Rosana Carneiro Tavares - Ensaio


Pet Shop / Mundo Cão*


Por Rosana Carneiro Tavares


Viver socialmente nos imprime uma necessidade de hipocrisia que vai muito além de qualquer conscientização de nosso papel social e de nossas ações orientadas por valores pessoais. Somos, na realidade, engolidos pelo nosso sistema. Somos todos hipócritas!

Não sabemos porque trabalhamos, porque compramos determinados produtos, porque nos divertimos, para que estudamos, enfim, não sabemos porque vivemos. Só sabemos que precisamos trabalhar, incansavelmente, para viver. Trabalhar até não podermos mais fazê-lo porque adoecemos ou porque morremos.

Temos uma imensa necessidade de adquirir as coisas que não podemos jamais parar. A televisão de 30 e tantas polegadas, tela plana, tela côncava, tela convexa. O celular cada vez menor, mais iluminado e estridente. O carro a cada dia mais redondo, hoje com uma antena no teto, no próximo ano ela vem no pára-choque, no outro em cima do retrovisor, enfim não podemos perder nenhuma oportunidade de aproveitar a evolução tecnológica que nossa sociedade nos proporciona.

Nessa busca desenfreada esquecemo-nos de procurar entender o sentido das coisas. Acreditamos que sabemos o que queremos e que temos liberdade para fazer nossas escolhas. Temos absoluta certeza de que somos livres, de que podemos fazer o que quisermos de nossas vidas. Podemos optar por trabalhar ou não, por participar de alguma mobilização social ou não, enfim podemos escolher entre viver ou morrer!

Somos tão livres que podemos escolher desistir de nos integrarmos ao nosso sistema social e, ao invés de produzir incansavelmente e consumir desenfreadamente, podemos “optar” por passar a viver das benesses daqueles que têm. E nessa crença de total liberdade e autonomia a sociedade se divide, uma parte detém o poder, a riqueza, o saber, enquanto a outra fica subjugada a essa.

É assim, a gente trabalha, e trabalha para manter o poder daquele que já o detém, não nos apropriamos do nosso trabalho, pois quem colhe os frutos é o outro. E, ainda assim, acreditamos que somos livres até para julgar aquele que não está inserido no mercado, aqueles que são marginalizados, como por exemplo os “loucos” , que “são um peso para a nossa sociedade e estão insuflando nosso sistema de saúde”.

É essa a nossa sociedade, onde as pessoas desesperadamente buscam se incluir, lutam pelo quinhão que acham que lhe é de direito, excluem aqueles que não o fazem, e não se julgam responsáveis pelo caos social instalado no mundo moderno. Todos responsabilizam o Estado para políticas inclusivas. O Estado toma essa responsabilidade para si, com programas e mais programas de combate à exclusão e acredita que está combatendo. E assim nós vamos “vivendo”, pagando nossos impostos e delegando ao Estado as responsabilidades sociais. As pessoas no poder de Estado acreditando que sua colaboração está sendo dada. Os excluídos, à medida que se fortalecem, vão criando movimentos sociais de pressão para sua inclusão nesse sistema. E a hipocrisia se firma, nesse modelo de sociedade solitária, quem se inclui, exclui.

E nós vamos trabalhando, trabalhando desenfreadamente, repetidamente pensando em nossos finais de semana e nossos dias de folga como sendo nosso lugar ao sol. E não nos permitimos, nem nesses momentos, o desfrute do lazer por mero prazer. Tomamos um chá “para relaxar”, andamos de bicicleta “para termos saúde por mais tempo”, ouvimos música “para combater o estresse”, e ainda, se nada disso não nos trouxer um sentimento de adaptação a esse mundo, podemos contar com as fluoxetinas, sertralinas e benzodiazepínicos da “vida”. Essa é uma vida normal, quem não se adapta a ela é louco, e aos loucos nós já demos a sentença: serão trancafiados em uma instituição qualquer, por inadaptação ao caos.




*Título tomando de empréstimo a Zeca Baleiro, cantor maranhense.

Rosana Carneiro Tavares é Doutoranda em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Psicologia do Trânsito (UniUberaba) e Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da Fundação Universidade do Tocantins. Autora do Livro Olhares:Experiência da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009, do qual este ensaio faz parte.

Imagem retirada da Internet:Bebê.

Martha Medeiros - Poema




QUANDO CHEGAR


"Quando chegar aos 30
serei uma mulher de verdade
nem Amélia nem ninguém
um belo futuro pela frente
e um pouco mais de calma talvez

e quando chegar aos 50
serei livre, linda e forte
terei gente boa ao lado
saberei um pouco mais do amor
e da vida quem sabe

e quando chegar aos 90
já sem força, sem futuro, sem idade
vou fazer uma festa de prazer
convidar todos que amei
registrar tudo que sei
e morrer de saudade."

Imagem retirada da Internet: Mulher

Milton Hatoum - Entrevista


Quando o mito vira história, e a história vira literatura




Por Livia Almendary

Reproduzido do Brasil de Fato nº 365, de 26/2/2010



O escritor Milton Hatoum se considera um “paulistano de Manaus”. Estranha forma de localizar uma origem, não fosse o fato de revelar logo de cara a ideia de um país marcado por realidades socioculturais e econômicas muito distintas, porém simultâneas no tempo e no espaço, separadas sobretudo pela nossa “narrativa política esquizofrênica”.


Não dá mais para pensar numa Amazônia desvinculada das questões urbanas de forma geral, ou pensar o Norte como um Oriente longínquo, uma massa verde povoada de apenas índios, esse nome genérico que designa “muitas vontades”. Também nos lembra que na época da ditadura militar, o movimento estudantil em Manaus, Belém e outras cidades amazônicas era muito ativo, e que ali foi um ponto de encontro privilegiado de culturas de muitos lugares do mundo. Nos mostra uma Manaus que passou dos milhares de habitantes para a casa dos milhões, e que enfrenta problemas socioeconômicos que não são exclusividade dessa região, mas que precisam ser pensados nas suas especificidades.


Em suma, Hatoum nos convoca – por suas palavras nessa entrevista, mas principalmente por meio de sua literatura – a prestar mais atenção na Amazônia, ainda desconhecida não porque a floresta é profunda, mas porque o olhar viciado construiu discursos e mitos que contribuem para ignorância que ainda impera sobre a região.


Paulistano de Manaus

Geralmente me apresento como um brasileiro de Manaus. Minha relação com a cidade onde nasci é muito forte e talvez seja, das muitas cidades em que vivi, a que mais me sensibiliza. Porém, sou um brasileiro de Manaus que já tem uma parte considerável de sua vida em São Paulo. Na verdade, sou paulistano de Manaus. Morei toda a década de 1970 aqui, depois morei em outras cidades, na Europa, voltei para Manaus, morei nos Estados Unidos. As duas cidades brasileiras com as quais tenho uma relação mais íntima, onde estão meus amigos, são Manaus e São Paulo.



São Paulo tem muitas atividades literárias, é onde as coisas acontecem, é aqui que estão meus leitores, ou a maioria deles. Por outro lado, tornou-se uma cidade muito cara, caríssima. É uma cidade cujo urbanismo é burro, não foi planejada – apesar de que poucas cidades brasileiras o foram –, a questão do transporte urbano é muito mal pensada. Tem 12 milhões de habitantes, é enorme, e tem pouquíssimas estações metro, por exemplo. É uma aberração.



Manaus de 68

Estudei no Colégio Amazonense Dom Pedro II, uma escola estadual do Amazonas em edifício neoclássico, enorme. É um colégio muito combativo. Durante o Regime Militar, criamos um jornalzinho chamado “O Elemento 106”. Na natureza, são 105 elementos químicos, nós criamos o elemento 106. Participava desse jornal com uns amigos, dois deles saíram de Manaus em 68. Esse jornal já expressava a participação de um movimento estudantil naquela região, depois em Manaus houve uma série de protestos e resistência. As pessoas pensam que só houve manifestações e resistência nas grandes cidades. Não, lá também teve, em Belém, na Amazônia toda.



Experiência e cidade

A diferença é fundamental para quem escreve romance. Hoje, a vida de uma criança em São Paulo pode ser muito limitada a uma balada, um bairro, um shopping, e eu não vivi isso. Minha infância foi em Manaus, mas não na beira do rio, como um ribeirinho de família cabocla. Foi uma infância mais urbana. Depois me mudei para Brasília muito jovem. Então vivi em Manaus, que é uma cidade portuária, numa época em que ainda era razoavelmente pequena, tinha uns 300 mil habitantes. De todos os modos, sempre foi uma cidade muito misturada, cheia de aventureiros, viajantes, imigrantes de vários lugares. Convivi um pouco com imigrantes do Líbano, da Síria, judeus marroquinos; foi uma experiência muito rica nesse sentido, fundamental para quem escreve.


Meu avô me levava para a cidade flutuante, que era um bairro proletário, com uma vida muito intensa, me levava às vezes para o interior. Ele era um contador de histórias, não havia televisão, então a relação com a cidade, com as pessoas, era muito mediada por narradores. As pessoas contavam histórias.



Mito, história, literatura

A literatura é mito, porque a literatura surgiu da narrativa e qualquer narrativa pode se transformar num mito. Há mitos positivos e mitos negativos. Hoje, o Brasil é um mito positivo no exterior, mas isso oscila muito, pode ser visto também com um mito negativo ou clichê, ou como um conjunto de clichês. E há sempre um momento em que mito deixa de ser uma crença e se transforma em história. Como o mito da Cidade Encantada, de Órfãos do Eldorado. O narrador lembra das histórias que ele ouvia de uma índia quando ele era criança na beira do rio, e depois essas histórias rebateram na vida dele. A literatura pode ser explorada em quatro ou cinco grandes mitos, mas a questão é como narrar.


Narradores da vida moderna

Acho que a literatura se revela na forma, na linguagem. Na narrativa, a principal questão é encontrar a voz do narrador, pois é a partir dela que vai se configurando a historia, as relações estabelecidas entre o narrador e os outros personagens. A escolha do narrador tem implicações até ideológicas. Se você construir um narrador cínico, completamente cínico, certamente está aí algum traço que você quis dar ao narrador que pode ter uma conotação ideológica. É como o discurso jurídico, uma arte, sem dúvida – mais ou menos explícita, mais ou menos oculta. É assim também no discurso político. O tom da voz narrativa pode deixar entrever posições ideológicas.


O gênero romance, de maneira geral, é escorado na trajetória de vida de um indivíduo, em torno do qual transitam outras personagens, podem ser parentes, desconhecidos, relacionados por encontros e desencontros. Nesse sentido, com exceção de Relato de um certo Oriente – que foi pensado como um coral de vozes, como uma história construída por diversos narradores e múltiplos pontos de vista –, meus livros se aproximam desse grande gênero da vida moderna. O grande tema da vida moderna é a solidão, que por sua vez faz parte da própria história da narrativa, se pensarmos que ela passou das vozes coletivas para a história do individuo, e do espaço coletivo para o espaço sobretudo da família burguesa. Em Dois irmãos e Cinzas do Norte, os que sobrevivem para contar a história são esses narradores solitários, ambíguos porque contam a história da qual eles mesmos fazem parte.


Contudo, muitas vezes, a partir dessas relações entre as personagens, é possível construir um mundo maior que elas. Essas personagens estão num espaço que é político, cultural, geográfico, e que extrapola suas vidas. Então, o romance abarca desde a visão mais microscópica de um individuo, ou um par de indivíduos, até um movimento que sai da luneta e vai para uma tela, um afresco, um movimento social mais significativo. É o caso do romance histórico do século XIX, por exemplo, em que figuram escritores como Balzac, Sthendal.


Agora, isso é muito diferente do blog que fala do individuo o tempo todo, e um indivíduo que passa o dia em frente ao computador. “Eu faço isso, eu faço aquilo”. Não tem conflito, não tem personagem, nada intriga. Parece uma historia qualquer que poderia ter acontecido com qualquer um e nesse sentido reduz muito a ideia de experiencia. E dela depende muito o romance, a literatura de forma geral.



Literatura e politica

A literatura não dá respostas, ela expõe questões, problematiza, faz perguntas a partir de conflitos, de situações que envolvem tragédias e dramas humanos, mas o faz de maneira oblíqua, mediada. Em Órfãos do Eldorado, esses “órfãos” podem ser pensados como aqueles que muitas vezes são iludidos com uma ideia de país da abundancia, uma promessa de desenvolvimento. Uma das cenas importantes desse livro é o desembarque dos seringueiros que saíram dos seringais e foram morar num bairro chamado Paraíso, quase cegos pela fumaça produzida pelo processamento do látex. São personagens, mas é possível pensar que, como eles, milhões de brasileiros também “perdem a visão”, ou são iludidos, na busca por uma promessa de vida melhor.


No romance Cinzas do Norte, a personagem do tio Ran debocha do sobrinho que quer estudar Direito. E olha que a época do romance é 1970, 80. Estruturalmente, o país não mudou: na altura dos três poderes, da pequena cidade com vereadores medíocres e corruptos ao supremo tribunal e ao congresso, as relações políticas são um acordo de cavalheiros para que as coisas não mudem.


Temos mais de 5 mil municípios e quanta indolência, negligência, irresponsabilidade e ignorância existe por aí. Quer dizer, chega uma caixa de livros do MEC no município x e não são distribuídos para as crianças. O cara responsável por isso não é patriota, não tem o mínimo senso de patriotismo, mas está lá, como prefeito, vereador. Há aos montes. Vai lidar com essa gente...


Nossa herança colonial deixou muita violência, nos deixou em estado de guerra. O Brasil vive uma guerra. No começo do ano foram assassinados 10 mil jovens no Brasil. Veja Manaus... estive lá o ano passado, em um mês houve 21 assassinatos. Que é isso?


Agora, o país avança assim mesmo, porque é enorme, tem muita gente trabalhando pelo país, tem órgãos públicos horríveis, mas tem alguns também maravilhosos, tem a sociedade organizada, ou uma parte dela. Tem algumas políticas públicas que estão dando certo, políticas de inserção social, políticas educacionais. Há várias pessoas que pensam no Brasil de uma outra forma, participam. Por isso digo que isso aqui é um grande manicômio, uma loucura, um país esquizofrênico: há um país que quer avançar e outro Brasil que é retrógrado, arcaico. É um avião trabalhando com uma turbina reversa, para trás, e a outra que vai para frente. O voo sai torto, meio adoidado.


É muito esquisito. Veja a Luiza Erundina, condenada a pagar mais de 300 mil reais; foi processada, quase perdeu o apartamento, o carro, enquanto há um Sarney na presidência do Senado. Falo isso porque acho a Luiza Erundina uma pessoa de uma enorme dignidade. Há mil casos de injustiças e isso está também no Cinzas do Norte, na figura dos prisioneiros que esperam por um julgamento. O desafio do romancista é falar dessas loucuras sem tomar partido, sem ser um romance ideológico no sentido dogmático.



Índios no plural

Meu primeiro contato com a questão indígena foi o conhecimento dessas pessoas deslocadas do interior da Amazônia para Manaus. Os índios e as índias eram levados para Manaus pelos colégios de freiras ou orfanatos e depois iam trabalhar nas casas da classe média. Inclusive, ainda é assim. Muitas delas saíam do Alto rio Negro para morar no Rio de Janeiro, muitas vezes nem sequer eram assalariadas. A Domingas, de Dois Irmãos, é uma personagem que deve muito à Felicité, uma personagem do Flaubert. Em Manaus, havia muitas Felicités. Apesar de se ler uma história um século depois da história do Flaubert, e de ser uma geografia e uma cultura totalmente diferente, as relações sociais e as relações de trabalho são muito semelhantes. A Felicité é uma pobre mulher que durante meio século trabalha para uma burguesa, a madame Aubin. É essa a história das empregadas domésticas de Manaus, que eram em sua maioria de origem indígena; algumas nem falavam, ou mal falavam português. Então meu conhecimento sobre os índios aparece pela primeira vez por essa via, por esse contato urbano.


Hoje a situação é muito mais complexa porque a Zona Franca, a indústria, atraiu muita gente de fora, muita gente do Pará, do interior do Amazonas, mas também do Nordeste, sobretudo os pobres do Maranhão. É um centro industrial no coração da Amazônia, o maior polo de produção de eletroeletrônicos da América do Sul, então imagina que essas pessoas vão para Manaus em busca de um Eldorado e essas pessoas moram em ocupações, barracos, sofrem problema, preconceitos fortíssimos, como o caso dos paraenses.


Há muitas comunidades de índios isoladas na periferia de Manaus, não se sabe ao certo quantas são. Alguns dizem que há 8, 10 mil índios em Manaus. Alguns vivem em comunidades fechadas e em bairros “indígenas”, outros são misturados com população pobre, e a maioria, quase todos são párias, fazem bicos, ou são ajudados pela Funai, formam uma espécie de proletariado urbano. Não houve nenhum esforço – ou melhor, houve – de integrá-los socialmente, mas aí também seria um esforço mais social, envolvendo a sociedade, a ideia que têm do que é “ser índio”. E seria preciso falar em índios no plural, porque tem gente que não quer ficar no Alto Rio Negro, não quer ficar no interior do Amazonas, mas há outros que sim. Há os povos que vivem bem no rio Negro, no Solimões, mas também há essa vontade de ir para cidade grande, vontade de muitas coisas, muitas ilusões.


Amazônia por partes

A Amazônia representa quase 50% do território nacional, é dona de uma riqueza cultural e econômica incalculável. E não há um projeto para ela, nossa grande contribuição a ela, hoje, é a grande burrice de transformar a floresta em pasto. Há muita empolgação com a redução do desmatamento, mas o desmatamento tem que ser zero, tem que parar de desmatar.

Agora, a Amazônia é muito complexa, ela não é essa floresta homogênea que faz parte do imaginário sobre uma região que continua desconhecida. Ela tem regiões densas, tem savanas, o Alto Rio Negro é uma paisagem, outra totalmente diferente é o Alto Solimões. Então, a Amazônia deve ser pensada por partes. Nesse sentido, o Jorge Viana, que já foi duas vezes governador do Acre, pensava a região de maneira brilhante, com um projeto para cada microrregião, cada uma delas com uma determinada vocação.


Por outro lado, para se fazer um projeto para a Amazônia, de ocupação econômica, exploração econômica, é preciso envolver as pessoas, a população, os cientistas que moram aí, que estudam o meio onde vivem. Há o Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia], o Museu Emílio Goeldi no Pará, a Embrapa, as universidades federais e estaduais, quer dizer, é preciso envolver essas pessoas, e o próprio ribeirinho. As vezes também é preciso desmatar, mas em que escala você vai desmatar? Que tipo de desmatamento e para quê? Não pode ser assim, sair queimando tudo para plantar soja e fazer pasto. Isso é loucura. Ao mesmo tempo é tão complexo – e por isso falei de manicômio – que tem até gente do Partido Verde da Marina Silva que é aliada a Blairo Maggi, eleito o moto-serra de ouro por organizações socioambientais.



E não podemos esquecer também que o drama da Amazônia é urbano. Quase 80% da população da Amazônia mora em cidades. As pessoas pensam que vão encontrar uma tribo, uma oca indígena em Manaus, chegam lá e encontram uma cidade extremamente diversa, plural, onde não importa a origem, se você é caboclo, índio, filho de libanês, filho de judeu, de marroquino, de espanhol, italiano. E também tem todos os problemas urbanos de outras cidades do Brasil. O lixo em Manaus – assim como em São Paulo e outros centros urbanos onde esse problema se tornou gravíssimo – é uma coisa de louco, na saída de uma enchente, há poucos meses, a cidade foi inundada de garrafas plásticas. E a questão da habitação, mesma coisa. Acho por exemplo, que na Amazônia, as cidades, nas capitais e no interior, deveriam ter projetos de arquitetura específicos e adequados para escolas, para moradia popular, para tudo. Se você olha hoje para as habitações populares e as escolas da região, são vergonhosas, nada a ver com o ambiente. Uma arquitetura burra, que é fechar tudo e tocar ar condicionado. Caixotes com ar condicionado, caixotes horrorosos. A região está em plena linha do Equador e não tem sombra, isso para mim significa burrice, não há outra, é descaso total. Manaus é uma cidade de quase dois milhões de habitantes onde, ao meio-dia, se estiver na rua, fica com a cabeça torrada.



Há um arquiteto carioca, Severiano Porto, que se estabeleceu em Manaus na década de 1960 e aí fez projetos maravilhosos, fez o projeto do Inpa, que virou uma espécie de oásis na cidade, com alamedas arborizadas, alpendrados, sombra. Esse tipo de atuação parece estar esquecida. Nesse sentido, há uma exposição aqui em São Paulo [ver serviço], de um fotógrafo francês chamado Marcel Gautherot, que mostra fotos da Amazônia nas décadas de 1940 e 1950. É incrível ver nessas imagens a beleza da arquitetura popular, as palafitas, uma sabedoria local para evitar que a casa sofra em tempos de enchente, ventilação cruzada, essas coisas. Então, pensar na Amazônia hoje é também pensar em questões urbanas. O problema ambiental brasileiro passa – e talvez sobretudo – pela questão das cidades.



Exposição fotográfica

Marcel Gautherot - Norte

Sob curadoria de Miltom Hatoum e Samuel Titan Jr a exposição reúne 70 imagens capitadas pelo fotógrafo entre os anos de 1940 e 1970. Com o olhar voltado para a Amazônia pescadores, boiadeiros e ribeirinhos são retratados em meio a uma região norte pouco conhecido.

Instituto Moreira Salles
Rua Piauí, 844, 1º andar, Higienópolis, São Paulo
Terça a sexta, das 13h às 19h;
Sábado e domingo, das 13h às 18h.
Até 21 de março 2010
Entrada franca


Quem é?

Milton Hatoum é de família de origem libanesa e nasceu no dia 19 de agosto de 1952 em Manaus, Amazonas. Considerado um dos principais escritores brasileiros vivos, Hatoum escreveu quatro romances: Relato de um Certo Oriente, de 1990, Dois Irmãos, de 2000, Cinzas do Norte, de 2005, (todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado, de 2008. Em 2009 lançou o seu primeiro livro de contos Cidade Ilhada.

Rosana Carneiro Tavares - Ensaio


Uma Janela para a Lua*


Por Rosana Carneiro Tavares*


Uma reforma prevê sempre a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental vem passando por um período de reforma, no sentido de reestruturar a atenção à saúde da pessoa com sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.

Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por um outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida e de toda a concepção social a respeito da loucura, faz-se necessário desconstruir a psiquiatria tradicional e o saber médico, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização e, conseqüentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos e cidadania.

A psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até possibilitar a “adaptação” do indivíduo na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação e para a dependência medicamentosa. Impedindo, assim, cada vez mais, o sujeito portador de sofrimento psíquico de “existir” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger, que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de que somente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.

O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação com sujeitos com sofrimento psíquico, trabalhando em conjunto com esse sujeito e seu grupo social para o exercício de sua cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação, onde o sujeito e o seu grupo social participam de seu processo de reintegração na sociedade.

O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.

O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, desprovidos de juízo, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.

Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.

Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuário, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.



*Filme de Alberto de Simone

Rosana Carneiro Tavares é Doutoranda em Psicologia(PUCGoiás); Mestre em Psicologia (UCG); Especialista em Saúde Mental (UCG); Especialista em Políticas Públicas (UFG); Especialista em Psicologia do Trânsito (UniUberaba) e Bacharel e Licenciada em Psicologia (UCG). Professora da Fundação Universidade do Tocantins. Co-Autora do Livro Olhares:Experiência da CAPS. Goiânia: Kelps, 2009.

Imagem retirada da Internet: Janela

Carlos Nejar - Poema














Designação


As coisas têm vida própria
quando ganham nome.
Não importa, se os símbolos
nos chamam. E só na porta
dos sentidos é que nos amam.

E o tempo come devagar
em nossa mão.
E foi um homem
que desenhou no bojo
da caverna, búfalos,
plantas, frutos,
ou um trovão,
indo escrevendo
sonhos.

E o umbral desconhecido
é o de um menino
com as vozes
que o guiam.

Tremem as pernas
por se moverem
atrás, adiante,
quando idiomas
vou falando
e jamais cedo
aos genitivos.
Só ao amor
chegando.

Guerras, secas,
tempestades:
as coisas têm
a idade
que bradamos.
E antes que envelheça,
estrangeiro,
medito sobre a areia.

E olho no oceano
as cheias e o peixe
que apanhei
com afiada faca
de uma estrela.

Comer, dormir
no vale.
E a descoberta
do fogo
ao bater
no seixo
o seixo.

E a centelha
da fome.
E procurei
meu povo.
Até ao abandono.

Ou aborrecer as coisas
para polir as sombras
e me sentir humano.

E com troncos
naveguei.
Fui sobre
a tromba da maré.
Atravessei
perigos,
tribos,
vínculos
e alcancei
a rocha
do equilíbrio.
E prossegui adiante,
bebendo
numa fonte,
à saciedade.

E diante da memória
e seu ruído tão moroso
de horas, vejo que ela
sabe de que lado
semear ou conter
a explosão
de olores, hábitos.

E a memória de um
é de outro e outro.
E se assemelha
a uma teia o mundo.
Sem revés.
E as coisas se revelam
quando lhes
damos nomes.


In. Revista Poesia Sempre, nº 30, Ano 15. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009, p.111-113.
Imagem retirada da Internet: Memória.

Jorge de Lima - Poema













Anjo daltônico




Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.

Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.

Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.

Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.


In.Humor e Humorismo, Editora Brasiliense - São Paulo, 1961, pág. 206, organizada por Idel Becker

Jorge Tufic - Poema


Jorge Tufic, (Sena Madureira, Acre, 13 de agosto de 1930) poeta e jornalista brasileiro,
Tufic iniciou sua educação em sua cidade de origem, transferindo-se posteriormente para Manaus, onde concluiu os estudos. Em 1976, foi agraciado com o diploma "O poeta do ano", prêmio concedido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas, em reconhecimento à sua vasta e intensa atividade literária. Tem seu nome inserido em várias antologias, entre as quais destacam-se "A Nova Poesia Brasileira", organizada em Portugal por Alberto da Costa e Silva, e "A novíssima Poesia Brasileira", que Walmir Ayala lançou na Livraria São José, no Rio de Janeiro, em 1965. É sócio-fundador da Academia Internacional Pré-Andina de Letras, com sede em Tabatinga, no estado do Amazonas. Fez várias conferências literárias e é membro efetivo de algumas entidades culturais, tais como: Clube da Madrugada, Academia Amazonense de Letras, União Brasileira de Escritores (Seção do Amazonas) e Conselho Estadual de Cultura. Pertenceu à equipe da página artística do Clube da Madrugada, "O Jornal" e do "Jornal da Cultura", da Fundação Cultura do Amazonas. Colabora em vários órgãos de imprensa, com especialidade no Suplemento Literário de Minas Gerais. Jorge Tufic é o autor da letra do Hino do Amazonas, contemplado que foi com o primeiro lugar em concurso nacional promovido pelo governo daquele estado.



Restinga's Bar



Sou tão frágil, meu bem, que um som, de leve
pode ser-me fatal como o teu beijo:
qualquer música brega, qualquer frase
pode ser-me fatal. E, assim, não deve
a brisa andar tão próxima à tormenta,
como não deve o ritmo da valsa
transformar-se em punhais; a vida é breve
e aquilo que é demais logo arrebenta.
Sou tão frágil, meu bem, que nada pode
separar-me de ti. Teu nome é um sonho
que navega em meu sonho. Tenho pena
de tudo, algo me aflige e me sacode.
Desliga esse Gardel, bota um canário
em vez do som, da voz que me condena.


Imagem retirada da Internet: Jorge Tufic

Ruy Espinheira Filho - Poema

















FRIO


Chove.
Mar e céu cor de chumbo.
Casas com rostos melancólicos.
O Jardim Zoológico anuncia galinhas ornamentais.
Morte de Edna foi crime ou suicídio?
Nuvens baixas pesadas.
Faz frio, meu amor.

Raptaram a moça na Cinelândia.
Um político inglês considera obscena escultura
que representa um casal de namorados.
Outro político sugere que a escultura seja colocada
num parque. Como falou Zaratustra,
para os puros tudo é puro,
para os porcos tudo é porto.

Chove mais.
Antigamente era simples:
ruas quietas, risos na praça, sombras de árvores.
Vestidos brancos em manhãs de domingo.
O sino. Chamando para a missa ou acompanhando
ao cemitério. Eu queria aprender
a tocar o sino,
mas me disseram que sino não gosta
de menino.

Ondas se quebram, cinzentas, contra rochas negras.
Policiais torturam prisioneiros.
Terroristas prometem novos sequestros,
novas bombas. Adolescente
se atira do oitavo andar.
Menor relata sevícias.
Bem-me-quer, mal-me-quer. Ah,
mal-me-quer...Doeram-me os olhos verdes
de janeiro a maio. Depois, silenciosa,
veio a garoa de junho.

Ainda chove.
Antigamente é um país mágico.
Bom é morar em Antigamente.
Flore de tamarindeiro cobrindo o chão.
Canto longínquo e triste de perdiz.
Cuidado, o açude é muito fundo.
Já matou três homens, uma mulher,
um menino. Melhor não brincar
com a sorte.

As meninas me fizeram saltar o muro
do internato. Retornei
sem alegria. Sigo sem
alegria.
Há cabelos ao vento, transatlânticos naufragados, risos
escarninhos. Há mais,
há muito mais.
Há o mundo.
Por que gritam tanto,
meu general?

Chove, chove, chove.
Portas e janelas fechadas.
Estou melancólico.
A cidade está melancólica.
Chove melancolia sobre o mundo,
sobre a vida.

Faz frio,
faz muito frio,
meu amor.


In.Sob o Céu de Samarcanda. Ruy Espinheira Filho. Rio de Janeiro:Bertand Brasil/Biblioteca Nacional, 2009, p.213-215.
Imagem retirada da Internet: Antigamente.

Gonçalves Dias - Poema
















CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorgeiam como lá.


Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.


Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Minhas terras tem primores,
Que tais não encontrou eu cá,
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.


Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.



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