Luiz de Aquino - Poema


















RIO QUENTE E EU




Na minha terra existe um rio.

Pequeno curso, pequeno caudal

que deságua límpido

nas turvas águas do Piracanjuba.


Corre alegre, borbulhante,

mantendo constante

a água clara

a trinta e sete graus.


Persistente, meu pequeno Rio Quente!

Foi ele a imagem primeira

do que chamei de rio.


Mas não é ele, ainda,

um rio de verdade. É ribeirão;

e na cidade (pouco mais que vila),

o Córrego de Caldas,

miúdo e manso: hospitaleiro

para o banho, farto de lambaris

de ingênuas pescarias.

Rio mesmo

é o Corumbá, violento e forte.

Vem do norte

e reforça o Paranaíba,

que nasce em Minas.


Rios são assim, feito a vida. Tímidos

primeiro, crescentes depois.

E viram grandes

quando grandes somos também

tal como grande nos parece o mundo.


Saudade de ser córrego:

hospitaleiro e manso.


In. Luiz de Miranda

Foto by Ricardo Borges Gonçalves

Luiz de Aquino - Poema
















A CASA NASCE DAS ÁGUAS





A casa de Aninha, a casa grande

na beira da ponte,

dá mão ao tempo e espera outro século.


Mas a casa está só.

Não há mais quem lhe varra o chão

e espane pó das histórias.


O tacho de cobre não coze mais doces:

Aninha descansa em São Miguel.

Não mais as histórias dos becos nem livros de cordel.


Doce Ana doutros anos,

força e voz, tempo e tempero.


Foi-se Ana, a cordeleira, cordilheira feito humana,

canto e coro, coralina, voz menina, canto forte

cristalina voz poesia.


A casa nasce das águas

à beira da ponte, à beira do tempo.

A casa escura das águas.

Rio Vermelho resmunga.

Rio velho, triste...

Rabugento, o Rio Vermelho.



In. SARAU. Goiânia: Edição do autor, 2003. p.152.

Foto by Zemaria: Casa de Cora

Gilberto Mendonça Teles



História



Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.



Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.



Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.



Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Imagem retirada da Internet - By Carlos Alexandre

Gilberto Mendonça Teles


Modernismo



No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.




Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.




Um sujeito que nesta recta de chegada dos cinquenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.




Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.




Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século




e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.




Fonte: Jornal de Poesia - In. &cone de sombras, 1986,p.153.

Imagem retirada da Internet: Modernismo Português

Rubens Jardim - Poema



PAIXÃO


1

Nunca mais vou sair
do Ajuntament de Girona.
Estou à mercê dessa
cidade e não vou
abandonar aquilo que fui
dentro de suas muralhas
para penetrar no futuro
essa fogueira escura.


Não quero novos itinerários.


Sei que existem
nuevos rincones
y nuevos descobrimientos.


Mas eu quero ficar em Girona.


Preciso descobrir
entre a luz e a pedra,
a mão que prende
a eternidade ao nada.

2

Me deixem ficar na Catedral
de Girona rodeado de
vidrieras,
platas repujadas,
anjos e esculturas.
Sei que os toques manuais dos sinos
desapareceram da torre
e os bronzes sagrados
já não vibram ritmos tradicionais.
Mas o que importa isso
se aqui encontrei a proporção
exata dos homens e de Deus..

3

Em nenhum outro templo
gótico eu percebi pulsar tanto
a serenidade e o silêncio.
Aqui até os santos imploram
para não sair dos altares.

4

Nesta Igreja de Sant Feliu
entre sarcófagos pagãos e cristãos
eu permaneço de mãos dadas
com o impossível. Até o Cristo
de alabastro se comove com
as palavras que ainda vivem
na boca do padre e irrompem
resolutas, sagradas, sangradas.
É pela boca que começa
o juízo inicial . E final.

5

Como se fosses minha e
jamais me abandonasses,
Assim te busco, impossível
cidade que me liberta do
chão, do céu, desse canto
desse beco e dessa esquina
escondida nos mil disfarces
da palavra.


Versos da solidão,

cotovia sagrada.

Eu te sagro nesta praça

Eu te sangro nos beirais
precipitados do meu amo





In. Página do autor
Imagem retirada da Internet: Paixão

Lindolfo Bell - Poema























RECÔNDITO IMPULSO




Amadureço

na palavra

que amadurece.

Entre fibras, sangue, desejo

que intumesce.

No amor

onde cresço, me acresço:

eis a messe.


Nivelar

é navalhar a liberdade.

E viver é longa estrada,

É recôndita vontade

dita e não dita:

vocábulo,

coágulo.


Amadurecer.

Lúcido,

lúdico.

Na maravilha,

na armadilha.


Amadurecer no âmago.

O âmago amado.

O amargo âmago, amado.

Amadurecer o âmago armado

do tempo esplêndido da alegria.

Mas também de tempo da amargura

que estraçalha

e desconfia.



Amadurecer.

A áspera saliência e rubra.

A macia maçã

do recôndito impulso.





Fonte: Antônio Miranda

Foto by Cristiano Gomes Mazinho

Lindolfo Bell - Poema


PROCURO A PALAVRA PALAVRA





Não é a palavra fácil

que procuro.

Nem a difícil sentença,

aquela da morte,,

a da fértil e definitiva solitude.

A que antecede este caminho sempre de repente.

Onde me esgueiro, me soletro,

em fantasias de pássaro, homem, serpente.


Procuro a palavra fóssil.

A palavra antes da palavra.


Procuro a palavra palavra.

Esta que me antecede

E se antecede na aurora

De na origem do homem


Procuro desenhos

dentro da palavra.

Sonoros desenhos, tácteis,

Cheiros, desencantos e sombras.

Esquecidos traços. Laços.

Escritos, encantos re-escritos.

Na área dos atritos.


Dos detritos.

Em ritos ardidos da carne

e ritmos do verbo.

Em becos metafísicos sem saída.


Sinais, vendavais, silêncios.

Na palavra enigmam restos, rastos de animais,

Minerais da insensatez.

Distâncias, circunstâncias, soluços,

Desterro.


Palavras são seda, aço.

Cinza onde faço poemas, me refaço.


Uso raciocínio.

Procuro na razão.

Mas o que se revela, arcaico, pungente,

eterno e para sempre, vivo,

vem do buril do coração.





In. AS VIVÊNCIAS ELEMENTARES São Paulo: Massao Ohno/ Roswitha Kempf, 1980

Apud Antônio Miranda

Imagem retirada da Internet:Pena

Amadeus Amado - Poema


Peregrino




Dá-me a tua mão,
não sei ao certo
para onde iremos,
tampouco o que nos espera.
Vivamos a incerteza
desta noite de utopia.
Saiamos de mãos dadas,
sigamos a rota do teu olhar,
a sombra do vento,
os velados caminhos
dessa aventura.



In. A Flor Amena da Madrugada.
Imagem retirada da Internet: Mãos dadas

Amadeus Amado - Poema

Invenção



Um trago a mais,
uma música ao longe,
um latido esparso,
a solidão da sala,
e a invenção da tua presença.
Quantas vezes necessite,
estarei contigo,
sob este céu cinzento,
nesta cidade transformada,
ouvindo o teu coração.



In. A Flor Amena da Madrugada.
Imagem retirada da Internet: sob o céu cinzento

Amadeus Amado - Poema


Anotações





As chuvas
recolhem os últimos vestígios
do teu coração.
Os meus olhos
abertos procuram
um recesso
na tua
irresoluta alma,
longínqua
e misteriosa.
Breve
a seca virá
e eu,
bem depois de tudo isso,
guardarei lembranças
dos teus passos,
e o silenciar noturno da tua voz.




In. Amena Flor da Madrugada.
Imagem retirada da Internet: passos

Almáquio Bastos - Poema

File:Woman naked Buttocks.jpg

POESIA DE ALCOVA


O que é o silêncio
Senão o ecoar do surdo fremir
De asas da borboleta
Que decola após sugar suavemente a seiva
Na vulva da flor?

O que é o desejo
Senão a minha certeza
do roçar de asas da borboleta
que adorna o seu jardim secreto no vértice entre coxas?

O que é a poesia
Senão a lírica angústia
Deste poeta de alcova
Que se ocupa com a saudade do que não viveu?





Rainer Maria Rilke - Poema



Dançarina Espanhola


Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.


Tradução: Augusto de Campos


Fonte:Culturapara.art

Imagem retirada da Internet: Espanhola


Fabrício Carpinejar - Poema

Poema do livro Biografia de uma árvore



Ouvidos de orvalho



Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos.
A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado.
Não há como recuar depois de arder alto.
Fui lançado cedo demais às cinzas.

Somos reacionários no trajeto de volta.
Quando estava indo ao teu encontro,
arrisquei atalhos e travessas desconhecidas.
Acreditei que poderia sair pela entrada.
Ao retornar, não improviso.

Minha conversão é pelo medo,
orando de joelhos diante do revólver,
sem volver aos lados,
na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.

O vento faz curva. Não mexo nos bolsos,
na pasta e na consciência,
nenhum gesto brusco de guitarra,
a ciência de uma mira
e o gatilho rodando próximo
do tambor dos dentes.

Derramado em Deus, junto meu desperdício.

Vou te extraviando no ato de nomear.
Melhor seria recuar no silêncio.

Cantamos em coro como animais da escureza.
Os cílios não germinaram.
Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,
estampas e ervas no peito.
Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,
compondo esquina com a noite.

Cantar não é desabafo,
mas puxar os sinos
além do nosso peso,
acordando a cúpula de pombas.

Somos fumaça e cera,
limo e telha,
névoa e leme.
O inverno nos inventou.

Não importa se te escuto
ou se explodes meus ouvidos de orvalho:
morre aquilo que não posso conversar?

Ficarei isolado e reduzido,
uma fotografia esvaziada de datas.
Os familiares tentarão decifrar quem fui
e o que prosperou do legado.
Haverei de ser um estranho no retrato
de olhos vivos em papel velho.

Escrevo para ser reescrito.
Ando no armazém da neblina, tenso,
sob ameaça do sol.
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido.

Vejo degraus até no vôo.
Tua violência é a suavidade.
Não há queda mais funda
do que não ser o escolhido,
amargar o fim da fila,
ser o que fica para depois,
o que enumera os amigos
pelos obituários de jornal,
o que enterra e se retrai no desterro,
esfacela a rosa ao toque
na palidez das pétalas e velas,
vistoriando cada ruga
e infiltração de heras entre as veias,
nunca adulto para compreender.

Não há nada de natural na morte natural.
Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar
as pernas, acomodar-se no finito
de uma cama e deitar com o tumulto
que vem de um túmulo vazio.


In.Página do autor

Imagem retirada da Internet:máquina de escrever


Fabrício Carpinejar - Poema


Poema do livro Terceira Sede



Décima elegia



Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.

Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.

Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.

É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.

O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom-dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.

O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.

Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o vôo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.

Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.



In. Página do autor

Imagem retirada da Internet: Velhice

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...