Resistência e Linguagem: O Inventário Poético de Ítalo Francisco Campos



Nesta Edição, a Revista Banzeiro traz a poesia de Ítalo Francisco Campos. Ítalo é goiano de  Uruaçu, mas vive em Vitória,Espírito Santos, desde 1976.Psicanalista e psicólogo formado pela UFMG, é Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. É também membro da Academia Espírito-santense de Letras e da Academia Uruaçuense de Letras. É criador do Varal de Poesia, evento cultural que se realiza anualmente no Vagão Espaço de Arte, em Manguinhos (Serra/ES). Com ampla participação na vida cultural e política da cidade, o autor colabora regularmente na imprensa com artigos e resenhas. Destaca-se ainda sua participação como organizador de importantes publicações na área da saúde: "Drogas em Debate" (1991); "DST/AIDS: uma experiência capixaba" (2003); e "Vidas Interrompidas" (2009). Escreveu e publicou "Interiores" (1995); "O Sádio e o Mentecap-to" (1998); "Sabor da Letra" (1999); "Anil Bucólica(s)" (2006); e "Embaralhando Palavras" (2011).




Filho de escritor, irmão de poeta, Ítalo passeia com desenvoltura pelas sendas da poesia. Na sua poética estão consubstanciadas memória e história, não somente a memória do passado, de evocação, mas a memória do futuro, na qual se projeta, num ir e vir constantes.Consciente da fluidez do tempo e da perecibilidade das coisas, deles se alimenta e com eles constrói o seu mundo particular, via linguagem, no qual pode transitar sem os empecilhos dos opressos dissabores da sua contemporaneidade.

Poeta, psicólogo, psicanalista, tem nas formas o substrato de suas representações poéticas, sejam líricas,épicas ou dramáticas, não importa, o que importa mesmo é a plenitude de sua tessitura. Poeta e linguagem fundem-se, dão-se as mãos, se fazem, como no dizer do poeta e crítico literário mexicano Octavio Paz (1996, p.116-17): "A linguagem cria o poeta e só na medida que as palavras nascem, morrem e renascem em seu interior ele é, por sua vez, criador." Ítalo sabe muito bem do que fala  o poeta mexicano, pois é a linguagem sua matéria diária, a cada momento a ela se funde, por ela se faz representar, por meio dela passa a existir. A sua poesia também é resistência, suplanta a estupidez, sempre se refazendo, daquilo que fala Alfredo Bosi (1997, p.117): "Há na poesia como na linguagem (de que ela é a forma suprema), uma capacidade de resistir e de reproduzir-se que parece ter algo das formas da natureza."

A sua poesia é vária, muito bem tecida, traz em si a força das representações humanas, imagens da vida, "signos em rotação. Nela estão presentes o humor, a memória, a metalinguagem e o erotismo, como se poderá comprovar nesta coletânea por nós selecionada.

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O TREM É ESSE

Acordem, vovô Afonso e vovó Leonídia,
Ouçam a toada
Do trem chegando...
Não, não é sonho! Levantem Diva,

Cristovam, Carolina e Olimpia,
Abram os olhos e vejam.
Não é sonho.Vá chamar Adelino.
Acordem, Dito de Jesus, Dulce,
Derci, Luluca e 
Lá vem a Maria Fumaça escrevendo no céu.
Vejam a esperança! Ouçam os pássaros fazendo coro.
Apreciem o vuc-vuc-vuc da máquina de fogo.
Acordem Ditão,
Venham ver o cavalo-de-ferro rompendo o cerrado,
Arrebentando lagoas, espantando os animais.
A onça, o macaco, as capivaras e as antas observam.
O bicho centopeia de patas redondas e olhos brilhantes
Avança.

Acordem, Zé Lobo.
Corram ao terreiro venham ver a 
Locomotiva oitocentista que corre como siriema
Carregando no seu rabo todo tipo de 
Encomenda.
Acorde todo povo da Tapera,
Venham para a porta fazer a festa, cantar alegrias.
Dancem, fortes sertanejos, de mãos dadas, as cirandas 
De saudação.
Todos os mortos e os vivos desta Tapera - Fazenda 
Imaculada Conceição – girando a ciranda no dia seguinte 
Da Imaculada, fez chegar o trem.
Que ela traga, junto com sua avó Santana, o balsamo para esta 
Terra que elas sempre habitaram.
Que Imaculada e Santana 
desarme o forasteiro, fertilize estes campos, abrande os corações..
Que Iraídes e Hildelbrande, de mãos dadas aos Fernandes,
Regue este cerrado de chuva natural, façam correr o riacho,
Cresçam a manga, o abacate, a banana, o arroz o feijão e a cana.
E que, para o ano, no dia da Imaculada, esta fazenda abençoada
Contar o seu progresso em forma de toada,
reverenciar sua beleza e confirmar a paz,
Entre a técnica e a natureza.



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Planejo lhe matar concreta e lentamente,
arrancar seus olhos , nervo óptico, troclear e abducente.
Esses olhos me vêem
como não me gosto, serão enterrados no fundo do mar
para confundirem com o verde,
com nada, com trevas.
Quebrar seus dentes um a um,
esses mesmos que me acariciaram os ouvidos
e fornecê-los ao primeiro artesão,
que fara um troféu.
Sua língua solta de palavras,
oh! estas terão especial tratamento:
hei de arrancá-las, parti-las em pedaços
tão pequenos como cada sílaba
quebradas em letras,
tão pequena matéria ficará
solta no ar.
Planejo lhe matar com minha caneta,
açoitá-la com radical força
sobre seu corpo esgarçado, contorcido,
hei de suplicar, verter lágrimas,
soluços, suores. Sem dor.
Planejo matar você
em mim,
tão profundamente, que também irei
morrer.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999, p.13
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Ato I


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Rosno para teus olhos
quando me flecham.
Dão medo! Bebo tua baba de cio
sem nenhum pudor e
obedeço feito vira-lata faminto
ao teu peito arfante. Nem amante sou mais!
Escravo, cativo, objeto
do teu gosto estranho,
alimento de ganância vaginal.
Mais nada!
Balanço meu rabo ao menor afago,
me arrastando aos teu
sapato de rua.
Esses pequenos passos são
de teu coração distraído...
Deito enfim para avançar-me
em ti
e te transformas nesta amorfa
massa sem gosto e choras,
sem poderes dar o que não tens,
comigo.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.15.



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.G Ana


Acusa-me de pervertido
que debaixo da saia
diz carinhos.
Você não se convence
que a cara do carinho não tem
idade,
que depois do suspiro, suspiro,
suspiro. Eu desapareço.
Não que não tenha razão,
a idade aumenta o carinho,
diminui a emoção.
Acusa-me de não ter magia,
quando envolvo em seu tesão,
é que pede sempre mais
do que sempre tem à mão.
Acusa-me e excusa-me
de lhe dizer o sim pelo não.
Não que não tenha razão,
a idade aumenta a dúvida,
diminui o coração.
Que faz esta perna sobre
a minha?
Que pesa, chateia e
esquenta.
Não que eu não tenha carinho,
é que a idade aumenta
a dívida, diminui o tesão.
E por que toda essa fala, essa fala,
se o sexo é trem-bala,
Titanic, furacão?

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.25.

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Mulher



Mulher não nasce,
ela aparece, quando saca em si o vazio
e a ausência.
Mulher não nasce,
ela floresce.
Quando seu ventre arrebenta
o novo, aí desperta. Não
feto, mas fato.
Mulher não nasce,
se faz,
quando contém o não-continente,
quando é, não é,
quando é verdade, ao mesmo tempo, mentira.
Mulher não existe na carne, se não for antes
na mente.
Mulher não nasce,
se cria,
sem forma, de natureza incerta,
no dia-a-dia, às vezes demônio, às vezes gente.
Mulher não nasce.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.29.

Gêneses



Várias palavras me fizeram,
meu jeito, meu gesto, meu ser.
Todas as tomei para mim,
assim me construindo.
Umas não foram ditas (apenas ausentes),
outras mal-ditas e, ainda outras,
entre-dentes.
Assim me fizeram.
Vários momentos me fizeram,
aqueles sem palavras,
as que eu não pude dar,
hoje eu busco.
E busco outras palavras
dessas mesmas que me fizeram,
para ouvi-las de novo.
Por outro lado.
Algumas cenas me fizeram
que represento sempre
como ator surdo,
num palco imaginado.
Várias palavras me fizeram
sem que eu as tenha pronunciado.
Adjetivos e verbos como puzzle
assim sou colado.
A palavra me desmancha e cura.
Se numa face me singulariza
e me apaga,
na outra pluraliza, não sou
nada.
Várias palavras me fizeram...


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.39.

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Poetar I




Desmanchar os versos
dos seus termos,
fazer liberdades
sem nexo, rima.
À palavra, sua força
nenhuma.
Retirar da palavra
o senso. O tempo,
o ritmo. Fazê-la nua, crua,
sonsa.
Tirar sua roupa,
abrir as perna,
rasgar seu véu,
estuprar...
Descoser cada palavra,
libertá-la de todo sentido,
até virar puro
concreto-matéria
som.
Cozinhar o verso,
fervê-lo na língua
até desprendê-lo,
descondensá-lo ao
sumo,
fazer essência.
Nenhuma!

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.40.

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Poetar II



Quebrar as frases, as crases,
retirar pontos
e vírgulas.
Fazê-las planas, plenas
pardacentas. Som. Som. Som!
Furar os termos,
rebentar ouvidos,
fazê-lo apenas -
mente borda,
mancha. Lembrança.
Destruir cada texto,
fazer nascer,
novo.
Entre partes.
Debulhar cada frase,
torná-la grão, apenas
grão.
Diluir cada palavra
até seu traço,
sua desmatéria,
seu real.
Destilar cada sílaba,
até o não possível sorvê-la.
Estar apenas
eu, o resto.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.41.


Poesia



Pensei que poesia fosse
um grito, um urro,
um murro. Chute no saco!
Vulcão, trovão, coisa parecida,
padecia. Não conseguia
escrevê-la. Poesia comigo,
prezado amigo, é modo de ser.
Não estável, recitável, reciclável.
Poesia é ato, que realiza nos modos,
certamente das palavras.
Metáfora, metonímia,
induzida, percorre sob a linha.
Poesia é conversa com ninguém - 
que certamente existe -
não tem sotaque, nem destaque,
nem bordão.
Poesia é também sussurro, prolongado,
às vezes parto cesário.
Minha poesia (tem hora)
é feito velha senhora,
conta conto repetido
com quem adia a morte.
Outras vezes é como suporte
que orienta, aguenta, faz ponte.
Ponte apenas!
Para nada.


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.42.

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A palavra
para Elisa Lucinda


A palavra, amiga Elisa,
não é a roupa do
sentido. É ao contrário.
O sentido veste a palavra,
enclausurada. Deixa-a presa,
tira a surpresa!
O sentido, Elisa,
é o que cobre a palavra,
dá-lhe finitude, tempo,
magnitude.
É uma represa!
O sentido mata a palavra.
Mas esta não morre,
outros sentidos a socorrem.
Eles são tantos que as palavras
resiste.
A todos os ouvidos,
a todos os sentidos,
a todo carrasco,
a todo sandido.
A palavra não precisa do
sentido.
Ela precisa do som, do ar,
do desejo:
de Elisa.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.43.

Prevenção



Sou um homem prevenido
que ao menor novo ruído
me devolvo ao caixão,
(que é feito de palavras)
sentenças-de-ordens,
idealização!


In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.47.


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Viver

Viver, mistério de colar
e descolar pedaços,
deixando espaços para
a alma do mundo
que carregas.
Produzir colagens,
transformar,
criar do nada
um sentido.

In. Sabor das Letras, Vitória: EDIT, 1999,p.53.



The days of creation - Sir Edward Burne-Jones

Dezenas de anjos receberam
minha mãe no céu.

Dez eram árabes e judeus
do tempo de Jericó,
outros dez anjos eram índios
da costa brasileira qu morreram
de espelhos e bugigangas.

Dez eram sertanejos
com berrantes, chibata e gibão.
Outros dez eram crianças
natimortas no sertão.

Dez anjos eram negros
da Cabina de Luanda,
roupas coloridas,
danças de quimbanda.

Outros dez eram andarilhos
das estradas do Brasil,
e dez anjos eram músicos
em suas alegrias.

Outros anjos eram seus filhos
Ilionei e eu,
que fui ao céu
só para saudá-la.


In. Elegia.Vitória: Flor & Cultura, 2012, p.52.


Créditos:

As imagens aqui utilizadas foram colhidas na Internet, livremente, sem autorização expressa dos seus donos, para os quais expresso os mais sinceros agradecimentos.

Obras citadas nesta publicação:

PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchôa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1996.
BOSI, Alfredo. O Ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1997.

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