CRÔNICA, UMA TEORIA


Por Francisco Perna Filho







Hoje, no período da manhã, fiz uma palestra para os alunos do 2º período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Tocantins, atendendo ao convite do amigo e professor Dr. Fábio Dabadia. Falei da minha experiência como escritor, poeta e cronista. Mais especificamente como cronista, já que a aula tratava desse assunto. Foi uma experiência encantadora: pude conhecer o pensamento e os anseios dos alunos que ali estavam. Vi o quanto o tema é apaixonante e desperta tanto interesse. Por ser tão instigante e fazer parte do nosso cotidiano, resolvi teorizar sobre o assunto.

 

 

CRÔNICA

 

 

  1. O que é crônica?
  2. Existe uma estrutura para escrever uma crônica?
  3. Como se escreve uma crônica?
  4. Crônica: jornalismo ou literatura?
  5. Crônica: razão ou emoção?
  6. O que inspira uma crônica?

 

 

1.O próprio nome já nos remete para um significado, porquanto crônica vem de Cronus deus do tempo, chegando para nós como uma modalidade narrativa curta, de caráter pessoal e lírica. Primando por recortes de realidade e abordando uma temática variada. Às vezes, pode trabalhar com relatos do cotidiano, mas sempre iluminada pelo toque especial do autor.

 

2. A crônica não deve ultrapassar “60 linhas”. Os parágrafos devem ser curtos e bem estruturados; a linguagem deve ser expressiva e elegante.

 

3.Como se escreve qualquer texto, o autor deve ter um conhecimento do assunto a ser abordado, dominar o código lingüístico e, acima de tudo, primar pela clareza e objetividade.

 

4.Pode-se considerar tanto jornalismo quanto literatura. Por ocupar um espaço no jornal, constituindo material desse veículo e refletindo as características desse espaço, a crônica é matéria jornalística “não referencial”, primando, às vezes, pela coloquialidade e pelo aspecto conotativo da linguagem. Literária por trazer em essência a percepção lírica do autor, portanto subjetiva, e a criatividade, de estrutura curta, como o conto, embora desse se distanciando pela simplicidade e fluidez.

 

5.Razão e emoção. Racionaliza-se ao projetar o texto, ao determinar para que público ele se destina, ao estruturá-lo como feição estilística. Emoção pelo tema trabalhado, pela subjetividade do autor, pelos elementos conotativos e pela expressividade da linguagem.

 

6. A vida em todos os seus aspectos: a mulher que passa, o olhar perdido e distante do oprimido, a desigualdade social, a incompreensão humana, a solidão, a alegria etc.. a própria crônica;

 

 

Primeiras leituras, relatos de reconhecimento

                                                         Francisco Perna Filho 

 
 





Como em todo campo artístico, a literatura também tem o seu período de formação, sofre e exerce influências, carrega marcas do tempo em que foi gerada, modifica vidas, reflete tendências, ultrapassa fronteiras. Portanto, muitas são as fontes formadoras; muitos são os pais, inúmeros são os filhos.  

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas "experiências iniciáticas" como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.  

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.  

Quem nunca sofreu influência? O que é um texto, senão um mosaico de citações, na fala de Júlia Kristeva? O que é ser original? O que é estilo? São questionamentos feitos por músicos, artistas de toda ordem, poetas, como os goianos: Brasigóis Felício, Gabriel Nascente e Valdivino Braz, que falaram sobre as influências sofridas, as leituras basilares, fundamentais para a formação de cada um. Todos são filhos de um ou muitos pais intelectuais, também são pais intelectuais e, por serem autores, coisa bem diversa de narrador, instância ficcional, na vida real, também são pais, homens amorosos, dedicados às suas famílias, daí, cada um deles, em algum momento, ter dedicado poemas aos filhos. Valdivino, para Caroline, Randal e Jiuliano;   Brasigóis, para Pettras, e  Gabriel, para Thiago.


Os poetas por eles mesmos

   

Valdivino Braz

Minhas primeiras leituras, após a Primeira Cartilha, de Theobaldo Miranda Santos, e a Cartilha Sodré, de Benedicta Stahl Sodré, edição de 1952, foram obras da coleção Tesouros da Juventude, bem como de Julio Verne “Vinte mil léguas submarinas”, Lewis Carrol “Alice no país das maravilhas” e Monteiro Lobato. Li um pouco de tudo isso na biblioteca do Grupo Escolar Coronel José Teófilo Carneiro, onde estudei, em Uberlândia (MG).

Por volta dos 17 anos de idade, comecei a ler romances condensados na revista Seleções do Reader´s Digest, além de outras revistas como Quem foi?, Suspense, Magazine – “Mistério Magazine” de Ellery Queen, todas voltadas para histórias policiais, de crime, mistério e suspense. Daí vieram os pocket books do gênero, com aquele clima de detetives, antes de eu chegar às obras de Agatha Christie, George Simenon, Arthur Conan Doyle (com Sherlock Holmes) e outros.  


Influências literárias


Fui influenciado pelas revistas de crime, mistério e suspense, que comecei a escrever contos, ainda em Uberlândia, e rasguei todos (hoje me arrependo) às vésperas de mudar-me para Goiânia. Me lembro de três deles (os melhores de minha lavra), intitulados, pela ordem de produção: Os herdeiros; A Moeda; e Depois da meia-noite. Já em Goiânia, em 1964, descobri Ernest Hemingway e, com sofreguidão, li tudo dele, inclusive biografias. Vieram de Hemingway as influências para o meu primeiro livro de contos, Cavaleiro do sol, publicado em 1977. Mais tarde descobri Joyce e outros gênios da prosa moderna. Desde então as coisas em minha literatura mudaram de figura.

  POEMAS 


CARACOL 

Ah, esta fala inaugural de Caroline! Retine. Clara voz em linha de caracol, na casa dos quatro anos - cabelos "arrumados" pelo sono, cachos com filigranas de sol. Cocon para dizer botão, papom para dizer batom, pepoj para dizer bigode, mimalte para dizer esmalte, memelho para dizer vermelho, quicido para dizer vestido, panquega para dizer manteiga, quimiga para dizer formiga, pipieta para dizer borboleta, quicone para dizer telefone, Ó Queus! Para dizer Ó Deus!

                                                 (In A Dança do Intelecto,1996)

  

CAFÉ DA MANHà

Eu me reconheço nestes moços. No perfil de Randal e até nos ossos de suas omoplatas. Me escondo ali na sombra do outro, no seu jeito circunspecto. Me lembra o homem que nos envelhece um pouco antes do menino. Eu me redescubro no modo calado de Juliano. Ó folhas do tempo, não são os retratos que nos realçam, mas estes rostos, espelhos em que me contemplo, reflexos dos meninos que passam.

                              (In A Dança do Intelecto,1996)

 

  

Brasigóis Felício 

 

Tudo começou antes que chegasse a amar os Beatles e os Rolling Stones. Trabalhava em uma papelaria, onde também se vendiam livros: o Bazar do Estudantes, em Campinas. Um dia, ao acaso, abri um livro, uma coletânea de contos de Machado de Assis. Entre maravilhado e espantado por existir aquela dimensão tão maravilhosa da vida, li o conto Uns braços. Não parei mais. Tomado por vertigem e volúpia, ao perceber tanta beleza e sensibilidade, traduzidas em linguagem, passei a devorar, com avidez, os clássicos da ficção e da poesia. Nacionais, ou não. Castro Alves, com seus vôos condoreiros e seu romantismo, Álvares de Azevedo, com seu spleen e melancolia, Casimiro de Abreu, com seu lirismo... depois, Cecília Meirelles, lírico-mística, Manuel Bandeira, magia do coloquial, Lima Barreto, sátira e amargura, sempre voltando ao velho Machado, mestre maior de todos nós.  


Influências literárias 


Porém, foi ao ler Crime e castigo, de Dostoievski, senti vertigens. Fiquei quase um mês fora de órbita, meio que alucinado, não sabendo se vivia naquela Rússia czarista em que havia tanta miséria humana, em meio a tamanho delírio idealista, ou se na miséria brasileira mesmo, sempre muito parecida com a da Rússia, sendo os dois povos iguais, em sua alma mística. Foi a leitura que mais produziu impacto em todo o meu ser, deixando marcas profundas, dentre elas a certeza de ser este o meu destino, a minha lenda pessoal: ser poeta, escritor. Eu me enfurnava nos cantos baldios da livraria, escondia-me no banheiro, e roubava todos os livros que podia roubar, levando um a cada dia, sob a camisa. Tornei-me irrecuperável, em ser outsider, estrangeiro em mim mesmo, em meu país, em minha cidade, em minha casa doméstica. Sonhando em que um dia todos caminhariam pelos jardins da beleza, dos ideais elevados, e das sublimes fantasias.

 

Vieram, a seguir, leituras também arrasadoras, agitaram, convulsionaram a minha mente fervilhante: Os irmãos Karamazov, Memórias do subsolo, e Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévsky, Almas mortas, de Nicolai Gogol, Pais e filhos, de Turgueniev, contos de Tchekov... para não falarem que não falei nos franceses: Balzac, Flaubert, Sartre, Camus. Outros torpedos que me levaram a entrar na noite escura da alma: Baulelaire, Rimbaud, Edgar Allan Poe. Mais tarde, outro encontro mágico, que me deixou  viciado em viver vertiginosamente: Henry Miller, com sua prosa caótica, fragmentária, seus insigths de poeta-profeta, seu amoralismo pérfido de artista da raça dos malditos. Muitos outros, dentre eles outro maldito brasileiro, Lúcio Cardoso, em seu clássico Crônica da casa assassinada, fizeram com que visitasse o céu e o inferno, em estadas terríveis, que deixaram marcas em minha alma ardente. Todos eles fizeram com que eu me tornasse este anjo (ou demônio) escrevedor que eu quis ser, e SOU.  


Poemas 


Lição de claridade

(Ao Pettras, meu filho)

 

Vi dormir meu filho, um dia,

numa noite, desesperado.

havia calma em seu berço.

Foi como se viajasse

em sua entrega fragílima

e de repente ficasse puro.

Havia calma, em seu berço

esta calma sereníssima

só dos anjos rebelados.

E como habitasse meu corpo

um turbilhão de demônios

quase fugi, arrependido

de fitá-lo, agoniado.

Vi dormir meu filho, um dia,

numa noite, desesperado.

foi como se viajasse

ao rio (morto) da infância.

(In Escrito no muro, 1980)

  

Gabriel Nascente 


 

A minha formação cultural começou quando, nos primórdios dos anos 60, eu juntava aí perto de 15 anos. Recém-chegado ao curso de Aprendizagem Industrial, da então Escola Técnica de Goiânia, por admissão ao ginásio, era órfão de pai, pobre e filho de marceneiro, sem jamais saber que a “Canção do Exílio” era de autoria do romântico poeta Gonçalves Dias, tamanha a minha ignorância literária. Foi então que, nessa quadra da adolescência, escrevi os meus primeiros poemas e publiquei “Os gatos”. Um espanto, geral, entre amigos de aula, professores e tudo; pois nada, absolutamente nada, eu sabia sobre literatura (Muito menos que existiam escritores em Goiás). Motivo pelo qual fui condenado a um divã psiquiátrico. Até aí, confesso: o meu índice de leitura era zero. A partir daí, da publicação do meu primeiro livro “Os gatos” em 1966, eu me endoidei por leitura, e caí-me, de sorvo, sugando tudo que vinha às mãos. 
 

 Influências Literárias


Li, fervorosamente, alguns clássicos da literatura ocidental, principalmente, Franz Kafka, o orelhudo de Praga; depois, Kalil Gibran Kalin (oriental), o genial aviador Saint-Exupéry, pai do “Pequeno Príncipe”, “Terra dos homens” etc., o jesuíta francês Teilhard de Chardin, os portugueses Guerra Junqueira e Antero de Quental, e ainda os poetas Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo e Poe – autores que exerceram, em mim, verdadeiras overdoses de fomento e alento, para a formação intelectual da minha visão de mundo, o cosmológico dentro da óptica do espírito poético. Também me fixei, apaixonadamente, na leitura de Hemingway e Camus, antípodas um do outro, em estilo e conteúdo. Já o meu contacto com os gregos veio um pouco tardo, bem depois, quando descobri Homero, Sócrates e Platão.Daí pra frente, nunca mais abandonei o hábito da leitura, mesmo porque é nela (na leitura) que eu me encasulo, espiritualmente, livre, enquanto leio, das espurcícias do mundo. Ah, eu ia me esquecendo, a “Bíblia” e Shakespeare, “Dom Quixote” e “Os sertões”, também andaram adubando a luz dos meus olhos. 

    

Poemas 
 

Poema para Thiago 

            

             I 

Me dê cá a mão, filho.

A caminhada depois da infância é dura.

O sonho depois da infância é duro.

A vida depois da infância é dura. 

Depois da infância

a infância é dura.

         

           II

Filho, me dê cá a mão.

Do berço à maturidade celestial de teus olhos,

caminharás pelas escarpas do mundo

com teu pesadíssimo fardo de sonhos e medo. 

        III 

É inútil, filho, combater os fantasmas

dentro da luz. O ódio, a traição e a morte

são invisíveis na trajetória da vida,

apesar do velho lume estendido na cabeça

deste planeta. 

É inútil, filho,

beijar a face de Eros,

melhor seria libertar o pensamento

do maior subversivo da história

que ainda jaz sangrando na cruz,

ou no fundo de alguma prisão. 

          IV 

Reza. Reza, filho meu,

para que não faltem cereais e pão

na mesa, onde um dia, jogarás

os proventos de teu próprio suor. 

        

A humanidade, filho,

é carente de um só

veículo: amor. 

(In Pastoral, Ed. Oriente, 1980)

 

Fonte da imagem: http://amorinhas.files.wordpress.com/2009/02/alfredomunhoz-caminhos.jpg

TOCANTINS




Francisco Perna Filho










Um rio sereno corre nos meus dias,
há tanto que eu o persigo,
desde suas nascentes,
quando é apenas um fio,
passando por  transformações,
nas corredeiras,
nos montes de areia e cachoeiras.
Vejo-o indo,
sempre indo.
Às vezes, terno;
às vezes, retumbante,
muitas vezes rompe o próprio leito.
O rio que corre em mim
é ancestral,
é pura simbologia,
retrato de épocas,
de lutas,
e de sonhos.
O rio da minha infância
ainda corre tímido,
em alguns pontos, 
segregado, aborrecido.
Da margem de cá,
da margem de lá,
é sempre rio.
E assim me rio
dos inavegáveis trechos,
santificado em águas profundas.
Rolam águas,
rolam sonhos,
rolam peregrinos.
Bem-te-vi,
bem te vejo,
benfazejo,
como um estirão,
um grito longo
precipitando-se
em sonhos
repercutindo
em tessituras.
O rio da minha infância
é maior do que os meus braços,
do que os meus olhos,
do que o meu mundo.

Foto by Francisco Perna Filho

Francisco Perna Filho



  



   



Aboio


Oh, Jerusalém!
A palestina sangra na menina dos teus olhos.
E pálida fica a tarde aturdida pelos canhões
amortecidos nos corpos espalhados pelo rio dos meus sentimentos.

Sentir o arranque do carro,
a distância da bala consumida pelo peito inocente da menina que vende flores
em Copacabana.

Praga
se faz aqui,
E em toda primavera nos sentimos invadidos
pelos soldados da incompreensão,
que marcham enraivecidos como os canhões na praça vermelha;
como os pássaros nas torres gêmeas;
quando as suas caras pálidas transbordam incertezas,
soldados que estão na própria máquina que conduzem.
Deuses do próprio umbigo,
amaldiçoados em rastros de ferro e fogo.

Famintos,
Os governantes desconhecem as águas na quais se banham.
Infelizes, não se comovem com o aboio da terra maltratada,
estriada, ressequida.

Infames, são a pura erva que mata o gado que somos.
Muitas outras dores passam a largo,
E não há remédio que possa acalmá-las.
Muitos outros gritos repercutem,
Como a mulher que grita desesperada
Pelas ruas de Bagdá. 


Cavalos marcham em disparada.
Fora os ídolos!
Somente a idéia dos reis em marcha,
Os santos quebrados a cada um que se desfaz.
As aldeias estão às escuras,
A estrela não brilha mais,
E os homens gravitam no velho ábaco.
Olvidados o grito da terra,
Os sons metálicos das dores milenares,
e a menina órfã é rasgada como brinquedo de exploradores,
tão sedentos como os senhores da guerra.
Cravam-nas, as lanças, fardo de suas misérias capitalistas,
no corpo ingênuo da menina
de pernas finas,
bracinhos frágeis,
ventre deformado,
gestando o martírio de cana e etanol.

Oh, malditos!
Cearão a lama que produzem,
Nadarão nos tanques dos seus martírios.
Depois, embriagados chorarão a fome
A miséria da alma,
Os sons da fúria de uma cegueira ensaiada.

Oh, infames!
Visionários da própria destruição.
Assestarão os seus olhos para além do que podem entender,
E não enxergarão nada mais do que terra degradada,
Silêncio em decomposição,
Saudade e desmantelo
Na dor profunda do cerrado que se desintegra.

Ei boi! Ei boi! Ei boi!

Foto by Evandro Teixeira   http://www.nordesteweb.com/not10_1208/20081214Sertao.jpg

O Rio Tocantins engoliu meu Avô






Francisco Perna Filho








Os rios, naturalmente, correm. É da natureza deles o livre curso. Não tem nada que os impeça, rompem qualquer obstáculo que se lhes apresente. Não fazem distinção de tempo e leito, não consideram castas nem poder, retumbam os gritos ancestrais; não param nunca, mesmo quando lhes desviam o curso, mesmo quando desembocam no mar.


Pelos rios, os homens descobriram outras terras, alimentaram descobertas e distâncias. Neles, depositaram esperanças, viram-se refletidos e morreram inúmeras vezes, como o meu avô, Manoel de Sales Perna, um exímio nadador, a quem o rio não deu guarida, engolido pelo Tocantins ao salvar a minha prima, Maria Úrsula, bem próximo à cidade de Carolina, no Maranhão.

 
As pessoas morrem, os rios são perenes. A qualquer tempo, estão em movimento. Nunca se repetem, sempre impressionam, seduzem e devoram. Água não tem cabelo, professam os antigos, e se tivesse, sem hesitar, diria que o meu avô teria vivido um pouco mais, a tempo de me conhecer e poder falar um pouco sobre a sua vida, suas origens, e da afeição pelos índios Krahô.


Dele sei pouco, mas sempre pude imaginá-lo, quando não pelas histórias contadas pelo meu pai, Francisco Nolêto Perna, pela fotografia ampliada que o meu tio, Tito Perna, traz emoldurada na sala de sua casa e, mais recente, sendo redescoberto, por obra da ficção, pelo escritor Bernardo Carvalho, no premiado “Nove Noites”, Companhia das Letras (2003), quando o engenheiro Manoel Perna, que na vida real era barbeiro, pôde contar a história do antropólogo americano Buell Quain, discípulo de Ruth Benedict da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se suicidou em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar a aldeia Krahô, a caminho de Carolina, no Maranhão, para se encontrar com o meu Avô. Fato que, embora sirva à ficção de Carvalho, aconteceu na vida real, como atestam os documentos e o testemunho do meu pai.

 
Apesar de não ter podido conhecê-lo em vida, vejo-o sempre em meu pai, em mim, nos meus filhos e irmãos. Vejo-o no rio que o engoliu, pois passou a fazer parte dele, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. Eternizou-se nas suas corredeiras, imortalizou-se no seu remanso, como na mitologia: os rios da eternidade.


Vejo-o sempre quando vou a Miracema do Tocantins, quando miro o rio do Porto do Padre, da Praia de Areia, do Flutuante do “Seu” Manoel, da Praia do Urubu, da Usina do Lajeado. Muitos desses lugares, que agora citei, já não existem mais, mas vivem na minha memória, como o meu avô, que, pela obra da ficção, virou personagem e “zombou” do rio que o engoliu.

 
fonte da imagem:http://2.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SgxD305IjaI/AAAAAAAAAhE/K9xoCKOxmVE/s1600-h/riotocantins2.JPG

Cafarnaum


Francisco Perna Filho






















velhos armários, 

guardando nas suas gavetas

o cheiro aveludado de tantos invernos,

esculpidos em retratos sonâmbulos,

carpidos no ranger de redes

e no murmúrio oblongo de potes de barro.

Nada há de velho que não enterneça.

nem o mofo,

nem o lodo,

nem os anos embotados no imaginário humano.

Nada passa que não nos faça avançar para antes,

para uma anterioridade lírica,

sob a luz das lamparinas

talhadas em ausências e muita solidão.

Nada há de novo que não nos mostre o velho,

o passado,

o que fomos nós,

nos passos tênues dos nossos avós,

                               no lastimoso grito memorial

                               dos nossos corpos na dança secular;

dos nossos corações empedernidos

pelas inúmeras cicatrizes

que clamam refeição.

O que há em nós

é um imenso desejo de reconstituição

de refazimento.

Um desejo

de saciar a nossa fome ancestral,

agora, no presente futuro.




Fonte da imagem: http://www.elizabethperry.com/magiclanternshow/3gardendoorway.jpg

INSONE




               


Francisco Perna Filho




As ruas nunca dormem.

Não há tempo para isso,

guardam os prédios que se esvaem em sono vertical.

Os porteiros não dormem nunca.

Não há tempo para isso,

guardam os donos nidificados

em sonhos de existência.

As mães nunca dormem,

velam os filhos errantes em bares e becos obscuros.

Os famintos,

os guardas,

as prostitutas,

assim como os cães,

exercem a insônia da sobrevivência.

Pelos olhos insones de todos estes

meus olhos vêem o inominado,

o imaterializável.

E, por muito ver,

meus olhos nunca dormem.

 

 Fonte da  imagem:http://www.baixaki.com.br/imagens/wpapers/BXK1757__4161-edificios-em-s.paulo-sp-brazil800.jpg


 

MANOEL DE BARROS - Abrindo fendas com o corpo


Francisco Perna Filho

 

 







“Há muitas maneiras sérias de não
dizer nada,mas só a poesia é verda-
deira.
(Manoel de Barros)


 

 

Por mais que se queira esquivar, não se pode falar em literatura sem buscar a sua inserção (mesmo que inconsciente) em um determinado contexto: histórico, político-social etc. João Alexandre Barbosa no seu livro As Ilusões da Modernidade assim nos fala:
 

“(...)a história do poema moderno nada tem a ver com a descrição de seu apogeus e declínio: é antes uma história que só se desvela no movimento interno de passagem de um para outro poema.”
 

O que João Alexandre quer nos dizer é que no fazer poético existe uma imbricação de muitas vozes ao longo do tempo e que só são percebidas a partir de um desvelamento do poema no seu processo de diálogo com o autor-leitor. E é nesse diálogo que irá se estruturar a poesia de Manoel de Barros, enriquecida pela alma criadora dos seus predecessores, os quais rompem com os cânones ultrapassados para estabelecer traços definidores da poesia moderna, como a subversão da linguagem, o desregramento do sentido, a desumanização e dispersão do Eu empírico. Traços fundamentais na construção da novidade poética desse cantor efetivo das coisas do Pantanal.

No presente trabalho, buscarei evidenciar os elementos supracitados, caracterizadores da poesia barreana, bem como as relações que este poeta estabelece com o substrato pantaneiro, elevando o seu bestiário a uma representatividade poética, plurissignificativa do ponto de vista imagético, enfatizando as manifestações da linguagem nas suas possibilidades eróticas e, ainda, apontando a presença criadora de Eros na sua constante luta com Tanatos:vida e morte. Para esse estudo adotarei, sempre que o autor estudado for citado, as iniciais do seu nome (M.B.), bem como as das suas obras que forem mencionadas, ficando, portanto, assim relacionadas: G.E.C. (Gramática Expositiva do Chão); P.C.S.P. (Poemas Concebidos Sem Pecado); F.I.(Face Imóvel); P. (Poesias); C.P.U.P.(Compêndio Para Uso dos Pássaros);M.P.(Matéria de Poesia);; A.A.(Arranjos para Assobio); L.P.C.(Livro de Pré-coisas); G.A.(O Guardador de Águas); L.S.N.(Livro Sobre o Nada); L.I.(Livro das ignorãças).

Na construção da sua poesia, M.B. dialoga com Arthur Rimbaud, Oswald de Andrade, Raul Bopp entre outros, ao passo que vai trilhando por caminhos, aparentemente banais, mas que se revelam sinuosos, profundos, num aspecto fragmentário e que vão se estruturando na desestruturação das construções já cristalizadas e gastas. Como poderemos comprovar no Livro das Ignorãças:

 

Em casa de caramujo até o sol encarde

(L.I.)p.25

 

Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal.

(L.I.)p.25
 

O autor retoma construções simples, gastas no aspecto semântico e recria a partir das mesmas um manancial imagético, campos plurissignificativos.

O primeiro verso pode nos remeter a construções do tipo:

 

Em casa de ferreiro espeto de pau (adágio popular)

 

Já o segundo não foge à regra:

 

Lembro de um papagaio repetindo as palavras naquele quintal.

 

Construções, que do ponto de vista poético nada representam, ou seja, não trazem nenhuma novidade significativa.
M.B. Elege uma linguagem onírica, fragmentada; rica em nuances surrealistas, que escandaliza pela vivacidade das suas imagens, como no livro Matéria de Poesia:

 

(...) saudade me urinava na perna

Um moço de fora criava um peixe na mão

Na parte seca do olho, a paisagem tinha formigas mortas(...)

(M.P.)p.196.

 

Ou ainda, em Arranjos Para Assobio, de composição cubista em que os blocos semânticos são justapostos, permitindo leituras em vários planos, onde a única lógica existente é a poética:

 

(...)Nos monturos do poema os urubus me farreiam.

Estrela é que é meu penacho!

Sou fuga para flauta e pedra doce.

A poesia me desbrava.

Com águas me alinhavo.

(A.A.)p.203.

 

Enlevado pelo seu poder criador, pela sensibilidade de sua percepção, M.B. libera a sua expressão cheia de plasticidade e com isso a sua poesia vai ganhando formas, passeando pelos recônditos do homem pantaneiro, ultimado pelo enlace com uma natureza prenhe, que anseia revelar-se como organismo vivo, pulsante e que traz em si o grito de insetos e larvas...um mundo nunca antes revelado, visto de baixo:

 

(...)No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo.

Aranhas caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado.

Dão ares de que saem do fundo da terra.

Formigas de roseiras dormem nuas.

Lua e árvore se estudam de noite.

Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se

preparando para nascer.

Todo vivente se assanha.

Até o inseto de estrume está virando.

Se ouve bem de perto o assobio dos bugios na orla do cerrado.

Cupins estão levantando andaimes.

(L.P.C.)p.235.

 

O poeta matogrossense, como ser criador, vai revelando a multiplicidade de vidas que habitam o pantanal e que traduzem a força criadora de Eros em sua constante luta com Tanatos: morte, traçando a conduta do ser no equilíbrio natural, já que para a sobrevivência de uns se faz necessário o desaparecimento de outros. Como nos fala Georges Bataille:

 

(...)Os que se reproduzem sobrevivem ao nascimento do que eles geram, mas essa sobrevivência não é senão um sursis. Um prazo é dado aos recém chegados, mas o aparecimento destes é a prova de um desaparecimento dos predecessores.”

 

Esse sursis de fala Bataille é ricamente mostrado no poema Agroval, onde a relação de trocas que se estabelece – no processo de multiplicação – entre os seres é bem caracterizada:

 

Agroval

 

Por vezes,nas proximidades dos brejos ressecos,

Quando as águas

Encurtam nos brejos, a arraia escolhe

Uma terra propícia,

Pousa sobre ela como um disco, abre

Abre com suas asas uma cama,

Faz chão úbere por baixo, e se

Enterra.

 

Por baixo de suas abas lateja um

Agroval de vermes, cascudos, girinos

E tantas espécies de insetos e

Parasitas, que procuram o sítio como

Ventre.

E a cabo de três meses de trocas e

Infusões,

A chuva começa a descer...e a arraia

Vai levantar-se.

Seu corpo deu sangue e bebeu.

Na carne ainda está embutido o fedor

De um carrapato.

 

É a pura inauguração de um outro

Universo.

(L.P.C.)p.232-4

 

M.B. funde o adjetivo agro, que quer dizer: acre, escabroso, com o substantivo val, forma apocopada de vale e forma o título do seu poema: Agroval, portanto um vale acre, escabroso; difícil de se imaginar que ali haja vida, que possa acontecer algo tão misterioso como essas trocas entre animais. O Poeta, ser astuto, refletindo a energia criadora de Eros, traz à tona as coisas ínfimas, ordinárias e com elas reinventa a natureza, criando espaços que fogem ao pitoresco, ao superficial fotográfico, como ele mesmo afirma a José Geraldo Couto – enviado da Folha de S. Paulo – que o entrevistara:

 

(...)É evidente que não cabe a nós inventar o mundo mais do que está inventado.

para ter algum sentido, você tem que fazer, através da palavra, um outro mundo.”

 

E acrescenta:

 

“Então, para que se invente um mundo novo, é preciso que a gente transfigure, em vez de copiar.”

 

E é na feitura de um outro mundo que M.B. nos apresenta um homem nas suas múltiplas faces: entranhado nas coisas do chão, participativo da realidade pantaneira, identificado com o desejo natural dos bichos do Pantanal e revelado nas pulsões eróticas destes, como veremos a seguir:

 

(...)Em passar a sua vagínula sobre as
pobres coisas do chão,

a lesma deixa risquinhos líquidos...

a lesma influi muito em meu desejo de
gosmar sobre as palavras

nesse coito com letras!

Na áspera secura de uma pedra a lesma
Esfrega-se

Na avidez de deserto que é a vida de uma
Pedra a lesma escorre...

Ela fode a pedra.

Ela precisa desse deserto para viver.

(G.A.)p.293.

 

M.B. concentra as suas imagens no que ele nomina, substantiva, antropomorfiza, como é o caso da lesma: animal quase sempre asqueroso, gosmento, marginal, que vem acompanhado de um caracol; por isso um duplo, como o é o poeta, que vai cavando espaços nas pedras, abrindo fendas com o corpo...empreendendo-se erótico na linguagem que adota. Para M.B. a lesma assim é definida:

 

Lesma, s.f.

Semente molhada de caracol que se
Arrasta

Sobre as pedras, deixando um caminho de
Gosma

Escrito com o corpo

Indivíduo que experimenta a lascívia do
Ínfimo

Aquele que viça de líquem no jardim.

(A.A.)p.215.

 

Assim como a lesma, os cascudos, o vasto bestiário pantaneiro, numa relação especular com o poeta, tornam-se matéria poética, liberam pulsões eróticas, empreendem-se figurativas, na acepção bartheana, plurissignificativas no momento em que se fundem com a natureza:

 

“(...)Por baixo das cascas podres, dizem, 

esses cascudos metem. Tais informações foram 

sempre dados por devaneios, por indícios, por 

força de eflúvios – A partir da fusão com a 

natureza esses bichos se tornam eróticos. Se 

encostavam no corpo da natureza para exercê-la. 

E se tornavam apêndice dela.”
(G.A.)p.284.

 

Sobre esse assunto, no livro Erotismo e Literatura, Jesus Antônio Durigan assim concebe o estabelecimento do erótico:

 

“(...)O erotismo, se assim podemos dizer, 

resultaria de um conjunto de relações ligadas ao 

princípio do ou decorrentes do princípio da 

realidade, de cujo inter-relacionamento se 

configurariam os lugares dos sujeitos. Esses 

lugares marcados pela falta, pela necessidade, 

corresponderiam aos espaços dos sujeitos 

mediatizados e orientados para a consecução do 

prazer, a supressão da necessidade, suas atuações, 

seus papéis, no espetáculo erótico.

 

É interessante observar como o poeta, através da linguagem, vai tecendo esse conjunto de relações, de que fala Jesus Durigan, significativas que irão configurar o texto erótico:

 

Uma palavra abriu o roupão pra
mim

Ela deseja que eu a seja.

(L.S.N.)p.70

 

Já para Roland Barthes, em O Prazer do Texto, referindo-se sobre o lugar do erótico no corpo, na cultura e na palavra, assim o define:

 

“(...) Nem a cultura nem a sua destruição 

são eróticas; a fenda entre ambas é que se torna 

erótica”. E acrescenta: O lugar mais erótico de um 

corpo não é o ponto em que o vestuário se entreabre?

 

O que se pode interpretar dessa fenda é que ela é a novidade significativa, que, no caráter do inesperado, faz vir à tona a novidade poética como força da atuação do sujeito no desejo de revelar-se...do vir a ser. É a linguagem como força reveladora, como veremos:

“A terapia literária consiste em

desarrumar a linguagem

a ponto que ela expresse nossos mais
fundos desejos.”

(L.S.N.)p.70.


M.B., no conjunto de sua obra, busca a expressão mais pura, fecundada no seio de uma natureza muitas vezes desconhecida, anônima, mítica...mas louca por revelar-se. Uma natureza que fala para quem sabe ouvi-la...uma natureza que também é linguagem, como afirma Mikel Dufrenne no seu livro O Poético:

“A linguagem é de per si natureza, mas é 

uma natureza que fala e que inspira, testemunha e 

expressão, diremos, de uma natureza naturante que 

por si mesma nos fala.” E acrescenta: “Se o poeta 

trata a linguagem como coisa natural, é talvez 

pressupondo uma natureza falante. É em todo caso 

respeitando a função semântica da linguagem, 

elevando ao máximo seu potencial expressivo; esse 

potencial será tanto mais elevado quanto mais a 

palavra for restituída à sua natureza e reconduzida 

à sua origem.”

E foi assim, que, seduzido pela Linguagem-natureza” e pela “natureza-naturante”, busquei fazer uma reflexão crítica sobre o Poeta do Pantanal e nele descobri um menino levado, que brinca com as palavras, terapeutizado pelos seus delírios verbais; congraçado pelas antíteses de Baudelaire...quando, na pretensão de obter sabedoria vegetal, chega ao criançamento das palavras e abre um descortínio para o arcano.

Fonte da imagem:http://3.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SggZu3bN9pI/AAAAAAAAAe0/GqL98P2EYcU/s1600-h/lesma.jpg

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