JJ Leandro - Conto



SERTÃO VIOLENTO







O vasto sertão do Tocantins, quando ainda Goiás, demorou a ser povoado e depois do povoamento, a ser pacificado. Havia até o início do século XX um imenso deserto verde e poucos homens. A maioria migrante do Nordeste, homens fugitivos de lutas eternas naquela região contra a seca perene ou de guerras fratricidas. Uma vez na nova terra reproduziam os vícios de antanho. Ou então geravam ali novas disputas.



A família de Severiano Bezerra migrara para a aprazível região de Monte Alegre com o intuito de alcançar paz e crescimento, e não apenas crescimento econômico; procurava se recompor de guerras intestinas que quase fizeram-na desaparecer. Chegaram ali o velho José Bezerra, a esposa Quintina e o filho Severiano, o caçula, único remanescente de uma prole imensa de 14 filhos, quase extinta ao longo de 25 anos de sangue.


Tão logo botou os olhos sobre a imensidão verde do cerrado e de seus morros exuberantes, que não eram avaros como os homens de lá, José Bezerra morreu. Deu um último e longo suspiro, expiatório de toda a mágoa que o fazia secar por dentro a cada morte de um filho ou um neto. A velha Quintina, suave como a brisa de um final de tarde, tão de acordo com o marido que ninguém lhe ouvia a voz, mas de olhos brilhantes e expressivos que refletiam o acerto de todas as decisões do velho Bezerra, fechou-lhe os olhos no leito de morte. Levantou os olhos para o filho Severiano, ele os viu remansosos, brilhantes, irradiando felicidade. Era o brilho de esperança dos açudes cheios no sertão cáustico do Nordeste. Para qualquer outro seria estranho essa centelha fora de hora, mas ele acostumara vê-los assim cada vez que ela avalizava uma difícil decisão do marido. Juntos tomavam-na e juntos festejavam-na ou lamentavam-na. Nunca, no infortúnio, havia acusação recíproca.


Portanto, foi quase um pleonasmo o que ela disse em seguida, numa voz estranha que Severiano praticamente já desconhecia pela falta de uso. Mas que saiu sem dor, descansada, prenhe de bons augúrios.


—Morreu feliz e em paz. É o que vale!


Um dia depois do enterro quase a sós, pois eram ainda estranhos na nova terra, a velha também expirou. Severiano e os dois homens que os acompanharam desde o Nordeste prepararam a cova e o sepultamento de Quintina ao lado do velho pai, ao pé de uma frondosa faveira. “Os bons merecem paz e sombra”, meditou enquanto rezava.


O sol incendiava o mundo a sua volta às duas da tarde. O horizonte tremia como se labaredas de aço brotassem do chão. A essa hora a linha do horizonte era uma pintura que se dissolvia num borrão pelo efeito das vibrações do calor. “Essa também não é uma terra para fracos”, adivinhou, “é um inferno no qual faltam apenas os demônios.”


Persignou-se diante das duas sepulturas recentes e, rompendo com o passado, iniciou a sua história.


O destino ou seu pai — inconscientemente — quisera que ele iniciasse sua vida e sua história em terra virgem, onde seus feitos não sofressem o desgaste da comparação nem o ofuscamento dos feitos de outros homens. Severiano não desejou isso, nem a vida que levou daí em diante. Viu-se de repente lançado em um torvelinho e teve que se tornar um bravo para não ser moído. Mas só se torna bravo quem traz latente essa condição inata. Ele trazia. Nada ali era garantia de vida: bravura ou fraqueza. Sabia apenas, com a experiência da terra de origem, que os bravos viviam mais ou morriam com glória.


Tinha vinte e cinco anos quando sepultou os pais e passou a guiar os próprios passos sem arrimo. Passou recluso no mato três anos, dali mesmo despachou os homens que vieram com a família para buscar mais homens no Nordeste, para a lida. A região de Monte Alegre era de tal forma um vazio de homens que ouvir a própria voz tornava-se um exercício estranho. Naquela imensidão de mato verde e sol perseguidor o canto dos pássaros e o rugido das feras tornavam-se mais familiares aos ouvidos que a voz humana. E até mesmo menos temidos. Para não se sentir só, nem se pejar de vergonha ao ouvir a própria voz, Severiano declamava alto os versos de cordel dos repentistas nordestinos e cantava as canções de ninar que aprendera ainda pequeno com dona Quintina, antes de sua voz se silenciar porque em casa o casal era uma só pessoa, e ela deixava que José Bezerra falasse pelos dois.


Assim solitário Severiano passou seis meses. Os homens chegaram e com eles a propriedade cresceu. Para Severiano, era inusitado que fosse invadindo o mundo com cercas, sem que ninguém reclamasse. De onde viera, a cada passo dado opunha-se a resistência dos que não queriam retroceder; por isso, os homens pisavam-se. A cerca de uma propriedade praticamente invadia a cozinha da outra, os homens olhavam-se com ódio ancestral e quem podia engolia o outro.


Em Monte Alegre havia terras e mais terras, morros e serras que se sucediam — dando feição infinita à imensidão —, riachos e rios murmurando a água límpida com os buritis de atalaia ao lado, mas nem um dono. Com o direito da primazia, garantiu o que pôde para si. Parou de crescer para todos os lados quando outros proprietários também distantes encostaram suas cercas às dele.


A região passou a ter vários senhores latifundiários. Começou então a criar gado. O sertão era ainda pacífico. Mas a prosperidade da pecuária trouxe consigo dissabores. O charque que cruzava as serras de encontro ao dinheiro dos garimpos de cristal e ouro da Bahia despertou em homens que labutavam nas perigosas lavras baianas a cobiça pela pilhagem fácil em terra de ninguém.


Apareceram na região os primeiros bandoleiros. Homens sanguinários e desalmados que sobre o corpo das vítimas mortas acendiam o fogo com que preparavam as refeições fugazes. Severiano, como tantos outros migrantes nordestinos, impregnava-se do desejo de uma vida pacífica, mas não havia renegado a beligerância depositada em suas veias pelos avoengos. Bastou a mais tênue lembrança dos sertões nordestinos para que os migrantes recrudescessem também em violência. Severiano armou seus homens até os dentes, também estes calejados em disputas nas terras distantes, e determinou que fossem impiedosos com os intrusos.


Os sertões, que nunca viram uma mulher chorar sobre o corpo do marido ou do filho morto em refregas, começaram a verter lágrimas e espargir aos ventos os seus lamentos.


Por essa época Severiano conheceu duas pessoas decisivas em sua vida: Maria da Conceição, filha de outro migrante, que morava em Monte Alegre, a várias léguas de sua propriedade, e Cipriano, então namorado dela. Iam casar-se os dois. Maria era moça silenciosa, de uma beleza ímpar perdida naquela imensidão que começava a ficar turbulenta. Mas os olhos cândidos não acusavam vontade própria. Brilhavam porque a luz, sempre excessiva por ali, feria-os como se quisesse acordá-los. “Ao que está morto, qualquer cuidado é desperdício”, dizia seu pai num lamento sem reserva. Por isso, tratou de contratar seu casamento com Cipriano, um homem de meia idade, porém fogoso. Intrépido, como convinha à sobrevivência nos sertões bravios. Tinha deixado família no Nordeste e nunca acusara desejo de trazê-la para a região de Monte Alegre. Queria uma nova mulher. Como eram poucas por lá, contentou-se com a pequena mulher de pele branca, quase transparente, olhos taciturnos que retinham o tempo e escondiam todas as alegrias nas retinas escuras. Um desmaio de vida. Se naquele tempo a preocupação com a saúde fosse maior que com a multiplicação da espécie, Conceição estaria nas mãos de um médico. Mas a vida por vir sempre prometia mais que a vida que já deixava rastos no chão. Por isso, a urgência de qualquer família era a geração de descendentes para povoar a imensidão e sustentar o patrimônio arduamente adquirido.


Severiano encontrou-a, portanto, às vésperas do casamento. Bateu os olhos nela e o sangue ferveu no corpo. Poderia a falta de mulher justificar seu súbito interesse? Era um questionamento aceitável para seu interesse por quem todos consideravam insossa. Mas não havia tempo para render-se a cogitações. Ela retribuiu, também encantada. Os olhos dela pareceram explodir em música de mil orquestras, liberando toda a alegria aprisionada, o tempo fluiu célere de seu esconderijo, dando-lhe vertigens. Severiano tinha porte: era jovem, alto, musculoso, pele curtida pelas intempéries, como a terra áspera. Só tinha delicadeza nos olhos, mas mesmo estes somente a acusavam quando a alma era arrebatada por fortes emoções, como agora.


Severiano dividiu-se aflito, por mais de mês, entre as ações para repelir as investidas dos celerados baianos que infestavam o sertão e as visitas ao povoado para botar os olhos sobre Conceição. Não demorou e Cipriano notou o interesse de ambos. Criou-se um mal-estar na pequena vila. A intriga correu à solta. Até os pássaros e as árvores sabiam que um dos dois homens estava com os dias contados.


De parte a parte amigos e inimigos foram pródigos nos avisos. Os primeiros, querendo evitar a tragédia; os segundos, incitando-a. E Severiano, homem prático, insatisfeito com a situação, procurou Cipriano. Apenas flertava com Conceição e queria, portanto, pôr termo ao desconforto da situação. Foi recebido com indelicadeza. Houve discussão, o tempo fechou e amigos de ambos evitaram que chegassem às vias de fato. Mas apenas adiaram o enfrentamento e a tragédia. Os dois eram poderosos na cidade. Seus bandos dizimavam como a varíola os bandoleiros que atravessavam a fronteira para a prática da rapinagem. Não eram homens de medo, estava claro. Olhavam diretamente nos olhos, sem a cisma ou a negaça dos covardes. O resultado foi um desafio feito por Severiano: duelo a faca na praça central. O repto teve aceitação imediata. Procrastinar era acusar covardia. Ficou por marcar a data. E Cipriano mandou urgentemente dois homens de feia catadura com a resposta até a fazenda de Severiano: o duelo aconteceria em três dias!


Três dias depois estavam os dois homens na praça com seus bandos armados até os dentes. Desceram de alazões ajaezados com esmero testa a testa, parecendo combinação de segundos. As regras foram gritadas aos quatro ventos para dirimir qualquer dúvida por Emerenciano, pai de Conceição, a quem coube a árdua tarefa de árbitro da peleja. Duelariam a faca de tamanho, conformação e afiação iguais, segurando cada um com a mão esquerda, pois eram destros, à ponta de uma corda com um metro e meio de tamanho. A regra era clara: venceria quem prostrasse ferido ao chão, por mais de dois minutos, ou matasse fulminantemente o adversário; ou ainda aquele que permanecesse agarrado firmemente à corda enquanto o outro a largasse para fugir aos golpes. O prêmio: Maria da Conceição como esposa e todos os bens do derrotado. O bando do vencido não podia revidar ao fim do duelo, aceitando o novo senhor.


Regras aceitas, partiram para o duelo. A pracinha, um chão de terra limpa, algumas árvores nativas enfeitando-a, várias casas pobres observando o choque dos titãs, estava cheia de gente e dos capangas dos dois homens. Era um cenário pobre demais para a estatura dos dois contendores. Eles se livraram sem pressa das camisas e das armas que levavam ao coldre; olharam-se nos olhos. Não havia medo, só determinação em ambos.


Maria da Conceição refugiou-se na casa paterna. Orava ao pé dos santos no oratório rústico do quarto. Jamais disse por quem pedira, mas pedira por um dos dois.


Eles ensaiaram com pés ágeis em botas de cano alto os primeiros passos. Os bicos das botas riscavam o chão, levantando pó. Os torsos de ambos logo se cobriram de suor. Eram dez horas da manhã. A corda vibrava, espichando-se quando um deles se desviava do golpe da faca adversária. A assistência mantinha um silêncio nervoso, rompido apenas pelo som do entrechoque do metal de quase uma centena de armas em prontidão. Nos primeiros minutos a habilidade logrou sucesso sobre a vontade de ferir o oponente. O suor já chegava à calça rústica e era abundante nos dois. O cabelo desgrenhado dava-lhes aspecto de fera faminta. Nenhuma palavra, somente rugidos escapavam de suas gargantas. Quem primeiro acertou um golpe foi Cipriano. Pegou abaixo do peito esquerdo de Severiano, e só não acertou em cheio em seu coração porque ele girou de lado e a faca passou rasgando carne e rangendo sobre os ossos das costelas. O sangue que jorrou arrancou a assistência do estado hipnótico em que se encontrava. As armas agitaram-se como folhas metálicas ao vento, mas se contiveram. Os olhos de Severiano injetaram-se de dor e ódio. Ele mordeu os lábios para silenciar a dor. Cipriano leu determinação em seus olhos e não esboçou sequer um sorriso de contentamento pelo golpe. Os inimigos respeitavam-se. Redobrou, por sua vez, a atenção para o revide que sabia vir. Severiano, com vigor, deu uma volta com a corda em torno da mão em busca de apoio para puxar o adversário para si. Seus músculos se retesaram numa explosão de volume. O forte safanão aproximou os dois homens. Ele tentou golpear Cipriano na jugular, mas o movimento de defesa, afastando o pescoço para o lado, fez com que a faca rasgasse fundo a carne do ombro que se elevara. Cipriano gemeu, recuou, riscou o chão com as botas, levantando poeira, e procurou recompor-se. Os movimentos de ambos tornaram-se mais lentos. Lutavam há quase meia hora e os primeiros sinais de cansaço apareciam nos seus rostos crispados de dor e ódio. Antes do fim, Cipriano ainda acertou a faca uma vez em cada braço de Severiano, e a ponta fina dela penetrou dois centímetros em seu abdômen, próximo ao umbigo. Mas o golpe decisivo quem desferiu foi Severiano. Acabara de ser ferido no braço esquerdo, que segurava a corda. Cipriano então cometeu o erro de desviar por um segundo os olhos da faca adversária para o braço ferido. Severiano contraiu o braço ferido e num estalo de chicote, puxou violentamente Cipriano para si. Cansado e ofegando, ele veio. Severiano recebeu-o com o cabo da faca apoiado ao umbigo e a ponta levantada num ângulo de 45 graus. Cipriano caiu mole sobre ele quando a faca penetrou-o sobre o diafragma, rompendo ossos e atingindo-lhe o coração. Num gesto involuntário, a mão que segurava a faca bateu sobre as costas de Severiano, riscando-as profundamente na vertical.


O bando derrotado afastou-se para a fazenda, levando o morto consigo. Severiano, quase desmaiado, foi levado triunfalmente pelos seus homens até o farmacêutico para a sutura dos ferimentos. Que ninguém se enganasse, a peleja ainda não estava terminada. O capataz de Cipriano, Ludgero, homem ardiloso e de ambições ilimitadas, proclamou-se dono das terras do defunto, pilhou Monte Alegre, como intimidação, e recolheu-se à fazenda Alegrete, imaginando-se a salvo de qualquer retaliação.


Quando se sentiu curado das feridas, Severiano pegou seus homens e foi na fazenda Alegrete reclamar-lhe a posse. Foi recebido à bala, revidou e depois de cinco horas de renhida luta, invadiu a sede. Encontrou Ludgero escudado por cinco homens na sala grande. Muitos cadáveres espalhavam-se pelo soalho de madeira. Reteve seus homens à porta e entrou sozinho. Os cinco capangas de Ludgero fugiram para a cozinha quando o viram marchar destemidamente sobre eles, e tentaram safar-se pelo quintal. Foram abatidos a tiros pelos homens de Severiano ali emboscados. Restaram na sala, cara a cara, Severiano e Ludgero.


Este balbuciou amedrontado:


—A fazenda é sua...


—Eu sei, canalha! – disse, desferindo tremendo soco na cara do capataz.


Este caiu e tentou escapar de quatro por baixo de uma grande mesa. Não tinha sequer coragem de sacar a arma ou a faca, que eram brinquedos inúteis em sua cintura. Quase foi elevado do chão pela mão forte do fazendeiro.


— Covarde... —vociferou. —Como pôde Cipriano ter esse tipo de gente consigo?


Puxou a faca da bainha na cintura e sangrou Ludgero, cuja covardia ressumava dos olhos, incrédulos ainda da tamanha audácia de Severiano. O golpe de misericórdia desferiu com um tiro de pistola Mauser. “À bala, como merecem os covardes”, resmungou entre dentes.


Severiano se casou em seguida com Maria da Conceição, teve cinco filhos, que os abandonaram pela cidade grande, e encerrou aí o capítulo turbulento de sua vida. Embora acreditasse nisso, contudo, não morreria placidamente.


Em 1955, num dia estival, ao meio-dia, na sede da fazenda Monte Alegre, ainda um domínio gigantesco, ouviu um tropel vindo do passado. Ele cresceu, causando-lhe arrepios. Quem seria assim apressado num tempo em que os automóveis eram mais rápidos? Olhou para Maria da Conceição sentada diante de si à mesa de refeições e ela tinha nos olhos cansados a mesma surpresa e a sua mesma pergunta.


Não se levantou para conferir. Algum dos seus vaqueiros, com certeza, diria o que acontecia. Esperou. Mas quem entrou intempestivamente na grande sala foi um homem de meia idade. Atrás dele dois homens com rifles em punho postaram-se contra a parede, em sentinela.


Severiano aprumou o corpo frágil e quis desfazer o equívoco.


—O que é isso? —perguntou tranquilamente.


O homem sorriu nervoso.


—O senhor não sabe?


O velho sacudiu negativamente a cabeça, como para afastar fantasmas de um tempo extinto que lhe vinham cobrar uma dívida.


—Pois eu explico! —disse o homem irritado com sua placidez.


Silenciosamente, as mãos trêmulas enquanto executava a ação, ele depôs sobre a mesa um revólver e uma faca. Medo ou ódio? tentou avaliar Severiano, alternando olhares às suas mãos e ao seu rosto.


Depois do esforço da tarefa passou as costas da mão direita pelos lábios secos, que Severiano interpretou como sinal de nervosismo, e disse afinal:


—Como prefere morrer?


Maria da Conceição saiu do transe que a mantivera calada até então. O marido voltou-se em sua direção e viu seus olhos cheios de lágrimas e a garganta explodindo em gritos. Era diferente de sua mãe: nunca conseguira boa convivência com a turbulência da região e a violência dos homens. Por isso ele achou melhor quando, a um sinal do homem, os dois jagunços sumiram com ela em direção à cozinha. Os gemidos da mulher permaneceram um bom tempo ecoando em seus ouvidos. Diferenciou-os com propriedade dos lamentos e das imprecações dos inimigos no momento fatal; desde os remotos tempos do Nordeste não estabelecia essa distinção, e não se surpreendeu por ainda tê-la tão viva malgrado o tempo e a idade.


—Como prefere morrer, à bala ou a faca? — tornou o homem, tentando dissimular a ansiedade.


Depois de um curto silêncio, Severiano falou, olhando-o firmemente nos olhos.


—Nunca fiz essa pergunta a ninguém. Lia nos olhos a morte que merecia, e executava-a imediatamente como um derradeiro favor.


—Acostumou-se a matar covardes à bala e bravos à faca?


Severiano esboçou um leve sorriso nos lábios murchos.


—Sabia diferenciá-los, você não sabe?


O homem deu passos nervosos pela sala. Severiano olhava-o com dó. Ele recuou até a porta e chamou para dentro dois comparsas para ocuparem o lugar dos que retinham Conceição na cozinha. No pátio, espalhados em pontos estratégicos, quase uma vintena deles esperavam o desenlace da ação.


—Sabe diferenciá-los? —insistiu.


—Como matou Cipriano Soares? —inquiriu o homem sem dar atenção a sua pergunta.


Então era isso! Um descendente de Cipriano que lhe vinha cobrar a sua morte.


—Num duelo. Ele era um bravo. Um homem como poucos nessas terras.


—Mas ainda assim o matou.


—Muitos morreram aqui.


—Sim! Há por toda parte tantas cruzes quanto árvores e tantos túmulos quanto morros.


Severiano deu-lhe razão.


—Isso mesmo, e você achando que ainda é pouco; mesmo com a certeza de que sua ação é já anacrônica.


—Todo tempo é tempo — defendeu-se, acrescentando como justificativa o gasto jargão: —A vingança é um prato que se come frio.


Outra vez Severiano sorriu.


Os homens encostados à parede impacientaram-se com o diálogo arrastado e o que consideraram uma reação cínica de Severiano. Com gesto nervoso um deles bateu o chapéu na perna, derrubando o pó da estrada.


—Saiba, jovem, a vingança tarda apenas para duas espécies de homem: os covardes e os impossibilitados de executá-la.


—Você merece morrer à bala, como um covarde.


Severiano uma vez mais o olhou diretamente nos olhos, mas ele não aguentou a força e o poder que emanavam das velhas pupilas sem medo.


As moscas começavam a zunir sobre a mesa, reivindicando o alimento abandonado.


—Vi muitos homens matando com armas de fogo para esconder a própria covardia ao dizerem, como você, que covarde merece bala.


O homem irritou-se profundamente com seu comentário. Seus comparsas atrás resmungaram qualquer coisa, também irritados, o que o deixou ainda mais feroz. Ele dirigiu a mão nervosa para a mesa onde depositara as duas armas. Vacilou entre a faca e o revólver. Severiano aguardava impávido o fim de sua indecisão. Podia apenas pensar com desdém: “em outros tempos esse aí teria durado pouco”.


Por fim, o homem decidiu-se. Pegou o revólver, que pesou em sua mão. “Uma coisa é remoer um ódio por muitos anos; outra é um covarde executar um homem friamente”, refletiu Severiano ao ver o penoso esforço do outro para concluir a tarefa.


Apontou-lhe a arma para o peito e logo mudou para o rosto. Ainda a indecisão. Era assim tão caro para um covarde a escolha de um lugar para atirar? pensou Severiano.


O tiro que ecoou na sala cortou o fio de seus pensamentos, parecendo ter acertado Conceição, que lançou ao alto gritos que estremeceram os caibros da casa. A cabeça de Severiano pendeu para diante e sua fronte tocou o tampo da mesa com som oco bem onde estivera o prato, afastado quando o homem chegara. Parecia dormir de cansaço.


Quase se arrastando, o homem abandonou a casa entre os seus capangas


Imagem retirada da Internet: Jagunços

Gabriella M. - Poema













Mercador



Você me vende flores
E eu as compro com a ternura toda
Que tenho em mim.

Meu mundo em você
Se torna alma em corpo, sem muita profundidade,
Coberta das flores compradas, perfumadas.

E me vejo toda acolhida
me deixando sentir, mesmo sem ser,
com jeito de primavera ganhando espaço.

E sei lá, se é tudo mentira
Se é tudo um teatro, se são todas
de plástico…

Mas se for,
você será somente e nada mais
Que um vendedor de flores.

E eu,
Serei somente e nada mais
que o Sol.


Imagem Botticelli: Primavera

Brasigóis Felício - Poema Manifesto

BOIÁS, O BERÇO ESPLÊNDIDO


1. Em Bóias é preciso que os artistas morram,

para serem vistos e tidos como vivos.


2. Vivos, os artistas não têm valor algum:

são seres de menos valia.


3. Para que despertem do olvido em que vivem,

é preciso que saiam do mundo dos vivos.


4. Sobrevivem e vencem apenas os que,

em vez de se apoiarem no poder da cultura,

vivem encostados na cultura do poder.


5. Vivo, não existo e não sou visto.

Uma vez no oblívio, serei lembrado

pelos outros mortos vivos.


6. Se recordassem que logo estarão mortos,

certos poetinhas e poetastros não falariam tão alto.

“Daqui da terra ninguém sai vivo”.


7. Certos proscênios de artistas

fedem mais do que prostíbulos.


8. No mercado onde tudo se compra e se vende

só os artífices da palavra não têm valor.

Talvez porque os poetas tenhas se tornado invendáveis

porque não estão para se vender.


9.Para as leis de incentivo à cultura

os políticos são o primeiro setor:

os artistas são o último.

Wender Montenegro - Poema


Poema-Fogo

para Herberto Helder




Impossível ver seu rosto de homem
pentecostes na voz em meio à sarça ardente
seiva bruta na saliva que irriga lavouras
de poemas e ostras e algas
do mar da Madeira, ilha de mistérios
onda a levedar no pão de cada lua
ofício cantante em harpa de ouro e trigo
louros ressequidos pelo sol selvagem
de seu autoexílio.

Impossível ver seu rosto em bronze
diamante polido pela mão de um anjo
a gritar: – Ó zona de baixeza humana!
Mítico maldito em estado selvagem

o olhar varado pela flecha de prata
do menino-bardo

cordão umbilical atado a tudo

que o tempo lavrou em vil caligrafia:

fogueira e monturo no buço da noite
cabelos de plantas descendo os adobes
ressaibos de dores nos poros do amor
explosão do átimo de Deus
lavas de dragão incinerando a pátina
vulcão regurgitando a própria entranha
escarrando pro céu o cuspe de sua alma.

Impossível não ler Herberto em chamas.



Imagem retirada da Internet: Herberto Helder

Brasigóis Felício - Ensaio curto


A vingança da sombra



Por Brasigóis Felício*




“Não me toques nessa dor;ela é tudo o que me sobra/sofrer/vai ser minha última obra”. Estes são versos de um poema de Paulo Leminsky, que Zélia Duncan transformou em canção. E talvez tenha sido a profética e terrível escolha da dor, feita pelo poeta, que preferiu morrer de vodka, a morrer de tédio. E quem sou eu, para julgar a des-qualidade do amor por si mesmo, ou da escolha da morte, por parte do poeta curitibano, perdido na selva selvagem da paulicéia?

Quando somos crianças, acreditamos que ser valente é agir... de preferência, com brutalidade e violência. Quando nos tornamos adultos, descobrimos: a verdadeira coragem se dá quando não resistimos ao momento... e vivemos com deslumbramento o mistério de cada coisa, presente em tudo o que nos acontece. “Deus começa onde cessa o movimento” (Yogananda).

Sim, é vero: há desqualidades do amor, que afrontam toda lógica e toda razão: certas pessoas nos amam enquanto lhes damos coisas, e satisfazemos seus desejos. Tão logo os bens que lhes damos sejam negados, o amor será trocado pelo ódio. Isto quando um tal amor, tão desqualificado de verdade, é só interesse, des-afeto afetado de apego.

Por outro lado, certas pessoas são capazes de cometer crueldades tão piedosas, que fazem espinhos parecerem rosas. Viver onde só há opositores implica em viver em constante tensão: então somos como cordeiros a céu aberto, havendo alcatéias de lobos por perto. Vampiros da alma não descansam, enquanto não vêem suas vítimas exangues, sugadas de seu espírito, entregues à ruína e à degradação.

Há um corpo de memórias, e a trama das circunstâncias. Os dois são camadas da consciência. A trama do que acontece é mero acontecimento, fruto do encadeamento de causalidades mecânicas, colocadas em ação por vício, hábito, ou simples repetição mecânica. São meros efeitos de ações vindas de personas, que não se sabem por quem são, uma vez que acreditam ser as máscaras que usam. Se buscássemos nos guiar pelo Eu Sou (a consciência primordial, que tudo sabe e vê) nada poderia nos tirar a segurança, a serenidade e a paz.

Joseph Murphy assinala, em O poder do subconsciente: “A maioria das pessoas não sabe que a causa de tudo o que lhes acontece é o seu próprio estado de consciência. Um estado de consciência significa o que você pensa, acredita e consente mentalmente”. Assim, pode-se dizer que vive em miséria permanente quem mantém sua consciência em estado de miserabilidade.

No distrair-se dos barulhos do mundo, reside o silêncio essencial, pelo qual se pode enxergar, com olhar límpido, as cristalinas verdades da Vida. Que o olhar do vulgar não pode nem quer perceber, tal é sua ânsia em se perder, nas pobres tramas do Ter. Vemos, assim, que o consciente reprime o inconsciente, e o expulsa do cenário visível da existência. Como se fosse o único morador, ou o mordomo da casa do Ser. Mas aquele que se vê expulso da morada que lhe cabe habitar, por direito inalienável, vinga-se terrivelmente. E nada poderá detê-lo, em sua ira destrutiva.

Pois que o esquizofrênico e alienado olhar do “animau” humano não sabe: a parte de si mesmo que rejeita, sempre dá um jeito de se impor, e de exercer seus direitos, como personagem sombrio e poderoso, do teatro da vida. Não entender, ou rejeitar tal realidade, implica em abrir as portas da existência para terríveis desastres. Isto C.G. Jung já sabia: “A alma primitiva do Homem confina com a vida animal, da mesma forma que as grutas dos tempos primitivos foram habitadas por animais, antes mesmo que os humanos se apoderassem delas”.


*Brasigóis Felício é Poeta e Jornalista, Membro da Academia Goiana de Letras.


Imagem retirada da Internet

Célio Pedreira - Ensaio Poético


NOSSA SENHORA DO ACERVO DAS INTENÇÕES



Um tempo quase desistindo de ser arremeda esses dias antigos da rua que insiste em chegar sempre nos átrios. Assim propenso a vigília sinto os benditos de Dona Miúda estreitarem os quintais para habitar uma sala de chão batido. A parede escuta mesmo. A parede da sala até responde o bendito entoado. Outras vozes se juntam para alcançar os agudos e seguir a procissão das almas. As almas vão abrindo cancelas, achando caminhos por entre as candeias. As almas entendem a luz das candeias como trilha para um dia e depois o outro dia, devagar.

Aqui se repara o tornar de beatas, a desfiar pendor de madrugadas para abrandar essa vida amuada. Usuárias de calejar-se, nem alegam o copioso enfado de refazer sobras de caminho.

Dona Miúda assenta um tapete em renda suave no chão da sala para um bálsamo aos joelhos que lamentam as almas. As vozes agora nem mais necessitam das bocas e conseguem romper portais, janelas e candeias. As vozes já montam seus cavalos e se atiram nos breus das almas. Segue noite alta já. As almas dispersam em redes e balançam um adormecer na intenção de amanhecer.

O dia é igual dia de lida mesmo. Lenha, fogo, panela pouca e a boca que espera o bendito para saciar a vida. Dona Miúda abana a brasa e sabe que o fogo é quem tempera a salvação das almas. Dona Miúda lembra que toda sorte de morte pode ter serventia de canto, o alimento mais precioso das almas. Por isso o chão da sala precisa ser lavrado de bendito, para alimentar a vida. Para fazer a farinha se juntar com a carne frita na boca das almas. Sem isso a fome é certa e a intenção da vida míngua.

Tardezinha, depuradas em santas, as rezadeiras se juntam para ciscar os silêncios, ou talvez surdir um mercê para ficar implicadas de amém.


Imagem retirada da Internet: procissão das almas

Arthur Rimbaud - Poema


As mãos de Jeanne-Marie



Jeanne-Marie possui mãos fortes,
Sombrias, que o verão marca.
Mãos pálidas como mãos mortas
- São as mãos de Joana D'Arc?

Conhecem cremes morenos
Sobre sua pele nua?
Teriam afogado luas
Em fundos lagos serenos?

Sorveram o ar de céus bárbaros,
Outrora em calmos instantes?
Ou enrolaram cigarros?
Traficaram diamantes?

Em ardentes pés de Madonas
Fizeram secar as flores?
É o sangue das beladonas
Que as suas palmas colore?

Essas mãos caçam pequenos
Dípteros, de asas azuis,
Que bebem néctar e luz?
Mãos que decantam venenos?

Ah, que sonho as arrebata
Nessa pandiculação?
Um sonho raro da Ásia,
Dos Khenghavars, do Sião?

- Jamais venderam laranjas;
Nem cultuam deuses gregos:
Nem nunca levaram fraldas
De gordos meninos cegos.

Mãos que não são de mimos;
De operária em fundição,
Que acende, ao calor da usina,
Um sol ébrio de alcatrão.

São mãos que se amoldam fáceis
E a ninguém fazem mal.
São mãos fatais como máquinas,
Mais fortes que um animal!

Como fornalhas acesas,
Fazem arder corações.
Sempre entoam Marselhesas,
E nunca rezam orações!

Vosso pescoço, madames,
Apertarão até o fim!
Senhoras de mãos infames
Lambuzadas de carmin.

Mas essas mãos amorosas
São muitas vezes cruéis.
E nas falanges formosas
O sol coloca rubis!

A mancha que o povo deixa
Em seu dorso imaculado
Faz que o homem revoltado
Fervorosamente a beije.

Comovem-se encantadoras
Ao sol de amor carregado;
Ao som de metralhadoras
Através Paris sublevada!

Muita vez, em vossos pulsos
- Mãos sacras que, de ilusões
Os meus lábios embriagam -
Grita o metal dos grilhões!

E é um Sobressalto estranho,
Que nos sacode e dá medo,
Quando ao clarear-vos, mãos de anjo,
Fazem-vos sangrar os dedos!


Tradução de Ferreira Gular


In. Portal Literal
Imagem retirada da Internet: Mão

Arthur Rimbaud - Poema


















Vagabundagem


Lá ia eu com as mãos em meus bolsos furados;
O paletó também se tornara irreal;
E sob aquele céu, Musa! eu era teu vassalo;
E imaginava amores nunca imaginados!

Nas calças um buraco e eu só tinha aquelas.
- Pequeno Polegar das rimas, sonhador,
Instalei meu albergue na Ursa Maior.
- Lá no céu o frufru de seda das estrelas...

Eu as ouvia, sentado à beira das estradas,
nas noites boas de setembro, quando o orvalho
revigorava-me a fronte como um vinho;

E em meio às sombras fantásticas, então,
dedilhava, como se fossem lira, os elásticos
de meus sapatos, o pé junto do coração!


Tradução de Ferreira Gullar

Imagem retirada da Internet: Rimbaud

Gerardo Melo Mourão - Poema



NAQUELE TEMPO


Naquele tempo
o filho dos Mourões era pastor e muitas coisas
pastoreou seu cajado
o bode o cavalo o boi
e os rifles bandoleiros entre
a Canabrava dos Mourões e a Baixa Verde
dos Mourões
e por ali
tangia o pegureiro sua flauta
pastor de anjos tangeu uns tempos
os serafins e os querubins e Querubina
Januzzi à sombra
dos jasmineiros:
pastor das putas sua flauta
gemia nas esquinas e alegrava os bordéis e a
canção de Lesbos
saudava as meninas machas do L’Étoile
(para Paula e Jane)
e a flauta feiticeira
envenenou teus dias
e tuas noites:
de sua melodia
viveram e morreram as amadas e à beira
de suas sepulturas
o pastor das defuntas sopra o choro
pelas que se mataram de amor.

Pastor hei sido em tanto monte, desde
o monte de Vênus ao monte de Sião
e ao monte galego onde damas de copas e espadas
ambulavam na ronda
pastor de moedas — digo o Banco de Crédito
Real —
cordeiro de Deus tonsurado e imolado
naquelas mangedouras
gado inútil cevou-se à ração de meus dias
e os demônios astutos
dançaram sarabanda no monte de Sião —
e as damas
de copas e espadas corriam
do bordel de Helenita ao de Marina
e os lobos devoravam as meninas
dos olhos do pastor
e nada nos foi poupado — Angelo Simões
de Arruda, nada, Efraín,
pois pastor de heróis condottieri e guerrilheiros
tresmalhados todos os rebanhos — Abdias —
restava apenas este pastoreio
das putas e esta flauta
que nunca lhe caiu da boca na viagem
e um dia nesta flauta
apodrecido o canto de cantar
ensaiasse o pastor no sacro bosque
enfeitiçar os animais e as pedras
quem sabe as fêmeas — sempre elas — de
narinas acesas e de ouvidos em flor
esperassem à noite a serenata irresistível
e pedras e serpentes e fêmeas começassem
a chegar arrastados
da doce melodia.


Imagem retirada da Internet.

José Godoy Garcia - Poema

José Godoy Garcia


Espécie de balada da moça de Goiatuba




Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.

A moça de lá
é só chamar vem

De Goiatuba
eu guardo
muitas recordações

De lá eu guardo
muitas recordações

Lá tem rua
que parece bicho
querendo se esconder
por detrás do mato

Lá tem homem
que lutou na revolução

Lá tem farmacêutico
que sabe latim

Lá tem padre que mora
com mulher na rua de cima
e de tarde sobe de lanterna na mão
Lá tem cadeia
assombrada
e tem louco nas grades rindo feito
bicho com fome
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração bom ela tem
A moça de lá
desde menina
serve aos homens
com sabedoria
Toda moça no mundo
aprende que corpo
não se pode mostrar
vestido deve vestir
vergonha deve sentir
amor deve esconder
sonho pode sonhar
A moça de lá
não aprendeu a sonhar
A moça de Goiatuba
é como a fonte
que dá de beber
é como a árvore
que dá frutos
é como a noite
que dá as estrelas
Ela só não compreende porque os homens
têm coisa com ela
Um dia indagou:
-“Por que ocêis me mandam
deitar no chão?”
-“Eu visto meu vestido,
eu ponho colar bonito,
eu enfeito os meus cabelos
com flor
Eu estou bonita
com o meu vestido
eu estou bonita
com esta flor
vocês me mandam tirar vestido,
ocês são bobos?”
Lá em Goiatuba
tem uma moça
que coração grande ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.


In. Os Dinossauros dos Sete Mares. José Godoy Garcia.
Imagem retirada da Internet: José Godoy Garcia

Marinalva Rego Barros - Poeta

[O+BOTO]

Leveza


Deixe que os botos
guardem os rios
e os casarões cochichem
sobre nossa ingenuidade.

Deixe que o abacateiro
transponha o muro
e se apaixone
pela rua antiga

Permita ao mundo
suas pequenas fatalidades,
como a canoa muda
que assiste
respeitosa
a morte do dia.



In. Antologia do I Concurso Nacional de Poesia - Academia Tocantinense de Letras. Palmas: Papyrus, 2006, p.19.
Imagem retirada da Internet: Boto

Karl Theodor Kõrner (1791-1813) - Poema

Adeus à Vida





Meus lábios tremem; punge o golpe ardente.
No lânguido bater do peito ansiado
sinto ao termo da vida ter chegado.
Teu era; a ti me entrego, ó Deus clemente!

Que visões que afagaram minha mente!
Mas ai! que o sonho em morte é dissipado.
Valor! O que em meu peito hei fiel guardado,
viverá lá comigo eternamente.

A idéia que adorei qual divindade,
que exaltava meu jovem ser fogoso,
ou lhe eu chamasse "amor" ou "liberdade";

ei-la ante mim, qual anjo luminoso;
e perdendo eu da vida a faculdade,
subirá com minha alma ao céu radioso.


Tradução de José Gomes Monteiro



Imagem retirada da Internet: despedida

Carlos Drummond de Andrade - Poema


Papai Noel às avessas





Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.


Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.


Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.


Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidentes
brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.


Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.



In. Receita de Ano Novo, 2008.
Imagem retirada da Internet

Carlos Drummond de Andrade - Poema


A bunda que engraçada



A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.



In. O Amor Natural.
Imagem retirada na Internet: Bunda

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