Manuel Maria Barbosa du Bocage - Poema





BOCAGE










Sonetos



Oh tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh mãos de neve, que regeis meu fado!
Oh tesouro! oh mistério! oh par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio de sol! Oh gesto amado,
De rosas e açicenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Oh lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Oh perfeições! oh dons encantadores!
De quem sois?...Sois de Vénus? - É mentira
Sois de Marilia, sois de meus amores.


In. Sonetos e outros poemas. Bocage. São Paulo: FTD, 1994, p.25

Francisco Perna Filho - Crônica


VISGO ILUSÓRIO*


Por Francisco Perna Filho



Começo este texto dizendo que uma das coisas mais difíceis na vida é encontrar a palavra certa para aquilo que queremos expressar. Pois bem, escritores, poetas, compositores, todos eles de alguma forma já trataram desse assunto, falaram da luta diária pelo verbo preciso, pelo vocábulo não corrompido, pela palavra ideal para traduzir um estado de espírito, um sentimento vivido, ou para, simplesmente, relatar as impressões do cotidiano.

Carlos Drummond de Andrade muito bem tratou desse assunto: “Lutar com palavras é a luta mais vã./Entretanto lutamos/mal rompe a manhã.” A luta de que fala Drummond é a mesma a que me refiro: o embate cotidiano daqueles que se debruçam sobre a escrita, que vislumbram a recifração de um mundo em ruína, que se alimentam em sonhos de uma escrita encantada, de um pensamento materializado.

Pensar a palavra é querê-la na sua condição plural, representativa, desconcertante, dilacerante, às vezes. Cada vocábulo, no texto/contexto, traz uma motivação primeira, esse traço, essa marca do ser que a pensou, não que a tenha criado, mas que a elegeu naquela acepção.

A despeito de qualquer intenção, as palavras são convenções humanas. Não importa o país, o credo, a raça, elas estão em qualquer parte, em qualquer texto, em qualquer fala, prontas para traduzir os anseios e desencontros de quem as utiliza, prontas para auxiliar o homem na sua “permanência efêmera” nesse “sem fim” da linguagem.

O signo verbal é composto de um significante e de um significado (para lembrar Saussure), daí que, dependendo da motivação que se queira dar a ele, do contexto no qual se insira, esse significado se mantém ou se desdobra em outros significados. Vejamos a literatura, prova mais cabal do que estou dizendo: linguagem criativa, subjetiva, denotativa. Outro exemplo, a arbitrariedade do signo: muda a língua, muda o significante, como na palavra “casa” que para nós falantes da Língua portuguesa tem um significado, mas para o estrangeiro que não conhece o nosso código, nada significa, ou se significa, isso ocorre apenas no plano sonoro, quando ao pronunciar a palavra ela o remete a algo parecido no seu idioma.

As palavras carregam o peso, o brilho, o gosto, o cheiro, a textura das coisas, trazem muito mais, pois servem a contextos, textos e intenções. Quanto mais nós as dominamos, mais dominados ficamos, mais sofremos, pelo amargo sabor de nos sabermos intraduzíveis.

Cada palavra cumpre uma sentença: ser palavra, ser elástica a ponto de exaustão, aí vai depender das intenções: ciência, propaganda, jornalismo, ficção. Traduzem uma imanência arbitrária com seus significados. Vivem a vida de quem as pronuncia, trazem consigo um visgo ilusório, uma relação mágica com aquilo que significam, com as imagens que representam, e silenciam quando nos calamos nos intervalos da nossa existência.


*Visgo Ilusório é o título do meu próximo livro, no prelo.

Foto by Francisco Perna Filho - Visgo - Miracema do Tocantins - Tocantins - Brasil


Murilo Mendes - Poema






Murilo Mendes








Estudo Para Uma Ondina



Esta manhã o mar acumula ao teu pé rosas de areia,
Balançando as conchas de teus quadris.
Ele te chama para as longas navegações:
Tua boca, tuas pernas, teu sexo e teus olhos escutaram.

Só teus ouvidos é que não escutaram, ondina.
Minha mão lúcida sacode a floresta do teu maiô.
Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias
E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer.

Tens quinze anos porque já tens vite e sete,
tens um ano apenas...
Agora mesmo nasceste da espuma,
E na incisão do ar líquido alcanças o amor dos elementos.


In.Metamorfoses. Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 65.
Imagem:Nu - Filipe - Braga, Portugal

Francisco Perna Filho - Conto


Francisco Perna Filho









Encontro de amigos


Fui o primeiro a chegar, tudo era silêncio, as luzes ainda estavam apagadas. Entrei, deixei alguns livros sobre a escrivaninha, sentei-me e fiquei esperando para ver quem entrava depois de mim.

Era muito cedo, li alguns textos, fiz algumas pesquisas, conferi a manchete dos principais jornais, e esperei. Por algum momento, tive a impressão de que alguém havia chegado. Pura impressão! Somente eu permanecia ali.

Impacientei-me, deixei um aviso de que eu estava presente, mas que me ausentaria por um instante. Saí, fui à padaria da esquina, tomei um café delicioso, li o jornal diário, e voltei para interagir com os amigos, mas nada, eles ainda não tinham chegado. Fiquei preocupado, será que eu me enganara quanto ao horário? Não! Pude ver que já passava das oito e eles não chegavam, ninguém dava sinal de vida.

Resolvi adiantar umas atividades, escrevi algumas páginas, permaneci ali na expectativa, coloquei uma música e deixei-me embalar. Imerso que estava na música, não me dei conta de que Marcelo acabara de entrar. Chegou, permaneceu quieto, não falou com ninguém, apenas anunciou que chegara. Depois de constatado sua presença, respeitei seu desejo de ficar isolado, também permaneci quieto.

Após Marcelo, entraram Karine, Paulo e Rodrigo, todos eles pareciam cumprir um ritual, se portaram como Marcelo, silenciosamente. A princípio, fiquei apreensivo, imaginando que eles tivessem alguma coisa contra mim, mas depois percebi que era paranóia minha.

Lembrei-me de outras situações, de outros espaços, de outros lugares. Quantas vezes ficamos desconfiados, aturdidos, desolados, só porque alguém que a gente conheceu passa por nós, não nos cumprimenta, como se não existíssemos, como se o conhecimento de outrora, o bate-papo, as piadas, as gargalhadas, a roda de amigos, nada disso importasse, tivesse um pouquinho de valor, até descobrirmos que a pessoa era míope e havia esquecido os óculos em casa.

Ponderei nas minhas observações. Fiquei meio hesitante quanto a puxar conversa, mas arrisquei um “Oi!”. Não logrei êxito, a pessoa, não vou falar o nome, pois pega mal, simplesmente não me deu atenção, estava ocupada. Vê se pode, numa manhã como aquela, tranquila, ainda muito cedo, a pessoa já está ocupada, faz-me uma desfeita dessas. Logo para mim que nunca que lhe neguei uma palavra, uma resposta; que quase nunca me disse ocupado. Não porque não trabalhe, muito pelo contrário, mas por achar indelicado negar uma palavra para um amigo, mesmo um conhecido, ou colega de trabalho, como queiram as designações.

Continuei com o meu trabalho, quando entraram Rosana, Madel, Bôsco, Jádson e Maurício, todos eles de uma só vez, já passava das nove da manhã, muito tarde para um dia de trabalho, mas cada um tem seus motivos. Madel acenou com uma carinha alegre, pediu minha atenção e disse: Compadre, estou achando você muito sério hoje, o que lhe aconteceu? Achei graça da carinha, e respondi com outra carinha de tristeza, dizendo, em seguida, que de fato estava um pouco entristecido, por imaginar que ninguém me dava atenção, mas que o meu humor, depois dessa receptividade toda por parte dela, já começava a melhorar.

Trocamos mais algumas palavras, falamos do óbvio, nos aquietamos nos nossos afazeres, e o tempo passou. Era mesmo um dia frio, frio não somente pela temperatura do ar condicionado naquela sala, exageradamente 17º graus, mas pelo clima que se instalara ali, não sei se somente da minha parte, uma vez que as outras pessoas sorriam, trocavam palavras, olhares. O que sei, de fato, é que o mar parecia não estar para peixe, muito menos para pescador.

O telefone tocou, não o meu, o da sala, e todos, absortos nos seus afazeres, permaneceram ali, sentados, totalmente alheios ao que se passava exterior aos seus afazeres. Tive de me levantar, atravessei a sala, entrei na cabine de vidro, onde o chefe ficava, e atendi o bendito, digo, o estridente telefone. Ninguém, simplesmente ninguém, do outro lado da linha. Era mesmo uma manhã atípica. Não me aborreci, simplesmente voltei para o meu lugar e prossegui viagem nos meus afazeres.

Mais uma vez tive de ausentar-me da sala, mas deixei um recado, eu precisava ir urgente ao banheiro. Logo na saída esbarrei com a moça do café, que vinha abarrotada de garrafas e odores, contagiando todo o corredor por onde passara. Olhamo-nos, ela entrou, eu saí apressadamente. Como diz o ditado: “um pé lá, outro cá”. Foi desse jeito, eu estava muito envolvido com o meu trabalho e tinha pouco tempo para realizar aquela atividade. A minha pesquisa, aparentemente banal, me tomaria muito tempo ainda.

Quando voltei, recebi um recado: “durante a sua ausência Maurício tentou falar com você”. Eu pensei comigo, esse cara é muito estranho. Nós estávamos tão próximos, ele sabia que eu estava ali, anunciou quando chegou, passamos, desde a sua chegada, mais de duas horas próximas, para ele só puxar conversa quando eu me fizera ausente. Isso só pode ser gozação, pensei. Mas tudo bem!

Depois dessa do Maurício, eu resolvi agir. Pensei comigo mesmo: você não vai perder nada, muito pelo contrário, você só tem a ganhar. Arrisquei uma conversa com o Bôsco: olá! mas nada de resposta. O camarada simplesmente não me respondeu, achei-o grosseiro, mal educado e prepotente. Nada disso, era só julgamento precipitado, na verdade, o cara não havia percebido que eu falava com ele, estava mergulhado até a tampa nos seus afazeres, mas, após uns dois minutos, ele me respondeu: amigo, desculpe-me, é que eu precisava entregar um relatório agora de manhã, sem falta, e tive de terminá-lo com urgência, os homens precisavam dele.

Fiquei aliviado, era só impressão minha. Talvez com os outros também ocorresse o mesmo. Cada um nos seus afazeres, prioritariamente o ganha-pão, depois as conversas, as piadas, as gozações. Falamos amenidades, refletimos sobre o momento político, sobre os desmandos e escândalos: tudo igual, só o disfarce é que muda, disse-me.

Perguntou-me o que eu iria fazer no final da tarde, eu disse que não tinha nada programado, que pensava em sair para tomar uma cervejinha. Tudo bem, disse ele, é isso mesmo, uma cervejinha. Aonde vamos, perguntou-me. Não sei ainda, respondi. Que tal o Toscana? emendei. Perfeito, disse ele. - Então tá combinado, respondi. Voltamos para os nossos afazeres.

Depois daquele caloroso bate-papo, resolvi passar tudo a limpo, sem receio nenhum, chamei para conversar: Karine, Rosana, Jádson, Paulo, Rodrigo e Marcelo, com todos eles tive papos para lá de amistosos, reconhecemos que estávamos em dívida uns com os outros, que precisávamos sair, nos falar mais, foi quando eu lhes comuniquei que havia marcado com o Bôsco, no Toscana, eles acharam maravilhoso. Combinamos às seis.

Eu simplesmente estava feliz, quase feliz, pois ainda faltava o Maurício, que estava ausente. Resolvi ligar para ele, falou-me que teve de sair às pressas, pois tinha uma audiência às 9h30, e que não podia se atrasar. Falei do nosso encontro, ele acenou positivamente.

Estavam o Jádson, o Maurício e a Karine, todos muito animados, quando eu cheguei. Abraçamos-nos, foram minutos de sorrisos e brincadeiras. Nisso foram chegando os outros: Paulo, Rodrigo, Marcelo, Rosana e Madel. Foi uma grande festa, juntamos mais duas mesas, e a diversão havia começado sem tempo para acabar. Varamos a noite, já passava das duas, quando resolvemos ir embora.

Embalados pelos chopes, nos despedimos com promessas de nos encontrarmos mais vezes. Desejamos-nos boa sorte, felicidades. Mais uma vez, abraçamo-nos, pedimos a atenção de cada um ao volante, e o cuidado com os bafômetros. Em coro, cantamos: Se vai dirigir, não beba; Se vai beber, não dirija, e completamos: mas se já bebeu e tem de dirigir, vá belezinha pra casa. Foi quando a Madel falou: Amigos, a amizade tem de ser presencial, vamos nos encontrar mais vezes, chega de Messenger.


Imagem: Codificação de Guerra - Jandira - Faro, Portugal

Murilo Mendes - Poema



Murilo Mendes
















Minha Órfã


Porque não quis te olhar, ficaste cega.
Sei que esperas por mim
Desde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,
Mas eu não quis olhar
Porque me debrucei sobre o mito de outras,
Porque não me sabes dar, pobre amiga,
O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:
Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,
Boca sem frescura e sem expressão,
Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,
Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:
Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,
conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,
Enquanto eu recolherei para sempre
A tua, a minha e a miséria de outros,
Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.


In. As Metamorfoses. Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 25

Sinésio Dioliveira - Fotopoema




Sinésio Dioliveira











MALQUERENÇA

Em vez de pedras,
quero borboletas nas mãos.
As pedras não vão longe;
as borboletas sim:
sozinhas e voando.

A dor da pedra
fere apenas a pele.
A dor da borboleta
machuca o coração.
(E por isso pode até virar flor...)


Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados



Sinésio de Oliveira - Fotopoema





Sinésio Dioliveira















ANTROPOFAGIA

No princípio
só havia olhares.
O desejo, demônio faminto,
se aproximou mais:
dos olhos chegou às bocas.

Foram poucas palavras distantes
daquilo que os olhos gritavam.

O verbo então se fez carne...



Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luís Antonio Cajazeiras Ramos







Em Luís Antonio Cajazeiras Ramos, a evidente sensibilidade lírica e o extremo domínio retórico, atributos que nem sempre se reúnem no mesmo escritor, revelam-se qualidades indissociáveis. Para além do espontaneísmo informe e confessional, ou da mera habilidade versejadora, sua poesia navega no território próprio: uma implacável máquina do poema, que retrata, com humor, farsa e melancolia, as vias e os desvios de um sujeito lírico em confronto, o mais das vezes, irônico frente ao mundo.
Antonio Carlos Secchin




Efígies


A égua, que passeia nos desfiladeiros
domina altiva o vale e a montanha,
quando sobe ao cimo do mais alto cume.
Seus relinchos se guardam para as nuvens
das manhãs, tendo o Sol por estribilho,
ao deslizar o trato de seus cascos livres
sobre os talos e a relva do caminho,
à contraluz que brilha no costado largo
de fulva crina, arrepiada cordilheira.

A águia, que paira sob o céu mais límpido,
deusa distante em voo de eterna glória,
mais que domina o céu, reina na terra
com seu olhar farol, coroa e lança.
O temor espalha e o fulgor impregna,
irradiados da envergadura mirífica,
e seu voo plano e silente hipinotiza,
magistral, com as asas peregrina
ondulando no raro vento das alturas,
onde atinge a dimensão de estrela.

A serpente, que arrasta o ventre liso
sobre o limo das pedras da floresta
e a escaldante rocha do deserto,
abriga-se nas sombras mais furtivas
com a calma da vigília distendida
e os olhos da certeza satisfeita.
Apõe-se contra a crosta dos dejetos
e a superfície das camadas de ruínas.
Opõe-se à égua arisca e à águia sidérea
e impõe veneno no banquete edênico.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeiras Ramos. Rio de Janeiro:7 Letras, 2007, p.85.
Imagem: Águia

Luis Antonio Cajazeiras Ramos - Poema


Luis Antônio Cajazeiras Ramos







O verso de Luís Antonio não é sentencioso, mas incisivo e lapidar. Percorre, sem hierarquias, um espectro de situações que ora flertam com o sublime, ora namoram o vulgar e o irrisório. Tudo se equivale, ou melhor, no poema, é como se tudo se equivalesse, já que o simulacro ficcional, paralelo à existência, se apresenta mais intenso e real que a própria vida.
Antonio Carlos Secchin


Anátema


Vogo na idéia vaga e vã do eu,
como se houvesse em mim um ser e um cerne,
uma alma inominada, em corpo inerme,
amálgama de fiat lux et breu.

Mimo a mim mesmo com um mimoso engano:
que o mundo existe como um fato meu;
que a vida é a imagem de ilusório véu,
tecido por mim (fio) o mundo (pano).

Fio-me que penso e existo e assim sou algo;
desfio meus véus, em busca de meu âmago,
mas desconfio que apenas seja imago...

Meu sumo é um oco totem hamletiano.
Do imane e ameno cenho, emana a senha:
a senda é ser não sendo e Eu seja sonho.



In. Mais que sempre. Luís Antonio Cajazeira Ramos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.142.

Hermann Hesse - Poema

Hermann Hesse



(...)





Na poesia como na prosa, Hermann Hesse, suíço (1877-1962) de língua alemã (Prêmio Nobel em 1946), mostrou-se permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas de suportar. Poesia e prosa parecem ter andado sempre de mãos dadas, em toda a existência de Hermann Hesse - que se dizia, ele mesmo, um poeta das nuvens, sem raízes e sem pátria-lar: a ausência da pátria-lar (Heimat) é uma constante na obra desse auto-condenado ao degredo perpétuo no mundo dos homens. (...)
Geir Campos



Perdimento



Sonâmbulo tateio entre bosque e barranco,
há um halo de magia aceso ao meu redor:
sem reparar se sou bem aceito ou maldito,
sigo à risca o meu próprio mandato interior.

Quantas vezes veio chamar-me a realidade
em que vós existis, para me comandar!
Dentro dela eu ficava assustado e sem forças,
e logo descobria um jeito de escapar.

Ao meu país ardente, do qual me privais,
ao meu sonho de amor, do qual me sacudis,
como as águas retornam sempre para o mar
também meu ser retorna usando mil ardis.

Amigas fontes guiam-me com seu cantar,
aves de sonho as plumas de luz a ruflar:
de novo faz-se ouvir o som da minha infância
- em áurea rede, ao doce zumbir das abelhas,
junto de minha mãe volto enfim a me achar.



In. Andares - Antologia poética. Hermann Hesse. 2ª ed., Trad.: Geir Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,s/d p.108.
Imagem: Ancoradouro

Hermann Hesse - Poema


Hermann Hesse









"Quando Hesse publica sua antologia poética, Andares, a Suíça que habita é uma espécie de ilha não suficientemente distante para que lá não chegue a violência dos ecos e perigos da segunda guerra mundial. A alma lírica do poeta é como um sismógrafo que registra fielmente todos os abalos políticos. A confrontação do fenômeno literário com o da guerra tinha sido uma experiência marcante entre 1914 e 1918. Em 1914 tinha-se deixado levar pelo entusiasmo político; mas logo assume uma posição pacifista da qual não se distanciará jamais".
(Nicolás Jorge Dornheim - ensaista argentino)




Sonhando Contigo



Às vezes quando me deito
e meus olhos se fecham,
com a chuva batendo na cornija os seus dedos molhados
tu vens a mim,
esguia corça hesitante,
dos territórios do sonho.
Então andamos ou nadamos ou voamos
por entre bosques, rios, bandos de animais,
estrelas e nuvens com tintas de arco-íris:
tu e eu, a caminho da terra de origem,
rodeados de mil formas e imagens do mundo,
ora na neve, ora ao fogo do sol,
ora afastados, ora muito juntos
e de mãos dadas.

Pela manhã o sono se dissipa,
afunda dentro de mim,
está em mim e já não é mais meu:
começo o dia calado, descontente e irritadiço,
porém algures continuamos a andar,
tu e eu, rodeados de coleções de imagens,
a interrogar-nos entre os encantos da vida
que nos embroma sem saber mentir.



In.Andares - Antologia poética. Hermann Hesse. Trad.: Geir Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p.138.
Imagem: by Sinésio Dioliveira - Todos os direitos reservados

Francisco Perna Filho - Desenredo




Francisco Perna Filho









Desenredo


Os carros, feito peões,

rodopiam enlaçados, um a um,

nos seus cordões que se prolongam em avenidas

e tecem a manhã de galos e aborrecimentos.

No final da tarde, eles invertem a trajetória

e os cordões da tessitura se refazem na anunciada volta,

no torvelinho ocasional dos predestinados pais e mães,

que se perdem engarrafados nas apertadas ruas,

segregadas pelo lixo e os meios-fios

ansiosos em voltar para casa.

Um a um,

dois a dois,

emparelhados como bois,

berram lastimosamente pedindo passagem

no desfazer do dia.

A composição agora é outra:

os carros celebram a noite

acesos nos seus faróis esbugalhados,

na vã tentativa de reaver a luminosidade perdida.

Os carros, tão sós,

não sabem das ruas,

do pálido olhar dos seus donos,

e, nem mesmo, do trajeto que percorrem,

simplesmente voltam,

e voltam encorajados pelo combustível que arrotam

de que nem sequer imaginam o custo.



Este poema faz parte do meu próximo livro "Visgo Ilusório", no prelo.

Imagem: Minotauro

Manoel de Barros - Poema






Manoel de Barros













XII


Pegar no espaço contiguidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é a prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.




In.O Livro das Ignorãças.3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.21.
Imagem: pássaros


Manoel de Barros - Poema



O Livro das Ignorãças



VII



Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gohg







XI



Adoecer de nós a Natureza:
- Botar aflição na pedras
(Como fez Rodin).








In. O Livro da Ignorãças. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.17 e 21.

Manoel de Barros - Poema




Dando prosseguimento à poesia de Manoel de Barros, continuaremos com alguns poemas do Livro das Ignorãças. Boa Leitura!







I



No tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:



Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole auroras.




V



Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.







VI



As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.







VII


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.





In. Livro da Ignorãças. Manoel de Barros. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 15-17.

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