O Passado Remoto - Giovanni Papini





Someday I'll get there...until then I'll just dream with my antique post card.....
Cartão postal: Torre Eiffel 1908





PRIMAVERA EM PARIS




         Nunca vi Paris tão jubilosamente inundada de sol e de inteligência como na Primavera de 1914. Parecia que a velha Europa, antes de se envolver no manto de fogo e de luto, quisera oferecer a si própria uma última course aux flambeaux, num dos seus mais famosos boulevards.
        O tempo estava quase sempre bonito, o céu tinha a amenidade perlada do mais cordial setentrião, a gente parecia contente de viver, e de viver precisamente naquela germinante estação. Nas árvores, que se erguiam entre as fortalezas burguesas dos grandes palácios negros, despontavam as primeiras folhas, a despeito do ar que cheirava a gasolina e a asfalto ainda húmido.
         Por toda a parte reinava uma vida alacridade, uma temeridade de experiências, uma vontade de tentar e ir mais além que dava alma e coragem aos mais ensonados, esperanças e embriaguez  aos mais arrojados aventureiros. Por toda a parte se falava em teorias novas, nasciam novas revistas, abriam-se novas exposições, novos poetas e pintores se revelavam. Pareci o festim de Alexandre, antes do incêndio da Babilônia.
         Fora até lá com Soffici e Carrà. Também Marinetti e Palazzeschi vieram por uns dias. Mais do que nunca Paris era a Alexandria da cultura moderna, onde convergiam homens vindos de toda a Europa. Os pintores mais famosos chamavam-se Picasso e Juan Gris, Modigliani e Van Dongen; os escultores mais célebres, Rosso e Archipenko; e também os escritores acorriam de toda a Europa.
Giovanni Papini, Marinetti, Palazzeschi: amigos futuristas
          Nos primeiros dias, logo me encontrei com o inesquecível Guillaume Apollinaire, escritor francês nascido em Roma, de mãe polaca. Corria a lenda, em Paris, de que era filho de um cardeal, talvez porque a sua corpulência e, sobretudo, a arguta bonacheirice do seu rosto largo tinham qualquer coisa de prelatício, qualquer coisa que recordava a adiposa malícia do Leão X, de Rafael. Naqueles tempos, Apollinaire era um dos mais audazes e discutidos escritores que havia em Paris, e a ele se devia, além do mais, a teoria e o êxito da pintura cubista. Mas não tinha nada do hirsuto refractário das passadas guerras literárias e artísticas. Parecia um senhor afável, um fidalgo fantaisiste, mas de garbo requintado, e, como dizem os Franceses, era de commerce agréable. Tinha uma vastíssima cultura de primeira mão, conhecia os segredos e os mistérios das doutrinas antigas e da literatura proibida, e era um curioso de tudo aquilo que não chamasse a curiosidade da gente comum; sabia muitas línguas e, entre elas, o italiano. Tinha já publicado Alcools, que revelaram um poeta original, liberto das peias do Simbolismo e, pelos seus romances, pode contar-se entre os precursores do Surrealismo: creio até que o termo foi invenção sua. Fundara, havia há pouco, uma revista, Les Soirées de Paris, onde também eu publiquei um artigo – um paralelo entre Croce e Bergson –, e até estive instalado com Carrà no apartamento do Boulevard Raspail que era a redação das Soirées: estranha redação, sempre deserta, onde apenas aparecia, mas raramente, o taciturno e fantástico secretário de Apollinaire, o barão Mollet.

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Guillaume Apollinaire
        
     Muitas belíssimas horas passamos com Apollinaire. Um dia, acompanhava-nos aos marchands de tableaux que sustentavam a pintura cubista; outro dia, a uma exposição de vanguarda; à noite levava-nos aos bals musette ou às ruelas misteriosas onde os negociantes de bananas tinham as suas lojas e os seus bares; umas vezes, ao Cirque d’Hiver ou ao Vieux Colombier, onde, pela primeira vez, vi o drama mais famoso de Synge: The Playboy of the Western Worel. Íamos também a casa dele, um último andar do Boulevard Saint-Germain, onde ocupava, sozinho, muito mais divisões espaçosas, cheias de livros, de máscaras japonesas, de esculturas negras e de quadros cubistas.
      Não se julgue, porém, que me considerava a mim e aos meus amigos como provincianos aos quais se divertia a fazer de cicerone numa Paris excêntrica. Sabia perfeitamente que o nosso movimento florentino e italiano estava a par de todos os movimentos europeus do género, e tratava-nos como bons companheiros de procura e de batalha. Ele próprio mandou alguns dos seus escritos à Lacerba, que era então dirigida por mim e por Soffici.


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Picasso et le marchand de tableaux Daniel-Henry Kahnweiller,
Villa La Californie 

 , 1958
        Outro escritor muito curioso que então conheci foi Max Jacob, já convertido ao catolicismo, mas que não tinha perdido nada da sua índole enigmática, caprichosa e por vezes diabólica. Max Jacob era muito diferente do amigo Apollinaire. Também ele tinha algo de padre, mas padre sem sotaina, vadio, pobre e parasita, um tanto vicioso, um tanto genial, um tanto equívoco. Tinha uma cara esquisita, de jovem envelhecido antes do tempo, uma cara vincada e gasta, não sei se pela ascese ou pela sensualidade: uma cara com tanto de santo como de feiticeiro. Tinha já publicado uns livros, entre os quais a lenda de Saint Matorel, mas com pouco êxito. Ele próprio vendia estes volumes pelas casas dos amigos, e para os tornar mais apetecidos apunha-lhes dedicatórias em versos. A mim, por exemplo, quis-me vender uma recolha de contos célticos, intitulada La côte, com esta curiosa dedicatória, que alude à minha “antifilosofia”.

Lorsque tout est fini
Qu’on attend les desastres
Il arrive des astres
Celui qui doit lancer la foudre et le balastre
Pour faire mourir enfin toute philosophie
                                      te voici, Papini.

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Poeta Max Jacob
         Encontrava-o muitas vezes em casa de Roch Grey, pseudónimo literário de uma senhora russa de bizarro talento, fautora e protectora da arte de vanguarda, que possuía, entre outros, alguns dos mais belos quadros do douanier Rousseau que jamais vi. Numa noite em que lá estava muito mais gente – e creio que também lá estavam os irmãos Tharaud – Max Jacob, excitado pelo vinho e pelas conversas, quis, por força, exibir-se numa dança inédita, e não posso esquecer o seu corpo ossudo e desengonçado, apertado num fatito preto e rematado pelo seu rosto compungido de sátiro devoto, de polichinelo místico. Também íamos frequentemente – eu, Soffici e Carrà – a casa de Picasso, onde apareciam muitos pintores franceses e estrangeiros e, uma vez por semana, à então famosa Closerie des lilás, onde se reuniam artistas e escritores de todas as escolas e de todas as raças, e onde conheci Paul Fort, o prince des poètes. Paul Fort tinha, na verdade, qualquer coisa de um príncipe destronado: algo triste, algo cansado, algo distraído, com uma nobre face em que brilhavam dois olhos escuros e profundos de grande visionário. Dirigia, então, Vers et Prose, e era muito ajudado pela mulher, uma senhora simples mas inteligente. Recordo-me de uma longa corrida de fiacre que fiz com ela, por alguns bairros de Paris, em busca de um exemplar dos Chants de Maldoror, do conde de Lautréamot, que não estavam ainde em moda nem reeditados, e de que Paul Fort queria extrair umas páginas para Vers et Prose.
        Muitos outros escritores, célebres ou esquecidos, conheci eu naqueles dias, mas tão fugazmente que não vale a pena recordá-los. Acrescentarei um único.
Forte, paul
Poeta Paul Fort
         Uma das noites mais memoráveis daquela minha estada primaveril em Paris foi a que passei em casa de Constatino Balmont, amigo do meu amigo Jurghis Baltrusaitis e que era, naquela época, um dos mais famosos e falados poetas da Rússia, autor, entre outros, de um volume de versos intitulado Queremos Ser como o Sol.
         Balmont era ainda novo e bem conservado – não atingira ainda os cinquenta anos – e, com a sua cabeleira abundante, os seus longos bigodes e a sua barba em bico, mais parecia um mosqueteiro moscovita de que um homem de letras. Acolheu-nos festivamente e apresentou-nos às numerosas pessoas que enchiam uma sala, não muito grande. Havia muitos russos de Paris e, se bem me lembro, também lá estava o poeta Valério Brjussof. Mas, sobretudo, muitas mulheres, solteironas “cerebralistas” quase todas, em busca de ilusões perdidas e de novos amores. Balmont, naquela noite, mostrava-se digno do título do seu livro: cintilante, brilhante, radiante como o sol que tanto amava. Declamou vários poemas seus, primeiro em russo, depois em francês, com uma voz musicalmente sedutora, e com gestos comedidos de antigo fidalgo. Havia naquelas poesias imagens vívidas e quentes, e sobretudo invocações e recordações de uma vida aberta e triunfante, de uma vida mais cheia de frutos e de alegrias, de uma vida tropical e solar.
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Poeta simbolista russo Constatino Balmont
        
Antes de se despedir de nós, Balmont prometeu que iria a Itália, que iria mesmo a Florença, e que nos avisava. De facto, passado alguns meses escreveu-me a dizer que tinha chegado à minha cidade e, uma tarde, por volta das cinco horas, eu e Soffici fomos ter com ele a uma pensão da Piazza Indipendenza, onde estava hospedado. Indicaram-nos o seu quarto e batemos à porta. Não tivemos resposta. Batemos com mais força. E, então, ouvimos, do lado de dentro, uma voz surda e rouca de ébrio, muito diferente da que conhecêramos em Paris:

         – Não posso. Voltem dentro de duas horas.

         Compreendemos que Balmont, conforme era seu hábito e de outros poetas, passara a noite a beber e, apesar de estar já próxima outra noite, não tinha ainda curtido a bebedeira. Apaixonado pelo sol, o nosso caro Balmont tinha de contentar-se, nos países temperados, com o “calor do sol que se faz vinho”, para utilizar a expressão de Dante.
         Mas voltemos a Paris. Os dinheiros, infelizmente, estavam a chegar ao fim – apesar duns pequenos vales do amigo editor Vallecchi – e era preciso regressar a casa. Numa das últimas manhãs antes da partida, estava a escrever um artigo para Lacerba, mesmo junto à janela, no rés-do-chão onde estava instalada a redação das Soirées de Paris. De repente, senti bater nos vidros. Levantei a cabeça e vi uma rapariga que me sorria e me dizia adeus, acenando com um ramo de violetas que tinha na mão. Não a reconheci – de facto, nunca a tinha visto antes – e limitei-me a corresponder, com sorrisos e com gestos, ao gentil cumprimento da desconhecida. Era provavelmente, uma estudante, ou talvez uma costureirinha que a minha cabeça desguedelhada, debruçada sobre o papel, levara a parar, demonstrando daquela maneira carinhosa a sua pena ou a sua simpatia pelo desgraçado poeta que, em vez de andar lá fora a gozar o sol, estava ali fechado, dobrado a alinhavar palavras.


Revista literária da cidade de Florença
        Aquele jovem sorriso, aquele ramo de violetas, aquela imagem de rapariga desconhecida e todavia amiga, ficaram-me na memória como o extremo cumprimento daquela primavera feliz, como o símbolo afectuoso daquela cidade ardente e acolhedora, que nada pressentia ainda da guerra que dentro em pouco iria agitá-la e entrenebrecê-la.
        Poucos dias depois, regressei a Florença. Voltei a Paris diversas vezes, mas nunca mais encontrei aquela arejada animação, aquela fervorosa ansiedade de descoberta, aquela atmosfera de audaciosa aventura intelectual que tanto me tinham confortado e exaltado na remota Primavera de 1914.

In. O Passado Remoto. Trad. Amandina Puga. Lisboa:Editorial Verbo, 1971, P.204-208.

Fonte das imagens: 

1- https://br.pinterest.com/pin/133137732703619014/    
2- https://www.ecodelnulla.it/la-pulce-e-lelefante
3- https://daliteratura.wordpress.com/2014/08/26/imagens-literarias-7-guillaume-apollinaire/
4-http://www.artnet.com
5-https://br.pinterest.com/pin/539517230342823809/?lp=true
6-https://www.britannica.com/biography/Paul-Fort
7- https://www.pinterest.es/pin/474918723192056152/
8-https://es.wikipedia.org/wiki/Lacerba

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