O Poeta da Totalidade - Ensaio Crítico





Por Rodrigo Petrônio*


Se o poeta é mesmo um mediador, como queria Platão, aquele que intercede pelos deuses e faz falar em sua voz humana as palavras numinosas e divinas, que encarna na língua dos homens aquela linguagem ancestral de onde não só promana o verbo, mas que possibilita a própria existência da linguagem, poucos poetas deram um testemunho tão arrebatador dessa potência da poesia do que Saint-John Perse. E esse milagre se realiza com tanta pujança que, no seu caso, falar de poesia como se essa fosse um correlato do sagrado chega a ser quase um truísmo. Não só poesia e sagrado são a única e mesma coisa, como a melhor metáfora para o poema seria a de um altar em chamas, onde se consuma o fogo dos deuses e onde o homem se imola, sacrifica-se em sua finitude humana para, assim e somente assim, ingressar no reino da Totalidade que lhe fundamenta em seu ser e aderir ao devir de um tempo finalmente redimido.

Não é por acaso que, tendo-se em mente tal natureza de criação poética e de concepção de arte, o próprio Saint-John Perse comparará o poeta ao sacerdote: é aquele que no mundo moderno mantém aceso o fogo da superação de todos os limites e que força o espírito a transcender toda e qualquer contingência material. É desse impulso vital que emana a sua poesia e nele é que se funda o ímpeto de transgressão sobre o qual toda a verdadeira atividade poética se radica. Transgressão porque faz das balizas que se divisam no mar os pontos flutuantes de uma peregrinação incessante rumo ao Absoluto, e funda sobre a imagem mítica deste mesmo mar um palco onde se desenrola o destino da humanidade rumo ao esplendor e à transitividade, à impermanência e à grandeza épica que este mar encerra, em oposição à derelicção, ao abandono, à amargura e ao espírito de gravidade que aprisiona os homens no Porto, em terra firme, seres feitos exclusivamente para a morte e cativos de sua própria miséria.

Em um paralelismo curioso, é por meio do trabalho incansável de outro sacerdote espiritual, que também exerce função semelhante no mundo das letras, tamanho é o seu empenho e generosidade intelectuais, que o leitor brasileiro agora tem a oportunidade de ter acesso direto a essa poesia. Trata-se da tradução de Amers – Marcas Marinhas, obra fundamental, dir-se-ia uma das grandes obras da língua francesa, que vem a lume sob a esmerada e impecável tradução do Frei Bruno Palma*, que há 30 anos se dedica ao estudo e à tradução minuciosa deste que foi um dos maiores poetas do século XX. Assim, a atividade de Bruno Palma como tradutor é um caso exemplar em nossa vida intelectual. Haja vista o seu currículo invejável: sólida formação humanista e filosófica, conhecimento das línguas clássicas, longa estadia como pesquisador na França, onde foi aluno de ninguém menos que Julien Greimas, e, por fim, condecorado com a alta distinção de Cavaleiro pela Ordem das Artes e Letras do governo francês.

Por sua vez, a trajetória de Saint-John Perse, pseudônimo de Marie-René Aléxis Saint-Leger Leger, é das mais singulares e vale a pena ser comentada. Nascido em 1887, de família francesa, em Pointe-à-Pitre, na ilha de Guadalupe, no arquipélago das Antilhas, logo parte para a França. Cursa a faculdade de Direito e mais tarde, depois de cumpridos os anos de aprendizagem na Escola de Altos Estudos Comerciais, ingressa na carreira diplomática. Viaja pela Espanha, Inglaterra, Alemanha. Cumpre missões na China e retorna à França, onde é nomeado para o alto cargo de chefe de gabinete de Aristide Briand, Ministro de Relações Exteriores. Com a ofensiva alemã e a tomada de Paris, é demitido de suas funções e tem sua cidadania e seus bens confiscados pelo governo de Vichy, em 1940. Exila-se nos  EUA, de onde enceta uma série de novas viagens, podendo regressar ao solo francês apenas no final da década de 50, quando dá início a um novo período de sua vida, repleta de prêmios, condecorações, publicações e traduções de sua obra, vindo falecer em setembro de 1975.

Esses dados biográficos não são gratuitos, tampouco têm função ornamental em relação à sua obra. Se pensarmos, como o fez o crítico Albert Henry, que a obra de Perse se funda em uma poética do movimento e do devir, sua própria situação itinerante pode nos afiançar essa hipótese, bem como corroborar a permanente insatisfação e a profunda insubmissão que movia o poeta, presentes ao longo de seus versos e referidas como sendo a grande virtude da poesia, como diz a famosa (e poética) carta a Dag Hammarskjöld, consultor do tradutor sueco de Perse. Se pensarmos que a tônica de sua poesia é a adoção de uma perspectiva cultural ecumênica, ou seja, uma poesia que pretende dar uma configuração universal de toda a humanidade, na qual não raras vezes somos tomados por uma riqueza vocabular, histórica e geográfica desconcertante, poesia esta que também trata sempre de celebrar a viagem, não só em sua dimensão literal, mas também em seu sentido alegórico, como travessia do homem pela sua existência na Terra, os dados biográficos e poéticos se complementam, formando juntos uma só fisionomia do homem que os compôs.

No caso de Amers, trata-se de obra complexa, que foi publicada em partes, em revistas literárias, e depois reunida em volume, em 1957. Sua estrutura é sinfônica e de difícil redução didática. Subdivide-se em quatro partes: Invocação, Estrofe, Coro e Dedicação. Cada qual conta com uma seqüência de cantos, que vão se inter-cambiando, de modo que temos, se não um enredo, já que não lhe subjaz propriamente uma estória, um itinerário, que se abre às mais variadas interpretações e leituras. Atravessam essas quatro partes uma série de figurações, ou seja, de personagens que representam instâncias do real, indivíduos ou grupos humanos. São elas: Oficiais e Trabalhadores do Porto, Mestre de Astros e de Navegação, as Trágicas, as Patrícias, a Poetisa, as Profetisas, as Jovens e os Amantes, aos quais é dedicado o canto IX, Estreito são os Barcos, um dos mais belos da literatura erótica ocidental moderna e um dos poemas mais famosos de Perse. As remissões ao mundo grego e às tragédias são evidentes e programáticas: não só Perse estabelece um paralelo entre o seu mundo poético e a antiguidade, como usa, para a criação do espaço cênico de Amers, elementos e uma disposição semelhante às dos grandes teatros gregos, sendo o palco o próprio mar, onde se desenreda o fio da trama humana tendo o céu como pano de fundo.

Por seu turno, a pluralidade de sentidos da obra já começa pelo título. Amers, em linguagem técnica da marinha, são marcas, balizes que se fixam no mar para orientar a navegação. Porém, ela tem ressonâncias do verbo amar (aimers) e do vocábulo amares, que quer dizer estar diante do mar. Além disso há uma outra acepção: como notou a poeta Dora Ferreira da Silva em estudo sobre o poema e como ratifica Bruno Palma, amers também se aproxima de amères, que é amargo, e, ao dar a justa dimensão alegórica do percurso da humanidade, compara o desenrolar do nosso destino neste mundo com a amargura das águas que nos presenteiam com sua eterna novidade assim como nos arrojam na mais profunda solidão, finitude e instabilidade. O mar como correlato objetivo do puro movimento, do devir incessante, do ser unívoco e monista dos primeiros filósofos pré-socráticos, como Unidade imanente que corresponde ao próprio universo, tal como foi dito pelo poeta em carta a Roger Caillois, um dos maiores estudiosos de sua obra.

De fato, para Saint-John Perse o mar não é apenas uma entidade mítica, uma metáfora poética de alta carga semântica ou o ideal de uma vida colhida em pleno curso e em seu frêmito vital de expansão. O mar é signo da própria existência, corresponde àquela clareira do ser de que nos fala Martin Heidegger, e é também o Aberto por onde se acede ao Absoluto e onde nos reconduzimos àquela nossa pátria natural alienada: a Totalidade. Se desde o início dos tempos ela nos fôra privada e por ela o homem erra como um eterno exilado, tal como o solitário de Babel e Sião vive exilado da pátria Celeste, como nos diz Camões, e por sua ausência o homem vive preso à rotina da Cidade e da terra firme, entre as sombras do Porto, a poesia é um dos meios privilegiados pelos quais ele pode reconquistá-la e restituí-la. Porque nela se realiza a síntese suprema entre o instante que pulsa e o eterno, entre o movimento das imagens que nos vêm aos olhos, as vagas que quebram e se renovam, o mar que é sempre e sempre outro e sempre recomeçado, e aquela Imobilidade fulminante que só existe para além da percepção e dos conceitos, sede de toda a nossa vida possível e horizonte de toda a nossa liberdade.

Quando diante dela, cabe a destruição do poeta pela luz que exorbita os limites humanos. Aqui entra o mito de Xiva, que tanto atraiu Perse e que tanto marcou sua infância e seu imaginário. Mito pelo qual sua ama indiana, desde criança, lhe instilara a admiração, chegando a compará-lo a ele. E aqui nasce o poeta, como pequeno deus modelador do real, sob o signo de Xiva. Deus da suprema criação que é ao mesmo tempo a suprema destruição, destruição transfiguradora e criação que revolve tudo dentro de si, ímpeto prometeico rumo às origens e destruição da realidade tomada como uma das faces do sonho e da ilusão, véu de Maia, mergulho no sono das criaturas rumo à reorganização da ordem divina. É o poeta tomado pela hybris, emulando o Criador, querendo ser também ele um deus que cria o mundo pela intercessão da palavra poética. Mas também é o poeta em sua mea culpa, em um dos seus últimos livros, chamando-se a si mesmo de “macaco de Deus”. Não adianta a atitude simiesca, a imitação da música, a aspiração à divindade: tudo no mundo sublunar é causa segunda e derivação do primeiro sopro de Deus. Não adianta a atitude megalômana: somos todos ainda mais criados de Deus do que seus criadores. Poesia como meio e fim, essência e origem, sacerdócio e cuidado, contra o niilismo e o materialismo do mundo moderno e contra a vileza de valores de uma sociedade devastada.

Poesia como ciência do ser, porque toda a poesia é uma ontologia, diria Perse em um texto crítico. É um mergulho nas zonas indevassáveis do real e um parti pris do silêncio que institui a própria possibilidade da Palavra. Poesia da liberdade, da liberdade em seu estado puro e de pura latência, liberdade fundadora e original, não como algo perdido no tempo e em uma ancestralidade remota, mas como uma força que irrompe e se projeta no presente, e se oferece como o fundamento mesmo da própria possibilidade de nossas vidas e de nossos atos. Assim é o mar de Perse: instância projetiva do real, realidade fulgurante e ígnea, sempre apontando para a transcendência de si mesmo e do mundo pobre dos fenômenos visíveis e tangíveis. Para lembrar o discurso que o poeta pronunciou em Florença, em 1965, no sétimo centenário de nascimento de Dante, a poesia partilha de um tempo que não é nem histórico nem eterno: é um constante agora. E nesse sentido, Perse, ao falar do grande poeta florentino, falava sim de si mesmo. Dele que ergueu sua voz e fê-la alçar-se à dimensão daquela era plena da linguagem, de que nos fala o poeta, domínio próprio da poesia e sua morada, onde a palavra de Saint-John Perse, a sua precária palavra de homem, transfigurou-se, se susteve e agora permanece e há de se manter, como a de Dante, incólume e inaugural, sobre a lâmina do abismo dos séculos que se sucederão indefinidamente.



* SAINT-JOHN PERSE. Amers – Marcas Marinhas. Tradução, Introdução e Notas de Bruno Palma. São Paulo, Ateliê, 2004.

*Rodrigo Petrônio é um dos mais significativos poetas contemporâneos.




In. Revista Amálgama
Imagem retirada da Internet: Saint-John Perse

Gottfried Benn - Poema


                               


















Ah, o país distante






Ah, o país distante,
onde aquilo que desgarra o coração
sobre seixos redondos
ou sobre juncos, como libélulas frementes
murmura,
e a lua
de luz astuta
      - metade madura, metade branca de espigas –
ergue, tão consoladora,
o duplo fundo da noite –

       ah, o país distante,
onde o fulgor dos lagos
aquece as colinas,
por exemplo Asolo, onde repousa a Duse;
todos os navios de guerra, mesmo os ingleses,
baixaram as bandeiras quando “Duílio” passou por Gibraltar,
trazendo-a de Pittsburg, de volta –

        lá, monólogos
sem relação com o que é próximo,
sentimentos íntimos
precoces mecanismos,
fragmentos de totem
no ar brando –
um pouco de pão doce na jaqueta –
assim passam os dias,
até que depois de um longo voo
os pássaros possam pousar
perto do céu, num ramo



Tradução de Dora Ferreira da Silva


Imagem: Wikipedia

Escritor e filósofo Benedito Nunes morre aos 81 anos


Companhia das Letras
crítico e filósofo Benedito Nunes, autor de "Clave do Poético", vencedor do prêmio Machado de Assis 2010

Da Folha. com Ilustrada


O escritor e filósofo paraense Benedito Nunes, 81, morreu na manhã deste domingo (27). Ele estava internado havia dez dias no Hospital Beneficência Portuguesa de Belém (PA). Às 20h de sábado (26), foi transferido ao CTI (Centro de Terapia Intensiva), após sofrer hemorragia no estômago, mas não resistiu.

O corpo está sendo velado na igreja Santo Alexandre. Amanhã, às 9h será realizada uma missa de homenagem ao escritor e logo após, às 11h, o corpo será cremado no cemitério Max Domini, localizado no município de Marituba (20km de Belém).

VIDA E OBRA

Nascido em Belém em 21 de novembro de 1929, Benedito José Viana da Costa Nunes foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia do Pará, posteriormente incorporada à Faculdade Federal do Pará.

Por "A Clave do Poético", Nunes recebeu o prêmio Jabuti na categoria crítica literária, em 2010. No mesmo ano, ganhou o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

Em 1989, publicou "O Drama da Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector", um ensaio literário sobre a escritora.

DEPOIMENTOS

Aldrin Figueiredo, escritor e amigo de Nunes, conta que teve o privilégio de ter escrito um texto em parceira com ele, e que fez o prefácio de uma de suas obras, "Luzes e Sombras do Iluminismo no Pará", escrito em 2004, com Milton Hatoum.

Nunes era crítico literário e de arte, e sua primeira análise foi sobre as obras da escritora Clarice Lispector. "Desse estudo foram criados dois livros, 'O Mundo de Clarice Lispector' e o 'Drama da Linguagem', onde se observa uma análise fenomenológica e existencialista", explica Aldrin.

Ele conta que as obras foram elogiadas por Clarice que se tornou amiga do autor.

Amarilis Tupiassu, professora de Letras da Universidade Federal do Pará e da Universidade da Amazônia, afirma que Nunes estava sempre de bom humor, e uma de suas últimas brincadeiras foi dizer que, quando saísse do hospital, a primeira coisa que iria fazer seria comer um pastel.

"Benê sempre foi brincalhão até nessa situação ele fez piada." Ela lembra que quando ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa, homenagem feita aos professores eméritos, ela fez a saudação.

Diléa Frate - Conto



Palhaçada


       Eram dois palhaços: o palhaço esperto e o esperto palhaço. O palhaço esperto era exatamente igual ao esperto palhaço. Impossível reconhecê-los, assim, a olho nu. O único que sabia exatamente quem era o esperto palhaço era o palhaço esperto. O palhaço esperto era responsável por todos os números engraçados do circo, enquanto o esperto palhaço apenas aproveitava do talento e semelhança do outro, para ficar fazendo micagens. Apesar da confusão, o palhaço esperto nunca se importou com as enganações do outro; ao contrário: achava graça em ver que o público se divertia, enganado pelo falso talento do outro. Já o esperto palhaço morria de inveja do talento de seu semelhante e, um dia,  durante um número perigoso de equilíbrio no fio, cortou um pedaço da rede que devia sustentar o companheiro, que caiu no chão e morreu. Ninguém pôde acusar o esperto palhaço, que, esperto, escondeu todas as provas. Conseguiu se esconder até de si mesmo. Sem o parceiro que dava suporte às suas piadas, o esperto palhaço deixou de ter graça e gastou o resto da vida achando que era esperto e fazendo o papel de palhaço.



In. História para acordar. São Paulo: Companhia das Letras,1998, P.66.
Imagem retirada da Internet: Palhaçada

Imortal da Academia de Letras, Moacyr Scliar, morre aos 73 anos


Membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar sente muito pela morte do colega. Foto: Reprodução /Reprodução
Graciliano Rocha
De Porto Alegre (RS)

Morreu neste domingo (27) o escritor e colunista da Folha Moacyr Sclyar, 73. A morte ocorreu à 1h. Segundo o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, onde ele estava internado, Scliar teve falência múltipla dos órgãos. O velório acontece hoje na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a partir das 14h.

O escritor sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico no dia 17 de janeiro. Ele já estava internado para a retirada de pólipos (tumores benignos) no intestino.



Moacyr Scliar morreu aos 73 em Porto Alegre; corpo será velado a partir das 14h na Assembléia do RS
Logo depois do AVC, o escritor foi submetido a uma cirurgia para extirpar o coágulo que se formou na cabeça. Depois da cirurgia, ele ficou inconsciente no centro de terapia intensiva.

O quadro chegou a evoluir para a retirada da sedação, mas no dia 9 de fevereiro o paciente foi abatido por uma infecção respiratória e teve de voltar a ser sedado e à respiração por aparelhos.

Por causa da idade, os médicos evitaram fazer prognósticos sobre a recuperação do escritor.

CARREIRA

Nascido em Porto Alegre e formado em medicina, o escritor e colunista da Folha publicou mais de 70 livros entre diversos gêneros literários: romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio.

Sua obra tem forte influência da literatura fantástica e da tradição judaica.

Integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2003, Scliar já recebeu prêmios Jabuti, uma das mais prestigiadas premiações literárias do país, em 1988, 1993, 2000 e 2009.

Entre suas obras mais importantes destacam-se os livros 'A Guerra no Bom Fim', 'O Centauro no Jardim', 'O Exército de um Homem Só' e 'Max e os Felinos'.




Fonte: Folha.com - Ilustrada
Foto reprodução: Scliar

Maria Teresa Horta - Poema


          
Beijo  
o à vontade das mãos  
na imagem dos homens  
   
O oceano  
por entre o oceano  
   
a paz estagnada  
no contorno dos espelhos  
   
Beijo-te  
na terra à secreção  
dos passos  
   
ódios redondos  
acuado de seios  
   
a noite na espessura    
quente  
das almofadas sem manhã  
   
a imortalidade    
abortada  
que mulheres conduzem  
presas  
pelo ventre e saciadas  
de filhos  
   
Beijo  
o absoluto contido  
nos objetos sem casta  
   
a incerteza branca  
das paredes  
imóveis  
   
a insalubridade arqueada  
no silêncio espesso  
das portas sem casas  
com jardins malogrados  
no início do nada  
como se depois das vertentes  
árvores fossem  
chuva  
ou nuvens fossem árvores  
   
Beijo-vos  
a todos por de dentro  
dos lábios  
   
as línguas da areia  
nas bocas das praias  
   
golfos quadrados  
de alvorarem  
barcos  
   
barcos erectos  
agressivos de mastros  
   
A cidade é nossa  
   
Beijo-te  
na cidade  
nas ruas onde carros  
são flores  
que crescem em ruídos  
de palmas  
   
Beijo-te  
na sede aguda  
que gaivotas têm de céu  
e de estátuas  
   
estátuas anemia  
de cabelos   
em patamares de doença  
   
missivas acres  
de grades aciduladas  
   
a água é no princípio  
das palavras  
   
veia fechada  
saliente nas rochas  
   
água vertebrada  
com pulmões escondidos  
   
Beijo-te  
na água de caules  
sucessivos  
   
O grito é um navio  
perdido  
na memória  
   
Beijo-te  
no vidro  
   
searas verdadeiras  
de cristal p'lo  
ódio  
   
a batalha é o azul  
que deixamos atrás  
   
Beijo  
a súbita vontade  
da vigília dos partos  
os suicídios moles  
com precipícios vastos  
   
as pedras castradas  
nas retinas dos   
gatos  
   
horizonte  
na distância onde o crime  
acontece nas lâminas  
   
Fatos inconcretos  
na geometria  
do medo  
   
as viúvas são laranjas  
vestidas  
de encarnado  
   
Beijo-te  
esquecida na vertigem  
das algas  
   
o vento é oblíquo  
nas âncoras antecipadas  
   
as lágrimas  
são incógnitas  
na orgânica dos sons  
   
Introdução às pétalas  
na urgência da glória  
   
abelhas saqueadas  
na saliva ruiva  
em poentes sem vértice  
a boiarem na pele rugosamente  
opaca  
da lua  
   
A nossa vontade  
é nos ombros das plantas  
orvalho de febre sem objetivo  
   
Beijo-vos  
no bosque onde o animal  
   
é a penumbra  
e os joelhos da luz  
   
cogumelos de asfalto  
no centro de um inverno  
sem notícia nem espanto  
   
Beijo-vos   
prolongada de gerações  
em silêncio  
   
é para nós agora  
a vez  
das planícies que erguemos  
pelas ancas  
na curva onde o hálito  
é ansiedade no homem  
   
são para nós  
as notícias de mortes  
   
necessárias  
na simetria do espaço  
   
Beijo-vos  
nos pulsos de naufrágio  
circulares  
   
a onda é um motivo  
assimétrico de revolta  
   
Fronteiras mutiladas  
cedo  
rente aos cais  
   
Beijo-vos  
na vontade de recomeçarmos  
os olhos  
   
os cavalos  
são paisagens  
e o neon é um cavalo  
de mergulharmos os dedos  
   
Beijo-vos  
a todos nos meus lábios  
onde antiguidade de manhã  
é gaiola insubmersa  
de nunca existirem passos 


                          In. Palavrarte
                          Foto by Francisco Perna Filho 

Vasco Graça Moura - Poema


Auto-retrato com a musa





1
.


vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).

ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,

palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra

e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.


2


quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,

nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo

não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,

amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmegianino,

nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.


3


quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.







Apud Releituras
Imagem Magrite: Espelho

Vasco Graça Moura - Poema


Soneto do amor e da morte


quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 



In.  Antologia dos Sessenta Anos


Imagem retirada da Internet: mãos dadas


Alexandre Bonafim - Poema


   
     
III



Do poema nada nos resta
a não ser essa viagem
rumo aos mares,
esse gosto de naufrágio
ao findar das paixões,
esse astrolábio partido.

A leitura do poema,
peixe cego, barco amputado,
nada nos ensina,
em nada modifica
a força das marés.

Rastro de espuma
na pele dos acasos,
o poema finca suas âncoras
no sal, na eternidade,
onde nossas ausências
ardem o grito dos corais.

O poema é nudez precária,
procela sem ventos, sem nuvens.
Quando nele adormecemos,
acordamos com os ossos fraturados,
vergastados pelas maresias.

O poema é tão inútil
quanto o mar ao fim da tarde.

Por isso seu esplendor é límpido
como a beleza da morte.



Do novo livro de poemas Celebração das marés
Imagem retirada da Internet: Astrolábio

Manuel Bandeira - Poema



Versos Escritos N'água


Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.

Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.





Imagem retirada da Internet: folha seca

Manuel Bandeira - Poema




SATÉLITE


Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.





In. Estrela da vida inteira. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p.232.
Imagem retirada da Internet: Lua

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