Entrevista com Paulo Amarante


A vastidão da experiência humana: de Quixote a  Bacamarte.




A Revista Banzeiro republica esta excelente entrevista com Paulo Duarte de Carvalho Amarante, atualmente presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Paulo Amarante é Professor e Pesquisador Titular e Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).  Considerado um dos mais notáveis cientistas do país, Paulo Amarante é capixaba, natural de Colatina. No Rio de Janeiro especializou-se em psiquiatria e se tornou um dos pioneiros do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica. É Mestre em Medicina Social, Doutor em Saúde Pública, com Pós-doutorado em Imola (Italia). É Doutor Honoris causa da Universidade Popular das Madres da Plaza de Mayo;  autor e organizador de vários livros. Nesta entrevista, concedida a Rosana Carneiro Tavares e Francisco Perna Filhocom participação de Carlos Willian Leite e Ionara Vieira Moura Rabelo, ele fala sobre música, cultura, literatura e reforma psiquiátrica. A entrevista foi feita em 2006, no Papillon Hotel, em Goiânia,(Francisco Perna Filho).


Em 2005, o senhor foi curador da Mostra Cultura e Loucura, na Fundação do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Qual é a importância de mostras como aquela?

Paulo Amarante – A minha perspectiva é que a cultura, e dentro dela, as artes, representa dimensão importante do humano, do subjetivo, da forma como o homem dá sentido à vida. A ciência tem – visão equivocada de ciência – perspectiva de que a única possibilidade de conhecimento da realidade é pelo saber positivo científico. Acho que não. Acho que todas as formas de sentir o mundo contribuem para o entendimento do mundo. Não há forma definitiva, única de pensar. Então, a cultura é dimensão fundamental dessa possibilidade complexa, polimorfa de pensar, humana. E acredito que é por meio da cultura, no caso do nosso trabalho com a leitura, que você pode sensibilizar muito mais as pessoas. Faço uma conferência, escrevo um livro; tem efeito muitas vezes restrito, voltado para profissionais, certo tipo de pessoas que têm a verve intelectual para ler e refletir. Você faz uma peça, coloca um quadro falando da loucura; aquilo tem significado muito forte, que vai diretamente ao mais profundo que há no pensamento humano, subjetividade. Penso que hoje uma das estratégias mais importantes que temos de levar é essa ideia que o trabalho da reforma psiquiátrica, dos quatro campos, das dimensões da reforma, a dimensão sociocultural, que é para a gente conseguir falar com a sociedade sobre loucura de maneira distinta do discurso científico, mostrando que são sujeitos que têm outro lugar, que têm lugar consigo na sociedade, como é que se constrói esse lugar. É preciso promover o debate com todas as pessoas que trabalham na área de cultura, no campo da loucura. Pessoas que estão articulando teatro, filme, como a Laís Bodansky, que fez o “Bicho de Sete Cabeças”; Marcos Prado, que fez a “Estamira”; Leopoldo Nunes, presidente da Ancine, que lançou o “Profeta das Águas”, documentário sobre o famoso Caso Galdino, que liderou rebelião contra a barragem no sul do Mato Grosso do Sul, nos anos 70, tentaram enquadrá-lo como subversivo na Lei de Segurança Nacional. Depois, não encontraram uma forma, porque não tinha relação com movimento social ou político. Ele era um líder messiânico. Acabou sendo internado no manicômio judiciário e teve todo um movimento de libertação. É interessante o uso da psiquiatria inclusive como forma de repressão na questão política.

Cenas do filme Bicho de Sete Cabeças

Muitos artistas notáveis foram considerados loucos. Muitos trabalham o tema em sua obra. O que há de próximo entre arte e loucura?

Amarante – Há certo obstáculo para se definir se há proximidade. Acho assim: a loucura está muito próxima do humano e a arte também, a cultura também. Então, há pessoas absolutamente loucas que não são nada artísticas e há pessoas absolutamente artísticas que não são loucas. Logo, penso que a questão da genialidade em termo da arte e da criação não pode ser explicada nem pela razão nem pela desrazão. Creio que é uma capacidade que algumas pessoas têm, algumas mais do que as outras. Todos os homens têm a capacidade de olhar, sonhar, delirar, abstrair, ter pensamentos absurdos. Isso tudo pode ser forma de surgimento da arte. Agora, nem todos têm o dom. Por exemplo, conheci pessoalmente o Bispo do Rosário e Fernando Diniz. Este é pessoa genial, a pintura dele! Foi pessoa que morou a vida toda no hospício e ia todos os dias para a biblioteca, mais que estudante. Pegava os tratados de medicina e ficava estudando anatomia. Então, ele estudava a musculatura, a constituição do corpo humano, a ossatura. Via-se que ele estava aprendendo, conseguia reproduzir, pintar. Então, é um dom isso. E eu não acho que seja por causa da loucura. O Bispo, anteontem, faria 98 anos (Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 16 de março de 1911. Ao menos é essa a data que consta nos registros da Light do Rio de Janeiro, onde trabalhou de 1933 a 1937). E o Bispo era pessoa assim, insistia que não fazia arte. Ele cumpria apenas o desejo da voz que o mandava recolher e organizar as coisas. Agora, a gente que vê que essa forma de ordenar o mundo que ele tem, a estética com que ele faz, a sua lógica, é coisa fantástica. Então, a impressão que eu tenho é que são temas muito próximos, quanto à questão da relação loucura e cultura. São muito próximos e dizem respeito a uma possibilidade de pensar e ver o mundo diferente. Mas não são necessariamente interligados, não são interdependentes. Quer dizer, não precisa ser louco para ser criativo e nem a criatividade implica em loucura. Esse é meu entendimento.

Arthur Bispo do Rosário

O senhor defende a reforma psiquiátrica. Percebe se nas academias, cursos de graduação, a reforma está sendo discutida?

Amarante – Muito pouco. Isso é uma das funções que a gente tem feito de como que o processo ainda é muito restrito a grupo pequeno de profissionais, de familiares e de próprios usuários, ou seja, os próprios loucos. A expressão “usuários” é introduzida pelo SUS, que começou a considerar que toda pessoa que utiliza o sistema público é usuário, em oposição à ideia de consumidor, que é de relação privada. Mas acho que é uma falta e coisa em que precisamos investir. Eu, particularmente, há alguns anos venho observando e falando isso. Inclusive, me desloquei um pouco mais da assistência para a formação e depois da formação de especialistas em saúde mental na linha da reforma psiquiátrica, comecei a me dedicar mais a formar professores. A grande quantidade de orientandos que tenho em mestrado e doutorado, acho que se não conseguirmos formar quadros docentes capacitados com essa nova orientação teórica, ideológica e ética para enfrentar a academia, contaminando-a um pouco, para formar de maneira diferente, vamos ficar desgastados com o tempo. A reforma psiquiátrica que a gente tem de fazer é a reforma dos profissionais. Eles saem da faculdade com visão neoliberal privatista na cabeça, por um lado, e com o modelo biomédico de compreensão da doença e de tratamento pelo outro lado. Então, eles pensam a doença como aquela coisa bem positivista do modelo biomédico, a doença causada por algum agente físico ou biológico. As relações humanas não têm muito valor, a relação profissional não tem muito valor; o médico tem que ser um cara que faz o diagnóstico, identifica. Então, cada vez mais está superando a ideia da relação médico-paciente, que era a grande ideia da medicina hipocrática, que era o médico enquanto certa arte de curar, de relacionar-se. Por isso, hoje, entra-se no consultório, o cara não pergunta nem o nome. E já vai fazendo pedido de exame. Isso é tudo o modelo, o que pensa a doença, não o sujeito que está doente. O SUS certamente está longe do ideal, mas está iniciando uma mudança do modelo no Brasil. Grande mercado de trabalho no Brasil hoje para os profissionais de saúde é o SUS. Já foi um pouco o setor privado. Hoje, os consultórios particulares estão em decréscimo. As pessoas não pagam mais um psicanalista, por exemplo, um médico profissional. Elas vão ao seguro-saúde, quer relação pior, que é intermediada por uma empresa que verifica se o médico pode ou não fazer aquele pedido de exame, quantos pode ou não atender, tudo ela controla. Por outro lado, a relação técnica é com a doença, não com o sujeito. Se a gente não conseguir entrar na universidade para mudar esse processo, a gente vai ficar sempre desconstruindo a forma com que as pessoas têm para, aí sim, mostrar o que é a reforma psiquiátrica, tanto no aspecto conceitual quanto no aspecto da prática política assistencial, que é a prática de uma ética muito mais com o sujeito do que com prática privada do cliente e tudo mais. É ponto que merece estratégia um pouco mais definida para que a gente não fique sempre reformando as pessoas.´


Capra, no livro “Ponto de Mutação”, fala que um dos problemas com os movimentos sociais das décadas de 70 e 80 é que operaram isoladamente. O movimento antimanicomial se desenvolveu de forma isolada, a exemplo de outros movimentos importantes no Brasil?

Amarante – Não li o Capra. Gosto muito dele, aliás, o filme “Ponto de Mutação”, muitas pessoas não sabem que existe. Seu irmão, Bernt Capra, adaptou para o cinema e ele fez uma supervisão. Mas concordo. Vi algo parecido dito pelo Boaventura de Sousa Santos. Ele também fala desse afastamento dos movimentos sociais. Estamos, no momento, retomando a idéia do movimento sanitário. O movimento sanitário já teve amplitude maior, menos restrito a apenas os sanitaristas. Chegou a ser tão forte que era chamado de Partido Sanitário, na década de 70, e conseguimos, afinal de contas, o SUS. Conseguimos colocar na Constituição de 1988 os princípios do SUS, foi obra do movimento sanitário. Foi a única emenda que não foi apresentada por deputados, foi emenda popular. Rodamos o País pedindo assinatura. Conseguiu-se convencer os parlamentares, outros atores sociais que também atuavam no convencimento para que o SUS fosse aprovado. Agora, estamos em processo refundação do Cebes, Centro Brasileiro de Estudo de Saúde. O Cebes foi a entidade pioneira do movimento sanitário, criado por Davi Capistrano da Costa Filho, cujo pai foi fundador do Partido Comunista Brasileiro. Foi preso na ditadura militar e desaparecido. Foi uma das poucas pessoas de quem nunca mais se teve notícia. O Davi o criou (Cebes), junto com outros sanitaristas, depois somaram Sérgio Arouca e muitos outros sanitaristas famosos hoje. Eu tive a honra de entrar nesses primeiros momentos, junto com o atual ministro da Saúde, José Gomes Temporão, meu amigo da época. Depois, ele foi presidente do Cebes e eu fui vice dele. Depois eu virei presidente do Cebes e o Temporão foi da minha diretoria também. Então, é uma entidade que tem uma tradição dos sanitaristas, mas que também perdeu aquela força de movimento social, depois se institucionalizou, perdeu esse vigor de movimento reflexivo, crítico, de mobilização social. O ministro é ex-participante desse movimento, pode-se dizer que é participante. Mas estamos tentando retomar o caráter de movimento social, uma refundação, retomando reuniões mensais de conjuntura, estimulando em todos os Estados núcleos do Cebes, como tínhamos anteriormente, voltando a nos aproximar de outros movimentos sociais, culturais, grupos que lidam com populações de rua, sem-terra. Juntando essas pessoas que têm visão crítica em relação ao Estado e à sociedade e têm atuação política transformadora, voltando a aproximá-las em torno da questão da saúde. Então, os atores sociais que estão na militância, no Fórum Social Mundial e tudo o mais, esses atores estão entendendo o que é o SUS? Conseguimos passar realmente? Por que o sindicato dos trabalhadores está reivindicando planos de saúde? Não deviam estar reivindicando que o SUS fosse melhor? Por que os vários movimentos sociais, em vez de estar lutando pelo SUS, se acham mais seguros tendo plano de saúde? A gente não está conseguindo convencer essas pessoas. Por quê? Os planos de saúde hoje estão mais ou menos igual ao SUS.


 

Para o senhor, a reforma psiquiátrica deve encampar outros saberes além da psiquiatria. Como pode ser possível abordagem interdisciplinar horizontalizada na ação com o portador do sofrimento psíquico num mundo capitalista?

Amarante – Quando falo das várias dimensões é porque, de fato, o problema não é só de um modelo mais adequado ou mais moderno. Há uma fundamentação da ética, essa relação com o sujeito, essa relação com o sofrimento humano, com a sociedade. De fato, como eu falava da formação, o modelo tanto biomédico quanto o liberal capitalista ensina as pessoas a lidarem com a doença, porque saúde não dá dinheiro, a doença dá. Então, o nosso trabalho é também da concepção ética, da saúde do coletivo, da relação de solidariedade, de reciprocidade do sofrimento humano. Por isso, a reforma não pode estar restrita a repensar psicopatologia, psiquiatria, psicologia etc. A gente tem que introduzir outras dimensões do estudo humano. É interessante que a maior dos psiquiatras não tem formação em filosofia, em arte, cultura. Vi um psiquiatra falar, respondendo a algo que escrevi, não dei muita bola no momento, achava que era tão limitado o que ele dizia... Que Machado de Assis escreveu “O Alienista” porque tinha raiva de uma pessoa que morava em Itaguaí. A pessoa que não consegue perceber a imensidão de reflexões, de críticas que há em “O Alienista”, aos costumes, à sociedade, ao papel da ciência, aos limites de identificar o que é normal, como é que a gente convive. Quando ele interna todo mundo, que vê que a cidade morreu, ficou sem graça sem os exóticos etc. Depois achei uma crônica do Machado, publicada no jornal “A Semana”, o mesmo que publicou “O Alienista”. Ele já tinha publicado o conto de Itaguaí. No Hospício de Pedro II, na Praia Vermelha, teve uma época em que fugiu um louco famoso, chamado Custódio Cerrão. Hoje ele teria o diagnóstico de personalidade psicopática. Era um cara que tinha atitude muito controversa, brigava com todo mundo. Ele abriu as portas do hospício e com ele fugiu um monte de loucos. Saiu no jornal estampado assim: “Doudos fogem do hospício”. O Machado tinha essa coisa como o Scliar (Moacyr), que faz hoje na “Folha de S. Paulo”: lê as manchetes da semana, escolhe uma e cria em cima dela. Então, ele escreveu assim: estava assustado, sabendo que os “doudos” tinham fugido do hospício. E por que estava assustado? Porque antes, tudo que via de exótico em alguém na rua, comportamento esquisito, ele falava que era da pessoa, cada um tem seu jeito e tal. Aquele cara ali, esquisito, fazendo tal coisa, aquela mulher. Porque se fosse doido estava no hospício. Por que isso? Porque os psiquiatras cuidadosamente separavam os loucos dos normais. Agora, com a fuga dos doidos, ele voltou a ter problema, porque na sabia quem era e quem não era doido na cidade. É a mesma questão do “Alienista”. Então, ele começa a falar: fulano, eu não sei se ele estava no hospício ou não, aquele ali, aquele outro. No fim ele fala, “eu mesmo não sei se sou um desses fugitivos, porque para estar me colocando essa questão, eu devo ser um desses fugitivos.” Acho que a reforma psiquiatra não é um projeto de reformulação administrativa do modelo psiquiátrico, mas saindo de um modelo violento de segregação para um modelo humano, aberto, democratizado. Isso é conseqüência de ruptura na relação de objetivação dos sujeitos, de mercantilização do sofrimento humano para uma relação de subjetividade e de reciprocidade com as pessoas. Esse deslocamento que acho que é difícil fazer. E realmente você luta contra muitos interesses instituídos de hospitais privados, da indústria farmacêutica, de todo um mercado que se constituiu aí de formação, de livro, de publicações. Estou lembrado especificamente da Associação Médica Norte-Americana. Um dos maiores lucros da associação é a venda dos próprios manuais de classificação de transtornos mentais.

Machado de Assis
O senhor já foi casado com a cantora e compositora Fátima Guedes. Já tocou com grandes nomes da MPB. É multiinstrumentista. Há espaço para a música na profissão do professor?


Amarante – Com João Bosco, a gente fez uns saraus. Tocar mesmo, toquei com Fátima Guedes, toquei com Jandira Fegali, que é médica e música; com Perna Feud, que foi maestro do Caetano; com o Tunay e mais algumas pessoas. Sempre fiquei muito mais dividido do que pensava entre a música e arte e a militância. Há lugar sempre. Estou agora procurando recuperar um pouco o meu lado da arte. Tanto que quando estou promovendo eventos sobre cultura também estou mexendo com esse lado meu. Também toco de vez em quando. Na formação clássica, do militante, do professor, do artista a gente tinha que se dividir. Ou uma coisa ou outra. Acho que caí nesse equívoco. Talvez pelo momento histórico eu tivesse que me dar mais à militância. Rodei esse país algumas dezenas de vezes e abandonei esse lado da arte que eu deveria estar praticando mais. Acho que a gente deve romper com essa visão tradicional do doutor, do professor. É um pouco a ideia do “Nome da Rosa”, Jesus Cristo não pode rir. “O que é isso, companheiro”, do Gabeira também: você é militante, não pode amar, curtir música, dançar. Acho dentro do processo da reforma psiquiátrica a gente mexe também com essas coisas. A gente vai vendo que terapeuta também é um sujeito, então ele gosta de música, também quer cantar. Se a gente conseguir unir esses vários ângulos, essas várias facetas no nosso trabalho, a gente consegue trabalhar melhor e viver melhor.


Qual o valor da literatura na sua profissão de psiquiatra? E o que o senhor tem a dizer sobre o “Dom Quixote”? No mundo ainda há espaço para a fantasia e para a ilusão?

Amarante – Deus me livre se não houvesse. “Dom Quixote” é fundamental, é fundamental que existam os “Dom quixotes” e os “Sancho Panças”, o que segue o louco. Se não existisse, a gente estava entregue, dominado. A gente canta que está tudo dominado, mas não. Estamos quase, mas não estamos. A gente está resistindo, com a literatura, com os sonhos, com a rádio pirata, com os discos pirata, com a pirataria da mídia. A gente resiste de várias formas. Sempre oriento meus alunos a reler Foucault. A gente chama de último Foucault e última fase de Foucault. Ele é muito acusado de ter falado que o poder era tudo, então tinha de fazer. Era tudo, tudo é o poder. A partir do “Vigiar e Punir”, ele mostra como as instituições disciplinárias formaram, adestraram o humano subjetivo, o sujeito, que vem disso, alguém que é sujeitado à instituição, aos princípios, às regras. Numa linguagem, ou numa tradição, pelo menos, rigorosamente foucaultiana, a gente poderia dizer que é contra a transdisciplinaridade. Por quê? Porque a disciplina nasce da conjunção híbrida do exercício de adestramento sobre o sujeito, sobre os corpos que sujeitam os homens das instituições e nascem de um saber que fundamenta esse exercício de poder. Por isso que a gente fala da disciplina militar, da disciplina da escola, da disciplina da penitenciária, da disciplina da escola normal, da disciplina do reformatório, da disciplina da casa de correção. Da disciplina enquanto adestramento moral e físico do corpo e da disciplina da matemática, da psicologia da disciplina, que é um saber também adestrado que fundamenta as práticas de adestramento dos sujeitos. Então, teríamos de questionar a disciplina e as transdisciplinas. Poderíamos começar, como Foucault sugeriu, a falar em saberes. E aí para ele a pintura, a arte de Van Gogh, a poesia de Arthur e o teatro, o livro de Erasmo de Rotterdam, o “Dom Quixote de la Mancha”, tudo isso é saber para ele. Essa foi a grande revolução do Foucault na área das ciências, foi que ele começou a fazer uma história da psicologia e da psiquiatria, e acabou fazendo história da loucura, porque não caiu no engodo de ver a história da psiquiatra a partir da própria. Conseguiu fazer uma história da loucura em que a psiquiatria é um dos saberes. Mostra que há um saber sobre a loucura na arte: na poesia, na literatura, no senso comum, no direito, em vários outros campos. Então, ele vai chamar isso de saber, sem fazer distinção se é ciência ou não ciência. São saberes que constituem o humano, o real, a nossa relação com o real. Por isso, fez uma arqueologia dos saberes. Então, numa terminologia foucaultiana não podemos concordar com a transdisciplinaridade, mesmo que saibamos o que está querendo dizer. Estou falando de transversalidade dos saberes. Como é que posso navegar por vários saberes e falar da loucura, pensar sobre a loucura mais numa idéia de transversalidade, mas não como idéia de disciplina. Relacionando à literatura um pouco mais, acho fundamental... Hoje, é o sonho  não só do psiquiatra, como do cientista. O (Ilya Prigogine ), Prêmio Nobel de Química em 1977 e (Isabelle Stengers  ) escreveram o livro “A nova aliança”. Aliás, o (Prigogine) é um dos caras mais fantásticos que eu conheço. A Universidade do Pará com a do Rio Grande do Norte publicou um livro dele que chama “Razão e Emoção”. Ele fala o tempo todo que não há cientista com capacidade de transformação do saber e da visão que a sociedade tem de mundo se não conseguir entender o que diz a literatura sobre o humano, o teatro. Fala inclusive que para entender certos movimentos que ele vê na bioquímica em microscópio, ele precisou do teatro, para entender certas articulações do corpo... Então, a literatura não é só entretenimento, é constituinte da nossa forma de entendimento da vida, dos sujeitos e do humano.

Dom Quixote - Gustave Doré

Até que ponto a arte nos salva de nós mesmos e do espaço em que vivemos?


Amarante – É fundamental que a gente tenha a visão de que a arte é constituinte. Há a visão de que arte é aquele lazer que você faz no domingo, não que ela ajuda na construção permanente de como eu lido com a vida. Essa é a dimensão que a gente deveria ter, e não fazer esse deslocamento, de que a ciência está num lugar, o da profissão, a arte está em outro local, meio ligado a lazer. A arte é constituinte de toda nossa compreensão de mundo. Há muitos autores que dizem que arte inova na possibilidade de criar coisas. O Atlan (Henri) é prêmio internacional também, fisicoquímico importante. Está no último livro dele, “Útero Artificial” ( Rio de Janeiro:Editora Fiocruz; 2006. 128 pp.) Ele fala da possibilidade muito próxima que a humanidade está de gerir seres humanos totalmente artificiais. Já tivemos bebê proveta. Mas a ovulação tem que ser no corpo da mulher. Ele diz que falta muito pouco para se chegar ao útero artificial. Já há as condições previstas. Falta chegar à técnica. Mas como ele faz análise dos mitos das ciências e da possibilidade de transformar em prática, está muito próximo. E nisso ele faz uma visão de futuro absolutamente preocupante. Quando se começar a controlar a gênese, pode-se transformá-la em questão de Estado. Então, para se ter filho tem que ter autorização do Estado. Começa a falar da questão de controle raça, de evitação de doenças e de uma série de questões sociais e políticas que vão acontecer. E da própria sexualidade. Será que a sexualidade é para sempre na humanidade? No momento em que se dispensá-la para haver procriação, ela vai ter papel completamente diferente. Você está lendo isso, parece que está lendo um livro de ficção científica. É um cientista. Aí, ele fala, no começo: “Não se assuste.” O trabalho de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, foi inspirado num cientista a que ele assistiu, leu e cita. Foi Haldane (John B.) que fez conferência famosa em 1922, falando dessas mudanças no mundo, do big brother, da possibilidade de controle social, das populações, das castas e tudo da ciência. Então, a aproximação entre literatura e ciência tem muito mais do que mera visão de lazer. “O Alienista”, por exemplo, é uma crítica à psiquiatria que antecipou em 100 anos a reforma psiquiátrica. Tudo o que a gente fala está lá: de perto ninguém é normal, o poder institucional da psiquiatria. Pergunta de Foucault: como uma ciência com tão pouco teor científico, comprobalidade e verificabilidade tem tanto poder? Poder de encarcerar pessoas para o resto da vida etc. Tudo isso está em “O Alienista”. 

O Alienista - Machado de Assis ILUSTRAÇÕES DE PORTINARI, 1948

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