que queria? – perguntei e, dando-lhe a entender que só havia uma resposta possível, propus: - Pode ir agora.
- Por que o incomodo tanto?
- O senhor não pertence a esse lugar.
- E você pertence?
- Pertenço.
- Quem lhe disse?
- Ninguém. Eu sei.
- Então me dá o direito de também me considerar como pertencendo a esse lugar.
- O senhor não pertence. Eu sei.
- Não vamos mais discutir. Não vale a pena.
Nesse momento fomos interrompidos pelo garçom, que tocou o ombro do sujeito de leve, como a lembrar-lhe de algo.
- Você já quer agora? – o senhor distinto perguntou.
- Se o senhor assim o desejar... – respondeu o garçom.
- Pode ser.
O garçom retirou meias e sapatos dos pés do distinto senhor, que os apoiara em um banquinho, ajoelhou-se e começou a lamber avidamente seus entrededos. Parecia ter muito mais prazer nisso do que a prostituta. Particularmente no hálux
- Ele prefere o hálux – observei.
- Hálux? – o garçom interrompeu momentaneamente o espetáculo para satisfazer sua ignorante curiosidade.
- Dedão – esclareci.
- Ah.
O garçom voltou à sua tarefa com a mesma avidez com que iniciara. Em dez minutos estava terminado. Satisfeito.
- Ele parece satisfeito – observei novamente em voz alta.
- Ele está satisfeito. Você é que não me parece nada satisfeito.
- Não estou. Estou enojado.
- Está assustado. Pode estar até enojado, mas não pelo que pensa estar.
- Não entendo.
- É o único diferente aqui. Penso que o que o enoja é o fato de ser o único diferente.
- Posso ser o único diferente, mas sou normal.
- Seria realmente normal alguém tão diferente? Como pode considerar-se normal se os demais não o consideram assim? Não acha que algo está errado?
- Acho. Está tudo errado. Estão todos loucos. Somente eu estou lúcido.
- Meu amigo, detesto informar-lhe que nós não pensamos assim. Logo, o senhor não pode ser normal.
- Isso é impossível. Não faz sentido.
- Faz sentido o que decidimos que faça. E decidimos que nós fazemos sentido, não você.
O que restava de minhas forças, perdi. Não podia com aquela argumentação (muito lógica, por sinal). Era demais para mim. Sentia que me renderia. Aos poucos, consegui enxergar melhor o que se passava à minha frente. Como tinha sido estúpido! O senhor distinto só podia estar certo.
- Meu senhor - comecei, muito respeitosamente - devo-lhe desculpas. Sinceramente, estou bastante envergonhado. Não consegui enxergar o óbvio. É claro que a razão estava com o senhor este tempo todo. Afinal, um senhor tão distinto...
- Não tem problema.
- Mais uma coisa. Se permite... se não lhe for incômodo...eu adoraria provar o gosto de seus entrededos dos pés. O senhor me permitiria?
- Sinto muito, mas não vai dar. É que tenho que ir embora. Está tarde e minha mulher fica preocupada quando me demoro muito nessas happy hours.
Dizendo isto, o senhor distinto se levantou e caminhou em direção à porta do salloon, que abriu com elegância. Observei sua saída com um aperto no coração. Algo me dizia que jamais saberia o sabor que tinha os entrededos de seus pés.



In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Imagem retirada da Internet: saloon

Flávio Paranhos - Conto


Pensando bem



- Vou me matar.

- Eu também.

Soren e Arthur estavam sentados em uma mesa de bar. Conversavam. Pensavam muito antes de dizer cada palavra. Lá pelas tantas, Arthur quebra o silêncio:

- Acho que deveríamos ser mais espontâneos – propõe.

- E não estamos sendo? – estranha Soren.

- Não. Estamos pensando muito antes de falar.

- E o que é que você queria?

- Mais objetividade.

- Tem razão. Mas, pensando bem, para quê, se vamos ambos nos matar?

- Vamos realmente?

- Vamos. Ou você não foi espontâneo?

- Fui espontâneo, mas não absolutamente sincero.

- Isso não é bonito. Ou é?

- Não é. Entretanto, também não é bonito que nos matemos.

- Do ponto de vista religioso?

- De qualquer ponto de vista.

- Mas a existência é fútil.

- Quem está citando?

- Ninguém. Ou a mim mesmo, não sei...Nunca sei se falo o que penso ou o que os outros pensam.

- Todos falamos o que todos pensamos.

- Está citando alguém?

- Não.

Novo silêncio. Arthur, absorto, fita o próprio copo de cerveja.

- Em que está pensando? – pergunta Soren.

- Esta pergunta é perigosa.

- Por quê?

- Poderia lhe dar um livro como resposta.

- É mesmo...Deixa pra lá.

Soren observa para o copo de cerveja de Arthur que, percebendo, lhe oferece:

- Quer um pouco?

- Não, obrigado.

- Se não quer um pouco de minha cerveja, por que está olhando fixamente para ela?

- Estou olhando para sua cerveja da mesma maneira que você.

- Então está olhando com sede.

- Pensei que estava usando seu copo de cerveja apenas como um gancho entre este mundo que podemos observar e algo além.

- Está definindo a metafísica?

- Talvez. De qualquer forma, não estou olhando para sua cerveja com desejo.

Arthur bebe a cerveja de um só gole, esvaziando o copo.

- Parece gostosa - observa Soren.

- A cerveja?

- Sim. Vendo você beber me dá vontade de beber também.

- Então beba.

- Mas aí estragaria minha vontade.

- Vontade de beber cerveja?

- Vontade de me matar.

- Está realmente com vontade de se matar, ou esta é apenas uma representação?

- Acho pernóstico citar a si mesmo.

- Não estou me citando. Quis dizer representando um papel. Quase mentindo.

- Se fosse esse o caso, não mereceria minha atenção.

- Pode ser. Por outro lado, também pode ser que estejamos representando um papel para nós mesmos para que possamos nos livrar da angústia que nos persegue.

- Faz sentido.

- Tudo faz.

- Nem tudo.

- O que não faz?

- A religião.

- Não entremos neste assunto.

Calam-se por alguns minutos. Soren olha a cerveja com um esforço descomunal para enxergar além. Nada. A não ser a imagem deformada de uma mosca pousada sobre a mesa. Seria o bastante? Pouco provável. Com um golpe desastrado, Arthur mata a mosca e derruba metade do conteúdo do copo.

- Que desperdício - diz Soren, e acrescenta em seguida, sem muita convicção: - É... Acho que vou me matar.

- Eu também – concorda Arthur, distraidamente.

- Vontade ou representação?

- Está me citando?

- Não. Quer dizer, estou, mas apenas o que disse há pouco.

- Sendo assim, acho que estamos representando.

- E resolve?

- Deveria.

- Falar sobre a angústia exaustivamente nos livraria dela?

- Penso que sim.

- Pensamos demais...

- Se pensássemos menos...

- Resolveria?

- Se nada pensássemos...

- Aí seríamos como as formigas-operárias.

- Ou os operários homens mesmo.

- Sua existência transcorre sem questionamentos.

- Refere-se à minha existência ou dos operários?

- Dos operários. Sua vida passa sem que se perguntem coisas que sabem que não têm resposta.

- Minha vida? – Arhur não estava em uma boa fase para generalizações..

- Mas será possível!? – irrita-se Soren.

- Está bem. Já entendi. Os operários não pensam.

- É claro que pensam. As formigas é que não pensam. A diferença é que os homens operários pensam apenas o básico. Vêm ao mundo com um pacote básico de pensamentos.

- Determinista?

- Apenas um exemplo. O problema é que os homens operários possuem um cérebro capaz de, num repente, traí-los e pode acabar por mostrar-lhes o que realmente são.

- E o que são, realmente?

- Nada.

- Não está exagerando?

- Nada são. Trabalham de segunda a sábado e no domingo descansam. Pronto, é só o que há.

- Neste caso, seria melhor ser uma formiga.

- Isso.

- E se as formigas também tivessem consciência da própria mediocridade?

- Seria terrível e até pior do que os homens, mas não acredito nisso.

- Também não acredito.

Arthur bebe o resto de cerveja que sobrara. Soren pede uma ao garçom.

- Mudou de idéia?

- A respeito...

- A respeito da cerveja estragar sua vontade de se matar.

- Mudei. Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.

Novo silêncio, que Arthur quebra tamborilando os dedos na mesa de madeira, sem forro, incomodando bastante Soren, que procura retomar logo o assunto:

- Voltemos ao assunto das formigas.

- Voltemos a elas – assente Arthur, aquietando a mão, para alívio de Soren.

- Não acha que são extremamente felizes e, ainda por cima, têm segurança absoluta nesta felicidade?

- Concordo quanto à felicidade, mas... Segurança absoluta?

- Sim. Os operários homens, apesar de elaborarem em seu dia-a-dia apenas pensamentos básicos necessários à sua subsistência, podem, de uma hora para outra, começar a ter idéias subversivas.

- Subversivas como?

- Como para quê trabalhar tanto e sempre, ininterruptamente, até aposentar de velho ou morrer.

- O que aconteceria?

- Ficariam loucos, angustiados, melancólicos...

- O que, de fato, por vezes acontece.

- Acontece. E aí, como não têm com quem dividir esta melancolia extrema, matam-se.

- Eu também.

- Calma. Ainda não terminei.

- Prossiga.

- Se, ao invés de operários, estes indivíduos pertencessem a uma classe intelectual...

- Como nós?

- Como queira. Se fossem intelectualmente diferenciados, teriam acesso a uma leitura e conversas com pessoas extremamente angustiadas...

- Como nós?

- Como nós. E este acesso à melancolia intelectualizada poderia ser sua salvação.

- Racionalizar a angústia?

- Precisamente.

- E nós?

- Nós não somos apenas medianos com acesso a educação. Nós somos a educação.

- Acho que isso foi pretensioso.

- Totalmente. No entanto, é o que somos. Pretensiosos.

- Sendo assim, vou me matar.

- Eu também.

- Vamos nos matar de que maneira?

- Por enquanto, de maneira nenhuma.

- Estamos representando?

- De certa forma, sim.

- Sabia!

- É uma representação necessária. Afinal, estamos resolvendo os problemas do mundo aqui.

- Estamos?

- Estamos.

- Tem razão. Somos um bocado pretensiosos.

Arthur sinaliza para o garçom, queria mais cerveja. Suspira, enquanto observa algumas crianças brincando na pracinha em frente ao bar.

- Vou me matar.

- Eu também.

O garçom traz mais dois copos cheios.

- E se o sentido da vida fossem os pequenos prazeres? Como esta cerveja, por exemplo? – Arhur levanta o copo e o examina contra a luz do sol, escondido atrás de várias nuvens. O dia estava idealmente cinzento.

- E quem está buscando um sentido para a vida?

- Não estamos?

- Pois não vamos nos matar?

- É verdade. A não ser que estejamos apenas representando.

- Temos que nos matar. Não é possível que saibamos tanto e não nos matemos.

- Por quê?

- Tanto conhecimento tem que levar à loucura completa.

- Ou à completa melancolia.

- Isso.

- Mas se racionalizarmos nossa melancolia?

- Como bons medianos?

- Como bons medianos.

- Não o somos.

- Nada nos impede.

- Racionalizemos, então.

- Já o fazemos.

- É verdade...Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.


In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
Imagem retirada da Internet: mesa de bar

Flávio Paranhos - Conto



Epitáfio



Começou seu depoimento assim:

- Não sei do que está falando.

E levou logo um murro. O que chamavam Capitão explicou:

- Estão.

O homem atado à cadeira se corrigiu:

- Não sei do que estão falando...

E levou outro murro. Desta vez o que chamavam Chefe foi quem explicou:

- Não banque o engraçadinho com a gente. Sabe muito bem do que estamos falando.

O homem atado à cadeira nada disse. Ficou esperando outro murro, que o Capitão se apressou em lhe aplicar.

- Não queria deixá-lo esperando – disse, e deu uma gargalhada.

- Cale-se – ordenou o Chefe ao Capitão, que se irritou. Quase discutiram.

O homem atado à cadeira sentiu que aquele era um momento de fraqueza e arriscou:

- Juro que não sei...

Foi interrompido por violento soco, que quase o fez desmaiar.

- Não interprete nossa discussão como eventual fraqueza. Ou eventuais discussões entre nós como fraqueza.

- Entre nós? – repetiu o homem, bastante enfraquecido, levando em seguida outro murro, que desta vez o fez desmaiar pra valer.

- Já disse para não bancar o engraçadinho! – gritou o Chefe, como se justificando para si mesmo ou para o Capitão, já que não fazia sentido falar para alguém desmaiado. Olhou para o Capitão, que se apressou em mostrar que compreendia:

- Compreendo – disse, e foi até o canto da sala buscar um balde  de água com sabão. Atirou todo o conteúdo na cara do homem, que acordou tossindo muito, dizendo, entre estertores:

- Sabão

- É exato, meu amigo. A água tem sabão misturado – informou o Capitão.

- Acontece que sou alérgico a sabão – reagiu o homem, ainda tossindo.

- E daí? – perguntou o Capitão, armando novo golpe, mas foi contido pelo Chefe:

- Quero que ele fale.

Ainda tossindo e tentando se coçar com a língua, o homem disse:

- Não sei do que está falando.

Levou um tapa e se corrigiu:

- Estão. Não sei do que estão falando, eu juro. E sou realmente muito alérgico a sabão.

- Que tipo de sabão? – perguntou o Chefe, quase condescendente.

- Qualquer – respondeu o homem, economizando palavras para poder se coçar.

- Está economizando palavras comigo?

- Não. Estou tentando me coçar.

O Chefe e o Capitão ficaram observando o homem se coçar com a língua.

- Que coisa horrível – disse o Capitão.

- Está se compadecendo dele? – perguntou o Chefe, denunciando ira iminente.

- Estou achando feio. Digno de dó, apesar de não ser o que eu esteja sentindo – explicou o Capitão.

- E o que é digno de dó é indigno – disse o homem, entrando no diálogo de seus algozes e interrompendo sua tentativa de se coçar com a língua.

- Que bonitinho o que acaba de dizer. Daria uma bela epígrafe – ironizou o Chefe.

- É mesmo – concordou o Capitão – uma bela epígrafe para sua própria lápide.

O homem atado à cadeira e o Chefe não se contiveram e explodiram em uma gargalhada diante da cara apalermada do Capitão, acompanhados pelos demais algozes presentes – a sala estava cheia deles. O Chefe dispensou a todos. Continuariam algumas horas depois. No momento não havia mais clima para tortura.


Imagem retirada da Internet: soco
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Luís Antonio Cajazeira Ramos - Poema



O Jogo das Contas de Vidro




Aos poetas que li.



Qual alvo tisne, a lua tinge a noite
em tons argênteos, grises, plúmbeos, brancos.
A escuridão se esquina e cinge os flancos,
mal traçando o recanto em que se acoite.

O luar, com mãos de seda, audácia e zelo,
retira à noite o véu que a cobre espúrio;
e ilumina, de lilás a purpúreo,
tudo o que ao sol vai do azul ao vermelho.

À lua, o chão rural é mais bucólico
e o mundo urbano é um tanto mais insólito
do que revelam ser à luz do sol?

Talvez... Assim, qual lua, sem luz própria,
do corpo da poesia o poeta é cópia
— sinal especulado do farol.




In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Lua

Luiz de Aquino - Poema



A MOÇA CHEGANTE



Vi chegar a moça de preto
e era preto o que mais havia
entre as moças antes vindouras.

A moça chegante
sorria ofegante e dizia o nome
Anamélia
ante a poesia de anestesia
rebrotada ao som dos passos.

Ansiei a alvorada
para não doer mais.


In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: mulher de preto

Darcy França Denófrio - Poema


Foto by Sinésio Dioliveira


Ínvio lado




Há um lado da flor
que não penetramos:
talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.

Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.

E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua cota de reserva.

É do outro lado (do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.

É lá que se contorceu
e guardou sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre) carrega.

Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado.
                       inviolado.



In.BRASIL, Assis. A Poesia Goiana no século XX. Goiânia:Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira/Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.153.

Valdivino Braz - Poema


As jóias de Netuno


surdo rumor de ondas se avoluma
para os estrondos de espuma;
estilhaços de fúria fragmentária,
os cristais feito jóias,
perdigotos de Netuno.
Fraturas de oceano,
salso cuspe de espuma e louça,
os nácaros, côncavos destroços.
O que há de maestro e música,
além do bramor de monstro,
nisto de Atlântico.
Sinistra massa, mista
de crustáceos e moluscos -
lagostos pedúnculos de antênulas,
caco de acéfalos hipocampos,
espongiários espantos.
De hábitos solitários e anêmonos,
de celeteradas pedras,
isto de florir-se
o reito das actíneas.
Outra é água-viva,
mija-vinagre,
urtiga-do-mar,
isto de queimar.
Transparência de gelatina,
e de secreto nas entranhas marinhas,
as coisas-medusas,
tanto quanto não ser
a vida um mar de rosas.
Umas formas eriçadas,
uns ouriços,
uns crespos de abrir-se e fechar-se
- de não-me-toques -,
marinhos espinhos.
E coisoutras peludas,
isto análogo púbis,
estranhos novelos de quelíceras.
Uns mijos de esponja,
de Nadja,
de nojo.
Umas pérolas nada pérolas,
num colar de búzios.
Com a fileira de pés ambulacrários,
a esdruxula estrela,
uma crosta, uma casca,
parece que morta.
Vergue-se-lhe, entanto, o centro,
ei-la que ressuscita:
ondula-se o mar de áspero dorso,
onde varetas possibilitam
articula-se o dentro,
e pena é vê-lo ondular-se,
por certo que de dor,
isto de só restar devolvê-lo ao mar,
arremessá-lo feito disco voador.


In. Brasil, Assis. A poesia Goiana no século XX. Rio de Janeiro:Imago/Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira. 1997, p.201-2.
Imagem retirada da Internet: fauna submarina

Heleno Godoy - Poema


O ESPELHO




Diante de um espelho não se põe
um sujeito, mas uma linguagem.

Nele não se articula um rosto,
mas uma fala comprometida.

O espelho não é, pois, inocente,
reflete o abismo de uma ousadia,

o jogo narcísico de uma mentira,
a ânsia de uma farsa, o medo

de uma falha, o fio branco de um
engodo recente ou centenário,

e o medo, na própria articulação
de suas angústias irresolvidas.


In. A Ordenação dos Dias. Goiânia:Puc Goiás/Kelps,2009, p.59.
Imagem retirada da Internet: espelho

Itamar Pires Ribeiro - Poema


ESBOÇO 1


Nos escava fundo, irriga
de sol e cachaça, de dor e sombra
e nos abandona, doa, à toa,
a outras fomes, um repertório
de beijos sem rumo, outras bocas
fomes que puem a roupa,
que gastam a cara,
nos soterra em terra alheia
cheia de jagunços,
grão que somos então, um casulo
um acaso de pólvora junto ao fogo,
amor irriga de sangue
a clara nata do olhar
uma veia vital no cristal do olho,
mancha sem explicação no mármore da deusa.
Palas Athena, quando te entenderemos?


In.A Arte de Pintar Elefantes. Goiânia: AGEPEL (Pali-palã), 2000,p.41.
Imagem retirada da Internet: casulo

Amadeus Amado - Poema


Evocação


rabisco no guardanapo
a tua face esquecida:
não sei nada sobre desenho.

Imagem retirada da Internet: Nanquin


Lau Siqueira - Poema



razões noturnas





os dias devoram nosso medo
aves de vôo longe que somos

...ilhas de pouco mar
pensamentos ancorados
à beira bar

alimentos de sombra e luz
sobre as varandas


distâncias alimentadas
pelo esgar do infinito


(respiramos fuligem e
certa dose imantada
de coisas que irão
compor profusões do
tempo que nunca irá
permanecer entre o
sol e a escuridão sem
luar)


a vida carrega
algumas metades de cada
metade morta

In. Poesia Sim
Imagem retirada da Internet: vela

Amadeus Amado - Poema


Impressões


A rua vazia veloz:
os carros pararam no tempo
e os homens aguardam o verde sinal.
Casas resistem indiferentes
ao menino que brinca sozinho na escada.
Um céu de domingo,
um guarda sonâmbulo,
um olhar enviesado,
uma mulher confere as roupas no varal.
Nada sabem da minha solidão. 

Imagem retirada da Internet: rua vazia

Mário Chamie - Poema


A CARNE É CRÁPULA

A carne é crápula
sob o olho cego
do desejo.

A carne é trôpega
se fala sob o pêlo
de outro desejo alheio.

A carne é trêmula
e fracta.
Crina de nervos,
veneno de víbora,
a carne é égua
sob o cabresto
de seus incestos
sem freios.

Fálica e côncava,
intrépida e férvida,
a carne é estrábica
nos entreveros
do sexo
com seus desacertos
conexos.

Sob o olho
sem mácula e cego,
a carne é crápula
nos arpejos
indefesos
de seus perversos
desejos.



In. Caravana Contrária. São Paulo: Geração Editorial, 1998.
Imagem retirada da Internet: sensual

Marinalva Barros - Poema

GEDC0348.JPG

POEMA DE AMOR E RIO VI



As digitais de um rio
Tatuaram meu espírito
Sou por isso matizada,
Povoada de estações

Afeita a cidades antigas
E ruas estreitas.
Alinhavada de correntezas. 


Rio Tocantins - Praia do Prata - by Francisco Perna Filho

Mário Chamie - Poema


PEDREGOSA ROSA


A mão sorridente
sobre a boca
vertiginosa
põe os dedos efusivos
sobre a pétala
desta rosa pedregosa.

Não é a faca florida
a faca que mais corta
a cauda dessa rosa
rancorosa.

O não indecente
da hora
suspira e se afoga
no fofo dessa toca,
a cálida areia rósea
desta porosa pedra
vaporosa.

Por obra da hora
a mão insolvente
da pétala
floresce e afaga
a boca rochosa
de arestas na pedra
desta pétrea raivosa
rosa.


In. Caravana Contrária. São Paulo: Geração Editorial, 1998.
Imagem retirada da Internet: Lírio do campo

Mário Chamie - Poema



QUEDA INTERIOR


Se a queda é livre
o medo da queda
é preso.

Livre é a queda
sem embaraço
defeso.

A queda
de um homem
tenso
não é a guerra
do Peloponeso
pelo estreito
de um coração
perverso.

A queda
livre
é o próprio peso
de um coração
suspenso.

Toda queda
é o menosprezo
de quem cai
sobre si mesmo.


Fonte: Antônio Miranda
Imagem retirada da Internet: Chámie

Mário Chamie - Poema

 
AUTO-ESTIMA


Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.

De Damasco
ao meu legado,
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.

No pórtico
mediterrânico,
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.

Sem custo nem preço
que se meça,
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça
e a sentença
de meus adversários,
adversos e vicários.

Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Por onde entro,
venho de Damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.



In.Caravana Contrária. São Paulo: Geração Editorial,1998. (Fonte Antônio Miranda)
Imagem retirada da Internet: Chámie

Francisco Perna Filho - Poema


Show de graça



O ser, capenga,
capina.
A mata, em riste,
resiste.
Na lâmina cega,
o reflexo de mais um capítulo
de devastação.

Tão desolado,
do outro lado,
o homem fica.
Sentenciado,
brinca de ser humano.

A lua olha
o cambaleante homem,
que perfila tombos pela avenida.
Numa igreja à vista,
uma placa indica:
Show de graça!


Sem pagar ingresso,
ele entra,
senta-se,
chora,
morre de rir.




In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001
Imagem retirada da Internet: Palhaço

Francisco Perna Filho - Poema




                                               
MONTANHA



A palavra pesada
persegue a pedra,
revela o austero pulsar do silêncio
e, com ele, inaugura um olhar de montanha.
Do alto, a alma encanta-se
e o olhar precipita-se em direção ao luzir da cidade.
Do baixo, o corpo, enfermo, claudica
e os braços perdem-se na impotência primordial
de uma escalada.
A montanha é sentida
e nela diviso o inferno e o paraíso
da Babel recriada.
Estando no centro,
a minha alma assesta a caverna
na recomposição do paraíso Dantesco.
Dessa forma,
a montanha enternece o poeta
e a palavra mais leve
revela a montanha/palavra
Refletida no olhar.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: Montanha

Francisco Perna Filho - Poema


Duplo 





Faz frio,
fina a pele fica,
o filho dorme.
Há calma,
são secretos os sonhos.
A mulher suspira,
liberta de tudo revela esperança
nos graciosos gestos.
O sono não vem,
invento palavras.
Meus olhos coalhados secam a noite.
Barcos invadem minha sala,
Aviões-de-guerra sobrevoam a minha cabeça.
caminhos me levam para fora de mim,
viajo.
Não há como entender.
Pessoas conversam,
olho,
nada vejo.
Pássaros libertam-se-lhes os cantos.
Vôo.
O filho chora,
faz frio.
Há uma escuridão perpetuada.
Manhã pesada.
Sou pura distração:
afastado de toda racionalidade
observo os pés do sofá.
Alguns passos, passo pela porta do quarto
e contemplo o meu corpo
petrificado no espelho da sala.
Reflito um abraço e vou dormir.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: Magritte

Francisco Perna Filho - Poema

Transformação



Peixe na linha,
rima de pescador.
Encontro de águas e arco-íris.
Rio quebrado nas voltas dos olhos,
no piscar dos barcos,
na manga de chuva.
Perpetuado no mormaço da existência.
Os olhos observam o ritmo:
na rima quebrada de peixe fugido,
na desalegria de morte escapada,
na deselegância de mesa-objeto, sem pão.
O rio continua
no riso pálido do pescador extático,
no hiato das culturas,
na incontinência dos jovens poetas.
Linha, água.
Peixe, anzol.
Pescador.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: peixe

Francisco Perna Filho - Poema


Navegante




  I                                                            


Meu coração é um navio azul,
alimentado de velhas caixas e revistas.
Nas pulsações mais fortes,
mergulha nos tomates podres das feiras
e velhos mercados.
Compraz-se nas garrafas abandonadas
de molhos e cervejas.
O mar que o transporta tem cor de chumbo.
Possui salas radiantes
que a ele não são dadas conhecer.
Meu coração navega nesse mar de coisas.


                                                         
 II


Navio azul
trazendo a dor de longínquas cidades.
olhar de descobrimentos.
Plúmbeo mar!
conduz esta minha embarcação
pelos portos tremeluzentes de orgasmos e discórdias.
Pelos asilos, presídios e manicômio.
Grande mar!
dai a esta embarcação
um pouco da tua força,
um pouco da tua alma
para um aprendizado de maresia

Imagem retirada da Internet: janela

Francisco Perna Filho - Poema

Renda de Bilro
Texto



I



Ser camisa ao avesso,
costura da qual se veem os pontos,
tecido ordinário nas mãos da tecelã.
Vida que se cruza entre um bilro e outro,
no tecido das grandes fazendas,
na tintura de urucum.
Ser pano rasgado,
esquecido nas achas de lenha,
no choro de menino nascido,
no bordado da vida: renda.
Ser costura de rio,
na linha de vento,
tecendo em cada porto as manhãs de banzeiro,
em pontos de cruz.

                                                                       

II 



Ser...
e costurar o enredo dos homens,
na procissão das ideias,
no sal amargo dos bóia-frias,
em pontos de cruz.
Tecido de entranhamento,
de estranhamento,
no cascalho da estrada,
sob o esguio olhar dos que andam a pé.
Reticência no texto-não-feito,
dos que definitivamente nunca serão.
Costura.
Ponto.
Entre uma vírgula e outra o ser pasma
no alheamento de sua existência.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: bilro

Francisco Perna Filho - Poema


Fotografia



O relógio deu nove horas.
Um alarido de tempo aprisionado alertou as manhãs,
apavorou as cidades,
temporizando os visitantes.
O grito das horas determinou o aprendiz,
pasmou o homem céptico
na vigília de sua contemporaneidade.
O dia se fez aprisionar,
o embaraço do trágico ficou preso
ao ecúleo dos bêbedos,
à desilusão das prostitutas
na anacronia da exploração.
O grito emudeceu/umedeceu-se.
Algumas vidas foram preservadas
antes dos disparos.
Falem agora ou calem...
o soco parou no meio do caminho,
o beijo perpetuou-se,
A gafe foi congelada para não haver perdão.
O agora eternizou-se.

Francisco Perna Filho - Poema

Espelho



As palavras são alarme da alma
irremediavelmente estou enredado nelas.
Palavras que calam,
que bradam,
que insinuam e desnudam.
Estou dividido.
Fito os vocábulos
e alinhavo
o meu querer.
Espelhadamente estou bem.


Imagem: René Magritte "O Duplo Secreto" (1927)

Francisco Perna Filho - Poema


Registro


O toque,
a primeira impressão:
Digital.
Imperceptível
ela passa do dedo para a pele.
Na pele  impressa e na pressa da ida
o registro do olhar.
O corpo,
o primeiro abraço fica,
mesmo sem querer o corpo
absorve o cheiro do outro.
A alma,
bastou uma impressão para ser descoberta.
As outras impressões
são apenas papéis.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: digital

Francisco Perna Filho - Poema


By Edward Hopper


Errabundo



Eis meu corpo,
não vos ofereço.
Santificado não fora,
tornara-se errabundo e fértil.
Feito de todos os metais,
fora navegante sempre,
conquistador.
Buscou n’alma o outro;
na alegria, a estrada;
na gruta, o vício.
A vós, nada pode ofertar.
Livre de toda vestimenta,
sempre foi sombra
e com as sobras do mundo
fez sua última ceia.
De vós nada quer.
Em mim, somente em mim,
celebra o ócio.
Desconhece qualquer outra sorte
que não o vício.
Com ele celebro o mundo e sou.
De vós nada quero.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001

Francisco Perna Filho - Poema

Velho homem
Foto by Paulinho Cé


Em vias




Pelo corredor do hospital
grande luta é travada:
a alegria do menino sereno
fora atropelada pelo monótono
amargor da velhice.
Não sabeis a quem recorrer.
Não basta o grito rumoroso de socorro
no perene desespero de quem avança
pelos rios do envelhecimento/envilecimento.
Ninguém ouvirá vosso grito.
Melhor não tivésseis memória,
porquanto não sofreríeis agora.
Todos os sóis que canonizastes
foram se perdendo nos secos galhos
de outono.
E a firme voz que tínheis
fora brutalmente amarfanhada e esquecida.
A estrela que sempre vos guiara,
petrificou-se em um bar qualquer
para seguir os errantes caminhos da noite.
Não tereis como vos socorrer.
Quebrastes todos os vossos espelhos,
rasgastes todas as fotografias da vossa infância,
perdestes o rumo de vossa casa.
Sois só.
Agora, demasiado fraco,
congelas algumas lembranças
para ensaiar o grande salto.
O que de vós fora feito, homem bom.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001

Francisco Perna Filho - Poema

Essencial




Chamava o elevador
e descia pela escada
(insistindo na própria sorte).
Como tomasse vinho
embriagava-se de ônibus
na esperança de não chegar nunca
a lugar algum.
Cansado de enganar o mundo
tropeçou na sorte:
não podendo tirar férias,
tirou a própria vida.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: sem destino

Francisco Perna Filho - Poema

[edificios-em-s.paulo-sp-brazil800.jpg]
Insone



As ruas nunca dormem.
Não há tempo para isso,
guardam os prédios que se esvaem em sono vertical.
Os porteiros não dormem nunca.
Não há tempo para isso,
guardam os donos nidificados
em sonhos de existência.
As mães nunca dormem,
velam os filhos errantes em bares e becos obscuros.
Os famintos,
os guardas,
as prostitutas,
assim como os cães,
exercem a insônia da sobrevivência.
Pelos olhos insones de todos estes
meus olhos vêem o inominado,
o imaterializável.
E, por muito ver,
meus olhos nunca dormem.



Imagem retirada da Internet: prédios

Francisco Perna Filho - Poema


Ecos



Habitando os cafés
e refletindo as manhãs
com restos da noite,
ambientou-se ao não-ser,
traçou a inexistência,
ficou entre parênteses.
Silente e absorto,
refez os becos
de um dia oco e pesado.
Inquieto,
alimentou-se de acasos:
sorveu as praças,
o cinza das chaminés
e amargurou-se com o lamento
pulverizado dos meninos
da grande cidade.
Chorou a salobra
Segunda feira,
feita de vagidos
e tormentos.
Desse modo,
por muito tempo,
passou a repetir
as noites,
nos olhos avulsos
do esquálido cão,
que cismara em perseguir.
Um dia,
ao tentar recompor sua história,
morreu de esquecimento.

Imagem: Edward Hoppe

Francisco Perna Filho - Poema


Silêncios



Silenciar como pedras,
tornar imóvel o distante,
pura embarcação.
A rede,
a vela,
a curva e a canção
caminham e me enfunam.
Morrer nas pequenas coisas:
no papel amassado da não inspiração,
na toalha embotada de Toddy e pão,
no candeeiro sem lume e sem esperança.
O gume mata o sono e o sonho.
Tudo se desbota.


Imagem: "Os Amantes" de Magritte

Francisco Perna Filho - Poema


lamparina
Cafarnaum



Velhos armários,
guardando nas suas gavetas
o cheiro aveludado de tantos invernos,
esculpidos em retratos sonâmbulos,
carpidos no ranger de redes
e no murmúrio oblongo de potes de barro.
Nada há de velho que não enterneça.
nem o mofo,
nem o lodo,
nem os anos embotados no imaginário humano.
Nada passa que não nos faça avançar para antes,
para uma anterioridade lírica,
sob a luz das lamparinas
talhadas em ausências e muita solidão.
Nada há de novo que não nos mostre o velho,
o passado,
o que fomos nós,
nos passos tênues dos nossos avós,
no lastimoso grito memorial
dos nossos corpos na dança secular;
dos nossos corações empedernidos
pelas inúmeras cicatrizes
que clamam refeição.
O que há em nós
é um imenso desejo de reconstituição
de refazimento.
Um desejo
de saciar a nossa fome ancestral,
agora, no presente futuro.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.


Imagem retirada da Internet: by Paulo Tomas

Francisco Perna Filho - Poema



Foto by Nuno Ramos


REVELAÇÃO                                                    



Teus olhos infindos
peregrinam versos nas bibliotecas,
traspassando todo o concreto com o qual me visto.
Desnudo, sou pura memória.
Memória primordial.
Vejo as figuras formadas à sombra dos pés-de-lima:
cavaleiros, viajantes, lavadeiras;
homens simples.
As sombras, que imóveis me animam,
compõem esta fantasia.
São seres noturnos
que se revelam na luz.
Sombras de engenho,
do todo, de arte,
de partes.
De quem parte sem sombras de dúvidas,
deixando um vazio de sombras:
de memória perdida;
de palavra não dita
no aturdimento dos amores.
Sombras que pesam,
de pedras,
na mais pesada palavra.
Dos mitos,
do mítico,
que perseguem os meus contemporâneos.
Sombras transformadas,
que assombram os teus olhos,
atentos e profundos.
Olhos de sombras
que me iluminam.

Francisco Perna Filho - Poema


Este ano, mais precisamente no dia 18 de  outubro, o meu primeiro livro "Refeição" completa 10 anos do seu lançamento. Para comemorar a data, postarei, ao longo deste mês de julho, vários poemas que fazem parte do livro. Aproveito para homenagear os corresponsáveis pela materialização do mesmo: Faculdade Cambury (Goiânia) e Secretaria Municipal de Goiânia (Lei de Incentivo à Cultura).


Refazendo





I                                                               


Todos os portos,
todas as palavras.
Nos terminais desertos,
à sombra das velhas marquises,
o Poeta refaz-se do último pesadelo:
o grito incolor das insones madrugadas,
das segundas-feiras borradas de desordem
e desencanto.
Todas as pensões,
todos restaurantes.
Nas rodoviárias abarrotadas,
à mercê das buzinas e moscas,
ele se refaz da sua penúria:
dos meses que se seguiram sem pão,
sem água e sem encanto

II


Todas as ausências,
todas as mulheres.
Nos prostíbulos,
sob a oblíqua penumbra da lascívia,
o Poeta refaz-se de sua fome existencial:
nos momentos solitários de becos e muros,
de desencantos e esguichos...
catalogando mulheres na imaginação.
Todas as crenças,
todas as filosofias.
Na experiência mundana,
ele refaz-se dos irresolutos momentos.
Um leque de possibilidades:
no Outro, no Mundo e em Deus.
Preferindo a realidade,
santifica - se.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.109-111.


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