Entrevista com Paulo Amarante


A vastidão da experiência humana: de Quixote a  Bacamarte.




A Revista Banzeiro republica esta excelente entrevista com Paulo Duarte de Carvalho Amarante, atualmente presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Paulo Amarante é Professor e Pesquisador Titular e Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).  Considerado um dos mais notáveis cientistas do país, Paulo Amarante é capixaba, natural de Colatina. No Rio de Janeiro especializou-se em psiquiatria e se tornou um dos pioneiros do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica. É Mestre em Medicina Social, Doutor em Saúde Pública, com Pós-doutorado em Imola (Italia). É Doutor Honoris causa da Universidade Popular das Madres da Plaza de Mayo;  autor e organizador de vários livros. Nesta entrevista, concedida a Rosana Carneiro Tavares e Francisco Perna Filhocom participação de Carlos Willian Leite e Ionara Vieira Moura Rabelo, ele fala sobre música, cultura, literatura e reforma psiquiátrica. A entrevista foi feita em 2006, no Papillon Hotel, em Goiânia,(Francisco Perna Filho).


Em 2005, o senhor foi curador da Mostra Cultura e Loucura, na Fundação do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Qual é a importância de mostras como aquela?

Paulo Amarante – A minha perspectiva é que a cultura, e dentro dela, as artes, representa dimensão importante do humano, do subjetivo, da forma como o homem dá sentido à vida. A ciência tem – visão equivocada de ciência – perspectiva de que a única possibilidade de conhecimento da realidade é pelo saber positivo científico. Acho que não. Acho que todas as formas de sentir o mundo contribuem para o entendimento do mundo. Não há forma definitiva, única de pensar. Então, a cultura é dimensão fundamental dessa possibilidade complexa, polimorfa de pensar, humana. E acredito que é por meio da cultura, no caso do nosso trabalho com a leitura, que você pode sensibilizar muito mais as pessoas. Faço uma conferência, escrevo um livro; tem efeito muitas vezes restrito, voltado para profissionais, certo tipo de pessoas que têm a verve intelectual para ler e refletir. Você faz uma peça, coloca um quadro falando da loucura; aquilo tem significado muito forte, que vai diretamente ao mais profundo que há no pensamento humano, subjetividade. Penso que hoje uma das estratégias mais importantes que temos de levar é essa ideia que o trabalho da reforma psiquiátrica, dos quatro campos, das dimensões da reforma, a dimensão sociocultural, que é para a gente conseguir falar com a sociedade sobre loucura de maneira distinta do discurso científico, mostrando que são sujeitos que têm outro lugar, que têm lugar consigo na sociedade, como é que se constrói esse lugar. É preciso promover o debate com todas as pessoas que trabalham na área de cultura, no campo da loucura. Pessoas que estão articulando teatro, filme, como a Laís Bodansky, que fez o “Bicho de Sete Cabeças”; Marcos Prado, que fez a “Estamira”; Leopoldo Nunes, presidente da Ancine, que lançou o “Profeta das Águas”, documentário sobre o famoso Caso Galdino, que liderou rebelião contra a barragem no sul do Mato Grosso do Sul, nos anos 70, tentaram enquadrá-lo como subversivo na Lei de Segurança Nacional. Depois, não encontraram uma forma, porque não tinha relação com movimento social ou político. Ele era um líder messiânico. Acabou sendo internado no manicômio judiciário e teve todo um movimento de libertação. É interessante o uso da psiquiatria inclusive como forma de repressão na questão política.

Cenas do filme Bicho de Sete Cabeças

Muitos artistas notáveis foram considerados loucos. Muitos trabalham o tema em sua obra. O que há de próximo entre arte e loucura?

Amarante – Há certo obstáculo para se definir se há proximidade. Acho assim: a loucura está muito próxima do humano e a arte também, a cultura também. Então, há pessoas absolutamente loucas que não são nada artísticas e há pessoas absolutamente artísticas que não são loucas. Logo, penso que a questão da genialidade em termo da arte e da criação não pode ser explicada nem pela razão nem pela desrazão. Creio que é uma capacidade que algumas pessoas têm, algumas mais do que as outras. Todos os homens têm a capacidade de olhar, sonhar, delirar, abstrair, ter pensamentos absurdos. Isso tudo pode ser forma de surgimento da arte. Agora, nem todos têm o dom. Por exemplo, conheci pessoalmente o Bispo do Rosário e Fernando Diniz. Este é pessoa genial, a pintura dele! Foi pessoa que morou a vida toda no hospício e ia todos os dias para a biblioteca, mais que estudante. Pegava os tratados de medicina e ficava estudando anatomia. Então, ele estudava a musculatura, a constituição do corpo humano, a ossatura. Via-se que ele estava aprendendo, conseguia reproduzir, pintar. Então, é um dom isso. E eu não acho que seja por causa da loucura. O Bispo, anteontem, faria 98 anos (Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, em 16 de março de 1911. Ao menos é essa a data que consta nos registros da Light do Rio de Janeiro, onde trabalhou de 1933 a 1937). E o Bispo era pessoa assim, insistia que não fazia arte. Ele cumpria apenas o desejo da voz que o mandava recolher e organizar as coisas. Agora, a gente que vê que essa forma de ordenar o mundo que ele tem, a estética com que ele faz, a sua lógica, é coisa fantástica. Então, a impressão que eu tenho é que são temas muito próximos, quanto à questão da relação loucura e cultura. São muito próximos e dizem respeito a uma possibilidade de pensar e ver o mundo diferente. Mas não são necessariamente interligados, não são interdependentes. Quer dizer, não precisa ser louco para ser criativo e nem a criatividade implica em loucura. Esse é meu entendimento.

Arthur Bispo do Rosário

O senhor defende a reforma psiquiátrica. Percebe se nas academias, cursos de graduação, a reforma está sendo discutida?

Amarante – Muito pouco. Isso é uma das funções que a gente tem feito de como que o processo ainda é muito restrito a grupo pequeno de profissionais, de familiares e de próprios usuários, ou seja, os próprios loucos. A expressão “usuários” é introduzida pelo SUS, que começou a considerar que toda pessoa que utiliza o sistema público é usuário, em oposição à ideia de consumidor, que é de relação privada. Mas acho que é uma falta e coisa em que precisamos investir. Eu, particularmente, há alguns anos venho observando e falando isso. Inclusive, me desloquei um pouco mais da assistência para a formação e depois da formação de especialistas em saúde mental na linha da reforma psiquiátrica, comecei a me dedicar mais a formar professores. A grande quantidade de orientandos que tenho em mestrado e doutorado, acho que se não conseguirmos formar quadros docentes capacitados com essa nova orientação teórica, ideológica e ética para enfrentar a academia, contaminando-a um pouco, para formar de maneira diferente, vamos ficar desgastados com o tempo. A reforma psiquiátrica que a gente tem de fazer é a reforma dos profissionais. Eles saem da faculdade com visão neoliberal privatista na cabeça, por um lado, e com o modelo biomédico de compreensão da doença e de tratamento pelo outro lado. Então, eles pensam a doença como aquela coisa bem positivista do modelo biomédico, a doença causada por algum agente físico ou biológico. As relações humanas não têm muito valor, a relação profissional não tem muito valor; o médico tem que ser um cara que faz o diagnóstico, identifica. Então, cada vez mais está superando a ideia da relação médico-paciente, que era a grande ideia da medicina hipocrática, que era o médico enquanto certa arte de curar, de relacionar-se. Por isso, hoje, entra-se no consultório, o cara não pergunta nem o nome. E já vai fazendo pedido de exame. Isso é tudo o modelo, o que pensa a doença, não o sujeito que está doente. O SUS certamente está longe do ideal, mas está iniciando uma mudança do modelo no Brasil. Grande mercado de trabalho no Brasil hoje para os profissionais de saúde é o SUS. Já foi um pouco o setor privado. Hoje, os consultórios particulares estão em decréscimo. As pessoas não pagam mais um psicanalista, por exemplo, um médico profissional. Elas vão ao seguro-saúde, quer relação pior, que é intermediada por uma empresa que verifica se o médico pode ou não fazer aquele pedido de exame, quantos pode ou não atender, tudo ela controla. Por outro lado, a relação técnica é com a doença, não com o sujeito. Se a gente não conseguir entrar na universidade para mudar esse processo, a gente vai ficar sempre desconstruindo a forma com que as pessoas têm para, aí sim, mostrar o que é a reforma psiquiátrica, tanto no aspecto conceitual quanto no aspecto da prática política assistencial, que é a prática de uma ética muito mais com o sujeito do que com prática privada do cliente e tudo mais. É ponto que merece estratégia um pouco mais definida para que a gente não fique sempre reformando as pessoas.´


Capra, no livro “Ponto de Mutação”, fala que um dos problemas com os movimentos sociais das décadas de 70 e 80 é que operaram isoladamente. O movimento antimanicomial se desenvolveu de forma isolada, a exemplo de outros movimentos importantes no Brasil?

Amarante – Não li o Capra. Gosto muito dele, aliás, o filme “Ponto de Mutação”, muitas pessoas não sabem que existe. Seu irmão, Bernt Capra, adaptou para o cinema e ele fez uma supervisão. Mas concordo. Vi algo parecido dito pelo Boaventura de Sousa Santos. Ele também fala desse afastamento dos movimentos sociais. Estamos, no momento, retomando a idéia do movimento sanitário. O movimento sanitário já teve amplitude maior, menos restrito a apenas os sanitaristas. Chegou a ser tão forte que era chamado de Partido Sanitário, na década de 70, e conseguimos, afinal de contas, o SUS. Conseguimos colocar na Constituição de 1988 os princípios do SUS, foi obra do movimento sanitário. Foi a única emenda que não foi apresentada por deputados, foi emenda popular. Rodamos o País pedindo assinatura. Conseguiu-se convencer os parlamentares, outros atores sociais que também atuavam no convencimento para que o SUS fosse aprovado. Agora, estamos em processo refundação do Cebes, Centro Brasileiro de Estudo de Saúde. O Cebes foi a entidade pioneira do movimento sanitário, criado por Davi Capistrano da Costa Filho, cujo pai foi fundador do Partido Comunista Brasileiro. Foi preso na ditadura militar e desaparecido. Foi uma das poucas pessoas de quem nunca mais se teve notícia. O Davi o criou (Cebes), junto com outros sanitaristas, depois somaram Sérgio Arouca e muitos outros sanitaristas famosos hoje. Eu tive a honra de entrar nesses primeiros momentos, junto com o atual ministro da Saúde, José Gomes Temporão, meu amigo da época. Depois, ele foi presidente do Cebes e eu fui vice dele. Depois eu virei presidente do Cebes e o Temporão foi da minha diretoria também. Então, é uma entidade que tem uma tradição dos sanitaristas, mas que também perdeu aquela força de movimento social, depois se institucionalizou, perdeu esse vigor de movimento reflexivo, crítico, de mobilização social. O ministro é ex-participante desse movimento, pode-se dizer que é participante. Mas estamos tentando retomar o caráter de movimento social, uma refundação, retomando reuniões mensais de conjuntura, estimulando em todos os Estados núcleos do Cebes, como tínhamos anteriormente, voltando a nos aproximar de outros movimentos sociais, culturais, grupos que lidam com populações de rua, sem-terra. Juntando essas pessoas que têm visão crítica em relação ao Estado e à sociedade e têm atuação política transformadora, voltando a aproximá-las em torno da questão da saúde. Então, os atores sociais que estão na militância, no Fórum Social Mundial e tudo o mais, esses atores estão entendendo o que é o SUS? Conseguimos passar realmente? Por que o sindicato dos trabalhadores está reivindicando planos de saúde? Não deviam estar reivindicando que o SUS fosse melhor? Por que os vários movimentos sociais, em vez de estar lutando pelo SUS, se acham mais seguros tendo plano de saúde? A gente não está conseguindo convencer essas pessoas. Por quê? Os planos de saúde hoje estão mais ou menos igual ao SUS.


 

Para o senhor, a reforma psiquiátrica deve encampar outros saberes além da psiquiatria. Como pode ser possível abordagem interdisciplinar horizontalizada na ação com o portador do sofrimento psíquico num mundo capitalista?

Amarante – Quando falo das várias dimensões é porque, de fato, o problema não é só de um modelo mais adequado ou mais moderno. Há uma fundamentação da ética, essa relação com o sujeito, essa relação com o sofrimento humano, com a sociedade. De fato, como eu falava da formação, o modelo tanto biomédico quanto o liberal capitalista ensina as pessoas a lidarem com a doença, porque saúde não dá dinheiro, a doença dá. Então, o nosso trabalho é também da concepção ética, da saúde do coletivo, da relação de solidariedade, de reciprocidade do sofrimento humano. Por isso, a reforma não pode estar restrita a repensar psicopatologia, psiquiatria, psicologia etc. A gente tem que introduzir outras dimensões do estudo humano. É interessante que a maior dos psiquiatras não tem formação em filosofia, em arte, cultura. Vi um psiquiatra falar, respondendo a algo que escrevi, não dei muita bola no momento, achava que era tão limitado o que ele dizia... Que Machado de Assis escreveu “O Alienista” porque tinha raiva de uma pessoa que morava em Itaguaí. A pessoa que não consegue perceber a imensidão de reflexões, de críticas que há em “O Alienista”, aos costumes, à sociedade, ao papel da ciência, aos limites de identificar o que é normal, como é que a gente convive. Quando ele interna todo mundo, que vê que a cidade morreu, ficou sem graça sem os exóticos etc. Depois achei uma crônica do Machado, publicada no jornal “A Semana”, o mesmo que publicou “O Alienista”. Ele já tinha publicado o conto de Itaguaí. No Hospício de Pedro II, na Praia Vermelha, teve uma época em que fugiu um louco famoso, chamado Custódio Cerrão. Hoje ele teria o diagnóstico de personalidade psicopática. Era um cara que tinha atitude muito controversa, brigava com todo mundo. Ele abriu as portas do hospício e com ele fugiu um monte de loucos. Saiu no jornal estampado assim: “Doudos fogem do hospício”. O Machado tinha essa coisa como o Scliar (Moacyr), que faz hoje na “Folha de S. Paulo”: lê as manchetes da semana, escolhe uma e cria em cima dela. Então, ele escreveu assim: estava assustado, sabendo que os “doudos” tinham fugido do hospício. E por que estava assustado? Porque antes, tudo que via de exótico em alguém na rua, comportamento esquisito, ele falava que era da pessoa, cada um tem seu jeito e tal. Aquele cara ali, esquisito, fazendo tal coisa, aquela mulher. Porque se fosse doido estava no hospício. Por que isso? Porque os psiquiatras cuidadosamente separavam os loucos dos normais. Agora, com a fuga dos doidos, ele voltou a ter problema, porque na sabia quem era e quem não era doido na cidade. É a mesma questão do “Alienista”. Então, ele começa a falar: fulano, eu não sei se ele estava no hospício ou não, aquele ali, aquele outro. No fim ele fala, “eu mesmo não sei se sou um desses fugitivos, porque para estar me colocando essa questão, eu devo ser um desses fugitivos.” Acho que a reforma psiquiatra não é um projeto de reformulação administrativa do modelo psiquiátrico, mas saindo de um modelo violento de segregação para um modelo humano, aberto, democratizado. Isso é conseqüência de ruptura na relação de objetivação dos sujeitos, de mercantilização do sofrimento humano para uma relação de subjetividade e de reciprocidade com as pessoas. Esse deslocamento que acho que é difícil fazer. E realmente você luta contra muitos interesses instituídos de hospitais privados, da indústria farmacêutica, de todo um mercado que se constituiu aí de formação, de livro, de publicações. Estou lembrado especificamente da Associação Médica Norte-Americana. Um dos maiores lucros da associação é a venda dos próprios manuais de classificação de transtornos mentais.

Machado de Assis
O senhor já foi casado com a cantora e compositora Fátima Guedes. Já tocou com grandes nomes da MPB. É multiinstrumentista. Há espaço para a música na profissão do professor?


Amarante – Com João Bosco, a gente fez uns saraus. Tocar mesmo, toquei com Fátima Guedes, toquei com Jandira Fegali, que é médica e música; com Perna Feud, que foi maestro do Caetano; com o Tunay e mais algumas pessoas. Sempre fiquei muito mais dividido do que pensava entre a música e arte e a militância. Há lugar sempre. Estou agora procurando recuperar um pouco o meu lado da arte. Tanto que quando estou promovendo eventos sobre cultura também estou mexendo com esse lado meu. Também toco de vez em quando. Na formação clássica, do militante, do professor, do artista a gente tinha que se dividir. Ou uma coisa ou outra. Acho que caí nesse equívoco. Talvez pelo momento histórico eu tivesse que me dar mais à militância. Rodei esse país algumas dezenas de vezes e abandonei esse lado da arte que eu deveria estar praticando mais. Acho que a gente deve romper com essa visão tradicional do doutor, do professor. É um pouco a ideia do “Nome da Rosa”, Jesus Cristo não pode rir. “O que é isso, companheiro”, do Gabeira também: você é militante, não pode amar, curtir música, dançar. Acho dentro do processo da reforma psiquiátrica a gente mexe também com essas coisas. A gente vai vendo que terapeuta também é um sujeito, então ele gosta de música, também quer cantar. Se a gente conseguir unir esses vários ângulos, essas várias facetas no nosso trabalho, a gente consegue trabalhar melhor e viver melhor.


Qual o valor da literatura na sua profissão de psiquiatra? E o que o senhor tem a dizer sobre o “Dom Quixote”? No mundo ainda há espaço para a fantasia e para a ilusão?

Amarante – Deus me livre se não houvesse. “Dom Quixote” é fundamental, é fundamental que existam os “Dom quixotes” e os “Sancho Panças”, o que segue o louco. Se não existisse, a gente estava entregue, dominado. A gente canta que está tudo dominado, mas não. Estamos quase, mas não estamos. A gente está resistindo, com a literatura, com os sonhos, com a rádio pirata, com os discos pirata, com a pirataria da mídia. A gente resiste de várias formas. Sempre oriento meus alunos a reler Foucault. A gente chama de último Foucault e última fase de Foucault. Ele é muito acusado de ter falado que o poder era tudo, então tinha de fazer. Era tudo, tudo é o poder. A partir do “Vigiar e Punir”, ele mostra como as instituições disciplinárias formaram, adestraram o humano subjetivo, o sujeito, que vem disso, alguém que é sujeitado à instituição, aos princípios, às regras. Numa linguagem, ou numa tradição, pelo menos, rigorosamente foucaultiana, a gente poderia dizer que é contra a transdisciplinaridade. Por quê? Porque a disciplina nasce da conjunção híbrida do exercício de adestramento sobre o sujeito, sobre os corpos que sujeitam os homens das instituições e nascem de um saber que fundamenta esse exercício de poder. Por isso que a gente fala da disciplina militar, da disciplina da escola, da disciplina da penitenciária, da disciplina da escola normal, da disciplina do reformatório, da disciplina da casa de correção. Da disciplina enquanto adestramento moral e físico do corpo e da disciplina da matemática, da psicologia da disciplina, que é um saber também adestrado que fundamenta as práticas de adestramento dos sujeitos. Então, teríamos de questionar a disciplina e as transdisciplinas. Poderíamos começar, como Foucault sugeriu, a falar em saberes. E aí para ele a pintura, a arte de Van Gogh, a poesia de Arthur e o teatro, o livro de Erasmo de Rotterdam, o “Dom Quixote de la Mancha”, tudo isso é saber para ele. Essa foi a grande revolução do Foucault na área das ciências, foi que ele começou a fazer uma história da psicologia e da psiquiatria, e acabou fazendo história da loucura, porque não caiu no engodo de ver a história da psiquiatra a partir da própria. Conseguiu fazer uma história da loucura em que a psiquiatria é um dos saberes. Mostra que há um saber sobre a loucura na arte: na poesia, na literatura, no senso comum, no direito, em vários outros campos. Então, ele vai chamar isso de saber, sem fazer distinção se é ciência ou não ciência. São saberes que constituem o humano, o real, a nossa relação com o real. Por isso, fez uma arqueologia dos saberes. Então, numa terminologia foucaultiana não podemos concordar com a transdisciplinaridade, mesmo que saibamos o que está querendo dizer. Estou falando de transversalidade dos saberes. Como é que posso navegar por vários saberes e falar da loucura, pensar sobre a loucura mais numa idéia de transversalidade, mas não como idéia de disciplina. Relacionando à literatura um pouco mais, acho fundamental... Hoje, é o sonho  não só do psiquiatra, como do cientista. O (Ilya Prigogine ), Prêmio Nobel de Química em 1977 e (Isabelle Stengers  ) escreveram o livro “A nova aliança”. Aliás, o (Prigogine) é um dos caras mais fantásticos que eu conheço. A Universidade do Pará com a do Rio Grande do Norte publicou um livro dele que chama “Razão e Emoção”. Ele fala o tempo todo que não há cientista com capacidade de transformação do saber e da visão que a sociedade tem de mundo se não conseguir entender o que diz a literatura sobre o humano, o teatro. Fala inclusive que para entender certos movimentos que ele vê na bioquímica em microscópio, ele precisou do teatro, para entender certas articulações do corpo... Então, a literatura não é só entretenimento, é constituinte da nossa forma de entendimento da vida, dos sujeitos e do humano.

Dom Quixote - Gustave Doré

Até que ponto a arte nos salva de nós mesmos e do espaço em que vivemos?


Amarante – É fundamental que a gente tenha a visão de que a arte é constituinte. Há a visão de que arte é aquele lazer que você faz no domingo, não que ela ajuda na construção permanente de como eu lido com a vida. Essa é a dimensão que a gente deveria ter, e não fazer esse deslocamento, de que a ciência está num lugar, o da profissão, a arte está em outro local, meio ligado a lazer. A arte é constituinte de toda nossa compreensão de mundo. Há muitos autores que dizem que arte inova na possibilidade de criar coisas. O Atlan (Henri) é prêmio internacional também, fisicoquímico importante. Está no último livro dele, “Útero Artificial” ( Rio de Janeiro:Editora Fiocruz; 2006. 128 pp.) Ele fala da possibilidade muito próxima que a humanidade está de gerir seres humanos totalmente artificiais. Já tivemos bebê proveta. Mas a ovulação tem que ser no corpo da mulher. Ele diz que falta muito pouco para se chegar ao útero artificial. Já há as condições previstas. Falta chegar à técnica. Mas como ele faz análise dos mitos das ciências e da possibilidade de transformar em prática, está muito próximo. E nisso ele faz uma visão de futuro absolutamente preocupante. Quando se começar a controlar a gênese, pode-se transformá-la em questão de Estado. Então, para se ter filho tem que ter autorização do Estado. Começa a falar da questão de controle raça, de evitação de doenças e de uma série de questões sociais e políticas que vão acontecer. E da própria sexualidade. Será que a sexualidade é para sempre na humanidade? No momento em que se dispensá-la para haver procriação, ela vai ter papel completamente diferente. Você está lendo isso, parece que está lendo um livro de ficção científica. É um cientista. Aí, ele fala, no começo: “Não se assuste.” O trabalho de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, foi inspirado num cientista a que ele assistiu, leu e cita. Foi Haldane (John B.) que fez conferência famosa em 1922, falando dessas mudanças no mundo, do big brother, da possibilidade de controle social, das populações, das castas e tudo da ciência. Então, a aproximação entre literatura e ciência tem muito mais do que mera visão de lazer. “O Alienista”, por exemplo, é uma crítica à psiquiatria que antecipou em 100 anos a reforma psiquiátrica. Tudo o que a gente fala está lá: de perto ninguém é normal, o poder institucional da psiquiatria. Pergunta de Foucault: como uma ciência com tão pouco teor científico, comprobalidade e verificabilidade tem tanto poder? Poder de encarcerar pessoas para o resto da vida etc. Tudo isso está em “O Alienista”. 

O Alienista - Machado de Assis ILUSTRAÇÕES DE PORTINARI, 1948

Conto de James Frederico Rocha Coelho



A Revista Banzeiro apresenta o conto Luzeiro, de James Frederico Rocha Coelho. Natural de Carolina – MA, James é formado em Letras e Direito. Em 1989, publicou o romance Quarto 16. O conto Luzeiro faz parte do livro Histórias Civilizadas. Goiânia: América, 2015.


PRISM ATEMPORAL FUTUR ABSOLU STEPHAN BREUER

LUZEIRO



Passados alguns dias das mortes e Poliana e Francisca, e estando eu revirando um copo de gim no terraço da casa de meus pais, purgando minhas dores enquanto a madrugada atravessava o casario do outro lado da rua, resolvi viajar no dia seguinte para qualquer lugar e ali esperar de alguma forma que o tempo aliviasse a grande ausência das duas, minha mulher e minha filha.
No dia seguinte, conversando com meu pai, ele recomendou o Retiro, fazenda há algum tempo abandonada por força de uma disputa judicial. Não posso explicar a sugestão do meu pai, justo aquele lugar, mas talvez se devesse à estreita relação da família com aquele pedaço de terra. Quando crianças, passávamos ali nossas férias de fim de ano, que iam de dezembro a fevereiro. Ali a família viu nascer e morrer muita gente, gozou e amargou os acontecimentos velhos e os acontecimentos novos e grande parte do que construiu nosso passado e deu cheiro próprio ao nosso presente. No mesmo dia minha mãe deu sua opinião. Não concordava com a viagem, com o lugar, ou com qualquer iniciativa que me separasse dela naquele momento. Alegou o abandono do lugar, a falta de alguém que ajeitasse minha comida, minha roupa, e mais o perigo de ficar sozinho num lugar sob litígio. Mas seus esforços, e ela não soube disso, só reforçaram em mim o desejo de me isolar, de me enfurnar naquele lugar – solidão certa.
Parti no dia seguinte. Segui de automóvel até o sopé da serra, onde aluguei um cavalo. A trilha mudara drasticamente e estava irreconhecível, considerando minha memória de infância: os antigos capões de mato ralearam e as erosões carcomeram as encostas. Os brejos, antes densos e úmidos, agora eram escaras frágeis e devastadas.
O animal trotava rente à extensão da cerca, com uma preguiça solene, parecia uma criatura certa de tudo, sequer cabeceava quando eu em desaviso puxava a rédea de sopetão – primeira grande lição, pois eu estava vindo do mundo do ruído, do grito e dos gestos cuidadosamente pensados e premeditados. 
Quando a tarde caía, o rubro violeta do sol poente desceu devagarinho entre as touceiras verdes do pasto abandonado, pasto de colonião, e aquela cor bonita e aquele momento bonito amansavam em mim a grande dor da perda, a angústia desenfreada de quem não acha lugar no mundo, nem quando o sono vem. Os piados nos capões de mato eram as palavras da jaó, da fogo-pagou, das sangues-de-boi, e pra cá, no descampado, o gargolejo dos caborés, girando suas cabeças em trezentos e sessenta graus,  como se mostrando cientes do desenrolar completo do mundo, em todas as direções, desde o buraco miúdo no cupim, abaixo, até o voo alto do gavião, acima, ou no passo rasteiro da cobra sob o capim, vizinha.
Quando avistei a sede da propriedade, um pouco escondida por detrás dos mangueirais, meus mangueirais, a penumbra já despencava no tempo e no espaço. Um bando de tetéus anunciou ao lugar ermo a chegada de visita. Apeei e desencilhei a montaria, tocando-a em direção ao que no passado fora uma bela pastagem, para além das cercas destruídas. Não entrei de vez na casa velha, não tive coragem, antes andei pelo terreiro em círculo, em ziguezague, de todos os modos, de uma ponta a outra, qual um peru embriagado, olhos nas mangueiras, num antigo limoeiro de que eu lembrava nitidamente, nas jaqueiras, e mais adiante na extremidade tomada pelo mato do antigo campo de pouso. A barriga reclamou, lembrei que não almoçara. Catei gravetos e pedaços de cerca, depois tornei a olhar a casa, indeciso, mas empurrei a porta de talos de buriti e ela rangeu, mas abriu sem dificuldades. Lá dentro as paredes esfumaçadas, veios negros aqui e acolá, e ao canto, embaixo do paiol, as varas de matula. Recostei-me no esteio do centro do salão, onde fiquei algum tempo quieto, o corpo lasso, revendo imagens, sentindo os cheiros e até ouvindo uma ou outra voz, o rádio na boca da noite, Voz da América, o anúncio de temporal lá fora e até o ranger da porta sustentada pelas cordas de embira, açoitada pela saraivada de chuva forte que chegava.
Reabasteci uma lamparina antiga que estava pendurada numa escápula. O pavio mesmo ressecado ainda pegou fogo e o salão recebeu a luz com timidez, pois lá de fora ainda vinha um resto de sol. Indiferentes à minha presença, tranquilos, os ratos subiam e desciam pelo tapume lateral do paiol, como que desavisados do fim das colheitas e do abandono da fazenda. Ajeitei os mantimentos na prateleira empoeirada e fui para a parte de trás da casa, acender o fogo no fogão antigo de barro e de trempe. Novamente rebusquei fisionomias, casos, momentos e nomes. Revi calmamente a tia enrolando bolo frito, que a gente chamava assim mesmo antes de fritar, os filhotinhos de sapo pulando debaixo das duas fileiras frontais de goteiras do vão aberto que separava a cozinha do resto da casa – não havia, mas eu ouvia o vento forte nas árvores lá fora anunciando mais chuva, decerto porque foram momentos que nunca esqueci, quando no fundo da rede sentia toda a proteção do mundo diante daquele temporal rugindo lá fora. Enquanto fritava a carne e preparava o arroz, coloquei no fogo o feijão para cozinhar, que me serviria do dia seguinte em diante. Esticado na rede, esperei a carne fritar, o arroz cozinhar e o feijão amolecer, como querendo segurar o tempo, rememorando. Não demorou e o vento de chuva chegou de verdade, e muitas dores, de todos os naipes, agora saracoteavam ao redor do lume.
Novo ainda, casei com mulher desta terra. Casei por amor e não posso assegurar se era correspondido, embora as circunstâncias e as regras tenham contribuído para acreditar que sim.
Não sei se procede remexer nessa história que andou por conta tão somente dessas antigas questões: amor e morte. Mas sendo dessas questões e apenas dessas questões que se fez o pedaço  recente de minha vida, resolvi desafiar a mesmice, mesmo sabendo que Deus talvez não quisesse inovar, tão cedo, quanto ao amor e quanto à morte.
Pois então, casado e com muito amor para dar, os primeiros tempos com Poliana pareceram, a mim, sem passado e sem futuro. O tempo presente, à época, satisfazia-me por si só, bastava que passasse da maneira como os fatos e as eventualidades passavam – tudo parecia sob controle.
Acontecia também que a história daquele amor, com relação a mim, e somente eu sabia disso, era curiosa – um amor pequeno no início, quase insípido, que aos poucos foi crescendo, pois fui aprendendo a medir, pelos atos e pelas palavras, os motivos e as intenções reais de Poliana. A motivação dos atos e das palavras, essa era a métrica que eu usava para prever e saber de minha mulher, sendo que os motivos dela num determinado momento podiam ocasionar uma palavra exata, verdadeira, conforme o acontecimento ou o sentimento, mas podiam ocasionar também uma palavra exagerada, que inflava o mundo real, uma forma de defesa de Poliana, e também podiam ocasionar uma palavra mal intencionada, mentirosa, que velava um passado, um desejo ou uma intenção e, por último, podiam ser a razão de uma palavra humilde, aquém da verdade real, uma verdade que teria grande chance de beneficiá-la, e isso dizia vez em quando da eventual grandeza de Poliana. Essa forma de conhecer reforçou meu amor por ela e meu pequeno amor inicial reforçou essa forma de conhecer, de maneira que eu a amava cada vez mais, mesmo sabendo que quase sempre seus atos e suas palavras diziam muito pouco da verdade real e vinham de uma motivação velada, escondida. Esse amor esquisito, ao fim, acontecia e era verdadeiro a seu modo, e me trazia alegria. Eu vivia tranquilo naquele meio dúbio de verdades e mentiras, e ela não sabia que eu sabia que para continuarmos juntos ela adequara ou calara muitas coisas que eram dela, que eram de sua natureza mais profunda, de sua pulsão mais íntima.
Francisca, a filha, não demorou a nascer. Naquele momento tornei a trabalhar com gosto e encarnei o espírito lato do bom pai, do bom marido. Afastei-me de alguns amigos, como é natural nessas situações, construí casa, progredi com o pé no chão e engendrei um respeitável patrimônio. Quando minha filha completou três anos planejei a festa dos quinze. Eu me alargava no tempo e andava à sua frente, como se tivesse adquirido aquela boa vida à vista, inteira, no armazém da esquina, que vendia ao gosto do freguês. Mas logo o credor desconhecido, que eu não fazia questão de saber de quem se tratava, exigiu-a de volta e em troca me deu outra, torta e dolorida.
Poliana e Francisca perderam as vidas num acidente de automóvel semana passada. Iam à capital submeter-se a exames de rotina. Isso podia acontecer, daquele jeito, naquele momento ? Sei lá ! Agora, inerte nesta rede, olho para as borbulhas na panela destampada e questiono a mesmice da morte, há séculos e séculos manietando essa nossa triste e eterna condição, igual e feita só de dor – como a dor do paralítico, que tem gosto de para sempre. Estou ainda submetido a ela por inteiro e espero a hora marcada, que nem sei de que hora se trata nem se é marcada. Posso continuar conformado ou posso me rebelar. Mas que tipo de rebelião seria essa, quando, de que forma ? Aí parece estar o nó da questão, pois é quase certo que não tenho meios para me rebelar. Caberia no máximo a birra de antecipar a hora, isso eu posso fazer, só depende de mim, mas mesmo isso, desconfio, poderia ser o desígnio superior que estivesse me convencendo a antecipar a hora da morte quando na verdade estivesse me convencendo a suicidar-me porque aquela na verdade seria a hora marcada. Retardar não posso, pois não posso afirmar: quero morrer daqui a dois anos, logo após a copa do mundo de futebol. Não sei ao certo de que serviriam esses pensamentos, pois não tenho o controle dessas questões, mas atinei, dali a uma hora, depois de um sono conturbado, que podia reencontrá-las logo, ainda em vida.
Se os mortos podem nos guiar pela vida, que assim fosse – em sonhos, em palavras faladas, escritas, em sinais, de qualquer jeito. Reencontrar aquelas duas mulheres, esse o grande desejo de minha alma, de meu espírito.
O feijão cheirava bem, satisfaço o estômago, mastigo com lentidão, sinto um prazer longínquo.  Poliana e Francisca não desgrudam do meu espírito, parecem duas retornadas que permanecem encostadas ao meu corpo.  Posso sentir o cabelo de minha filha entre as mãos, vejo minha mulher deitada na cama, nua, cabelos molhados, descansando do banho.
O vento invade o postigo do paiol, sacudindo a chama da lamparina. A dança da chama e a dança das sombras transportam-me cabeça, tronco e membros. Sinto a dor da saudade em sua plenitude. Cubro-me com as varandas da rede e daí a pouco flutuo entre o sono e a vigília. Agora são formas diversas, deformadas, algumas enrugadas mesmo, ocupando meu cérebro, tenho os olhos fechados. Alternando essas formas com as figuras de minha mulher e de minha filha, às vezes a panela com feijão, sem sequência, sensações que não tinham limites entre umas e outras, mixórdia. O vento e a chuva esfriam o lugar e pelas frestas das paredes de pau a pique entram feixes de luz quando pipocam lá fora os raios. Entram também o frio e o som rasgado do mangueiral sacudindo, envergando-se sob os efeitos do mau tempo.
Acordo cedo, pelo postigo do paiol se mostra um pedacinho de céu, está rubro e ainda misturado com um resto de noite e intempérie. Ouço com clareza os sons da fazenda, sinto o cheiro do lugar, o cheiro indefectível da terra molhada, que é um cheiro que há de estar em todo mundo. As dores retornam ao meu peito. Salto da rede e vou para o terreiro. Choro, mas é um choro estúpido, que não alivia. A convulsão descontrolada e os soluços me dão raiva. Me mexo, saio, atravesso a porteira e percorro descalço o campo de pouso. O capim molhado incomoda, mas continuo andando. O estômago reclama, chega a roncar, mas não vou comer, não sentiria prazer algum em comer, não me acrescentaria nada. Jejuar, isso sim, talvez fosse a novidade e talvez fosse mais apropriado naquele momento – conhecer de fato os limites do meu corpo. Poderia ser que o jejum aliviasse a saudade monstruosa que me afligia. Continuei andando e quando o sol já ia alto cheguei ao ribeirão onde antigamente banhávamos e pescávamos. Encostei-me a uma sambaíba, aproveitando sua sombra, e com um graveto, de cócoras, desenhei na argila o nome de Poliana, logo adiante o de Francisca, mais adiante o de minha mulher novamente. Letras de todos os tipos, garrafais, redondas, deitadas, itálicas e de forma, mas a precariedade daqueles sinais na argila me incomodavam, com  a primeira chuva sumiriam. Puxei o canivete da cintura e inscrevi os nomes no tronco da árvore. Daquela forma sim, sobreviveriam aos ataques renitentes das chuvas, do sol, dos ventos e das cheias do ribeirão. Mas um dia, mesmo que demorasse, sumiriam também. Com um muxoxo de ódio cuspi sobre as inscrições. A certeza das finitudes me indignava. Se a morte fosse gente eu usaria a faca, a bala, ou a transformaria numa massa informe, macilenta e morta, depois de inocular ali um veneno implacável.
O sol quente não evitou uma tremedeira inesperada, um suor frio e os dentes batendo como num ataque de maleita brava. Levantei e caminhei apressado pela trilha antiga de areia branca ladeada pelo capim alto, abandonado. Mas adiante, na curva que dava para o lado esquerdo do curral, as modulações sonoras, belíssimas, do chico-preto. Mais nostalgia, mais dor, mais desespero, tudo brotando e os nomes de Poliana de Francisca flutuando no dia claro. Talvez a nostalgia fosse o fato de se estar sentindo dor na alma do presente e na alma do passado, ou talvez fosse quando retornamos e nos recusamos a prosseguir.
Escancarei a porta e voltei para a rede. O suor e a tremedeira foram diminuindo. Muito distante, quase na linha do horizonte, o Moreno, outeiro descampado de árvores retorcidas. Naquele monte não havia mais nem sinal das palmeiras de buriti, onde catávamos pedras muito bonitas, depois transformadas em bichos, currais e jogos – algumas eu guardava para mim com cuidado, de tão bonitas que eram. O dia foi esquentando, minhas costas esquentavam no contato com a rede. Tornei a levantar, fui para debaixo das fruteiras chupar manga. Na parte dos fundos da cozinha o jirau despencava, as urtigas cobrindo e o mato escondendo as varas roliças de angico. Inspecionei o fogão a lenha que bem se conservara depois de anos de abandono. Uma cobra ocre passeava sonolenta, beirando a cerca, nos limites de um tirirical. Depois desses poucos minutos esquecido das duas mulheres, outra imagem retornou, revolvendo o remanso precário que se dera como um lampejo, iluminado e rápido. Na cumeeira da cozinha, pendurada pelos pés, balançava uma boneca de plástico desbotado, qual pele descorada de gente morta. O vestido que a cobria estava roto e tinha os globos oculares dependurados das órbitas vazias. Pontadas no peito encurtaram a respiração, apoiei o corpo na mureta de taipa sem desviar os olhos da boneca, cuja pele agora se movia e vertia sangue pisado, ela ainda respirava, com muita dificuldade mas respirava, o corpo trucidado exalando cheiro de éter, que me invadiu, encheu meus pulmões, atingiu a cabeça e nauseou o estômago. A massa de manga madura subiu esôfago acima, corri para o pátio, mão direita na boca, vomitei tudo. Com a cabeça recostada à mangueira senti as lágrimas de ânsia de vômito escorrerem no rosto e as fibras da fruta obstruírem as narinas. O estômago enroscava-se sob a força dos seguidos espasmos. A custo fui à cacimba na descida para o brejo mais próximo e icei o balde enferrujado com água. Ainda ofegante, lavei o rosto, enxaguei a boca, o gosto forte de ferro, fruta e bílis na boca. Cansado, as pernas trêmulas, voltei para a rede. Dormi.
Meu sono não fora muito diferente do estado de vigília. As imagens dos corpos de Poliana e Francisca jogadas no fundo da camioneta volveram, como volve um pelotão disciplinado. Havia momentos em que o sonho condescendia e permitia que elas desfilassem vivas à minha frente, em belos vestidos, segurando dois sorvetes apetitosos e coloridos. Depois alternava, com cruel impiedade, impondo outra vez as reminiscências do acidente, uma a uma. Tive naquele sonho, pela primeira vez, a consciência de que dormia e de que sonhava, o que aumentava o desespero – a vida de carne e osso dentro do sonho, que nem por isso deixava de ser vida de carne e osso, só que agora posta dos dois lados, o que confundia e atribulava minhas percepções. Num certo momento do sonho eu estava na praça, as duas mulheres circulando de bicicletas, ali. Por minha particular convicção estavam vivas, mas eram, não sei explicar, tênues e fortes ao mesmo tempo, como um fio numa teia de aranha. Um grito chamando nossos nomes ecoou do outro lado daquela praça incompleta, pois eu não podia enxergar exatamente suas dimensões e seus limites. Girei a cabeça mas não via ninguém, só ouvia. Quis levantar do banco em que estava sentado, passar entre Poliana e Francisca com a intenção de alcançar o dono daquela voz, mas não conseguia – continuei grudado ao assento de cimento cru. A voz soou outra vez: Ô de casa ! Em vão realizei um derradeiro esforço para levantar daquele banco. Quando pulei da rede, sobressaltado com o sonho, a voz soou pela quarta vez. Além da porta entreaberta, vi uma anca de cavalo castanho e a barra de um gibão.
Um homem moreno, velho, barba rala e pele gretada, provavelmente mais pela ação do sol que pela ação do tempo, me estendeu a mão. Era magro e me igualava na altura. Possuía essa magreza rija que é a marca da comida escassa e da labuta interminável na roça. Cumprimentei-o e convidei para entrar, ele não aceitou, preferia ficar lá fora, estava de passagem e no terreiro estava claro, agradável, com o vento rasteiro da temporada de chuvas e o sol casual mais quente do que o normal. Tive a impressão de que o conhecia de longa data, talvez por isso esquecemos as apresentações. Sentamos no mourão que separava o terreiro do pátio da fazenda e conversamos generalidades: as chuvas imensas e diluvianas deste inverno, a estrada do governo que não chegava, etc. Ele estava passando, ia para as bandas no rumo da cabeceira da pista de pouso, em direção às terras de Zé Indanha, depois, ele falava, seguiria sem pressa pelo Vão da Cotia, até o Montana. Na volta traria boiada para apascentar do outro lado do ribeirão principal que limitava ao sul a nossa fazenda, até quando o estio chegasse, em maio. Conversa avançada ele pronunciou meu nome completo, cadenciando a voz, como num ditado da escola. Interrompi o que estava falando e perplexo perguntei com os olhos quem era ele. Apresentou-se. Não foi subserviente quando me chamou de patrão e perguntou se eu recordava dele, do seu nome, eu o conhecera trinta anos atrás, segundo ele. Aos poucos, olhando fixamente seu semblante, lembrei vagamente de um homem com boina de camurça verde, dessas de guerrilheiros latinos; recordei uma família que chegara à fazenda sem nada, a não ser com um bando de cachorros latindo, alguns perfurados por espinhos de quandú. Aos poucos minha memória foi recuperando o acontecimento. Findo o esforço, depois de alguns instantes, a ocasião e o nome me vieram num estalo. Seu Manoel ! disse. Apertei sua mão com alegria. Na verdade era Seu Manoel Redondo, mas o Redondo ela não admitia, era um apelido que deixava ele transtornado e foi disso que lembrei em primeira mão. Depois da efusão e de mais um abraço, seguiram-se uma corrente de outras lembranças e um rosário de comentários. Depois se seguiu outro estalo, e eu perguntei: Não foi o senhor que morreu na travessia do João Aires, na cheia de oitenta ? A resposta demorou, disse que morrera e ao mesmo tempo não morrera e que aquela era uma história comprida, ia deixar para me contar noutra ocasião. Não dei importância ao caso, um mal-entendido possivelmente. Convidei-o para passarmos à cozinha. Mais tarde tiramos lenha e colocamos a comida no fogo - a fumaça espalhou-se pelos quatro cantos da casa, me embriagando e enganando minha dor por um momento. Aquela fumaça, o cheiro daquela fumaça era os espectros inevitáveis de um e de outro conhecido, de um e de outro parente, de seres humanos que iam reaparecendo aos poucos, agarrando-se às paredes, às árvores, ao jogo de luzes, pois eles precisavam disso ou de um som, da palha trançada, do caibro central, da banca de pote, e de muitas outras coisas mais para emergirem diante de mim.
Quedo num canto, ouvindo Manoel Redondo contar casos da fazenda, esticamos, atravessamos o lusco fusco conversando e entramos pela noite escura adentro. Pelo adiantado da hora ofereci o pernoite, ele esticou-se no chão de terra batida do salão, cabeça recostada na forquilha do pote. Perguntei se trouxera rede, não trouxera. Em seguida coloquei os pratos brancos esmaltados na mesa, trouxe a carne frita, o arroz e a farinha para a mesa, mas ele, surpreendendo, disse que não queria comer, estava sem fome. Não insisti , parecia-me inoportuno. Enquanto eu comia ele levantou-se e saiu para o lado de fora, para o terreiro escuro. Farto, devolvi as panelas à trempe e acendi um cigarro. Olhei pela porta aberta e adiante e acima, muito distante, a lua semicoberta pelas nuvens de chuva, lançava milhares de cordões de tímida claridade sobre os campos e a mata do cerrado. Sentei na rede e balancei. Enquanto baforava, lembrava as náuseas e o horror dos acontecimentos recentes. A visita daquele homem me ajudara, aliviara o sofrimento e as tensões, talvez pelo rebuscamento dos casos de outros tempos. Certo é que conversa puxara conversa, e isso servira de traça de roer solidão. 
Pela porta aberta eu observava-o circulando lá fora, um vulto empertigado que luzia quando atravessava uma língua de luar derramada ao pé do mourão. Demorou dois ou três cigarros até que ele retornasse ao salão. Sentou-se a um canto, agora estava mudo. Procurei seus olhos mas eles também estavam mudos e naturalmente exigiam silêncio. Titubeei ao tentar falar uma palavra, mas o som saiu espremido, para dentro. Me aquietei, levantei os olhos para o teto de palha trançada e acendi outro cigarro. Depois ele saiu outra vez para o terreiro e agora circulava, cabeça ereta. A sua figura brilhava quando atravessava a língua de luz da lua ao pé do mourão.
Ajeitei o resto de carvão no canto, bati a trempe do lado de fora da meia parede e retornei à rede. O vento arreganhara a porta, e nuvens pesadas intumesciam o céu. O velho continuava a circular, resignado ou obstinado, não sei ao certo. Aquele movimento dele foi provocando em mim uma tonteira que ia e voltava, retornei à rede. Agora o vento arreganhara a porta completamente, foi quando ele deu para olhar para dentro, ao passar num certo ponto do seu trajeto circular. A distância e a pouca luz não me deixavam ver sua face claramente, mas senti, sem que ele tivesse falado uma palavra, que ele queria me dizer qualquer coisa. Fixei os olhos nele e depois de alguns minutos saltei da rede com o cigarro queimando meus dedos – aterrorizado, um grito preso na garganta. Não sabia se enlouquecia - confirmei na volta do trajeto circular o que acreditava ter visto na ida, quando ele atravessara aquela língua de luz da lua – o velho não tinha, não fazia sombra. Não sei se também ele sentira minha reação, pois ele desarmou os ombros, parecendo descansar por um instante. Houvera dito algumas palavras, a seu modo, que eu não ouvi. O pavor tomara meu estômago, minha espinha e o resto. Ele retornou e sentou a um canto do salão. Continuei na rede, as pernas tremiam, não tive nem forças para tirar os olhos de cima dele. O velho sacou o canivete da algibeira e passou-o de uma mão para a outra, alisando a lâmina com a ponta do dedo. Eu arregalei os olhos, senti náuseas, o estômago regurgitou o feijão, amargando a boca, provocando uma salivação descontrolada.
Ainda estava dominado por aquele medo superior, quando o velho desenhou no chão de terra batida com a ponta do canivete as primeiras letras de um nome. Tracejava com esmero e elegância numa caligrafia antiga. Primeiro a letra p, depois o o, e, por fim, completado, assoletrei com balbucios o nome de minha mulher. Aquilo foi como um soco de cem quilos no meu estômago. Estrebuchei na rede, o grito não saia, queria sair dali, correr, atravessar o terreiro, passar pelo pátio, chegar ao campo de pouso e o que viesse depois, mas não saía do lugar. Minha camisa encharcou e senti nos lábios o sal do suor que escorria pelo rosto.
Quando tudo parecia não acabar, o velho, devolvendo o canivete à algibeira, sorriu. Não compreendi o sorriso despropositado, que podia mesmo ser de sarcasmo, mas não era - ele me olhou nos olhos e o sorriso era um sorriso qualquer, descompromissado, mas sincero.
Aos poucos recuperei minhas forças, levantei e fui até a porta, com a mão apoiando-se à mureta de pau a pique. O vento na camisa molhada esfriava o corpo. Sem virar o rosto, sem encarar o velho de frente, perguntei por minha mulher e por minha filha. Não respondeu. Retornei à rede e em seguida repeti a pergunta, dessa vez com a voz alterada. Ele continuava impassível, me observando.
Depois, com os olhos nos meus ele falou de morte, o que ia ao encontro de minhas reflexões de dois dias antes. Envolveu-me com palavras que eu queria ouvir. Disse que a morte era igual há tanto tempo, para qualquer um, que talvez tivesse chegado a hora de se tornar um acontecimento improvável, senão impossível. A morte, essa obra de Deus, é cínica, é mentirosa, pois separa dois tempos de uma só obra, que por justiça deveriam estar agarrados um ao outro. Talvez fosse uma obra de arte que, por não ser inteiriça, perdesse a razão de ser. A morte permanece às custas de nossos limites e de nossa miséria, mas mesmo aí Deus foi grande o bastante para ser divinamente cínico e autoritário. Não sabe a maioria das gentes que Ele, em sua superior sabedoria, nos deu o poder de transgredi-la, opção pouco conhecida, e por isso pouco usufruída. O velho disse que eu não me conformasse, como queria minha mãe, que não desse a mão à palmatória, que não aceitasse o jugo dessa vassalagem odiosa.
Enquanto falou tudo isso o velho o fazia com uma indignação raivosa, e eu balançava a cabeça que sim, que tudo o que fora dito estava certo, e eu não era um homem afeito a palavras nem atentava para a vastidão escondida além e sob elas – para ser sincero, até me aborreciam vez em quando. Mas também sabia da mágica delas, e tanto sabia que as pragas rogadas pelo velho me ensandeceram, foram fundo, e eu acreditei mesmo que podia subverter a ordem natural do mundo - mais do que isso, acreditei no guerreiro da vida sem morte, sem dobras, sem fendas, sem limites. Mas fazer o quê ? perguntei. Ignore a morte, ele disse. Como ? perguntei outra vez. Junte-se à sua mulher e à sua filha, desconheça a ordem das coisas.
Ele pediu que eu saísse para o terreiro, a lua ainda lutava  para se mostrar entre as nuvens pesadas de chuva. Senti um tremor descontrolado, pois à frente estava a mão da boneca dependurada do teto, mão de gente passada. Chamou a atenção outra vez a réstia de luz do luar ao pé do mourão ! O velho pediu que eu fixasse meu olhar ali e disse que daquele lugar, com força de espírito, eu haveria de resgatar a minha mulher e minha filha. Por diante, ele completou, por mais alguns dias, não te ocupes de outra coisa a não ser desse pedaço de luz que haverá de se achar ao pé do mourão todos os dias, quando a noite cair.
O velho girou o corpo, compôs a dobra do gibão à altura do umbigo,  arrochou a cilha enrugando o bucho do Barroquinha, cavalo antigo, meu preferido da fazenda, saltou para a montaria e saiu a trote na direção do campo de pouso, sem que eu sequer tivesse tempo de questionar a existência daquele cavalo de trinta anos atrás. Muito menos me cumprimentou ao se despedir, nem olhou para trás. Fiquei ali, confuso, parado, olhos perdidos no descampado à minha frente. O velho e o Barroquinha desapareceram além do horizonte de sombras do chapadão noturno.
Só peguei no sono quando a noite já servia ao cerrado o sol e suas claridades amarelo fogo. Sonhei sonhos bons e sonhos maus, devo ter me revirado muito na rede. Quando acordei o sol ia alto, as moscas pontilhando o cobertor. Fiz questão de não rememorar os sonhos, como de hábito, antes ocupei o pensamento com as palavras do velho. Catei na sacola o calção de banho e desci para o ribeirão, a cabeça doendo.  A umidade do capim refrescou-me os pés e melhorou meu humor. Senti sede quando ouvi o barulho do ribeirão rolando nas pedras, apressei os passos. A imersão na água cristalina, os pés afundados na areia clara, dourada, o silêncio, tudo serviu para curar a dor de cabeça e restaurar o meu corpo, diminuindo o cansaço.
No meio da tarde daquele dia o meu pai desceu de um cavalo alugado no pátio da fazenda. Estava sozinho e trazia sacolas com mantimentos. Quando entramos para o salão eu me apressei em esclarecer que desejava continuar só, ele não se contrapôs. Inspecionou com pressa os currais e as cercas da manga lateral, onde ficava o cemitério, e partiu com um aceno comedido, visivelmente não concordava que eu continuasse na fazenda. Joguei as sacolas no paiol sem sequer olhar o que tinham dentro.
Mais tarde senti uma agonia intermitente, o tempo travara, o dia estava quente e tudo agora amortecia meus ânimos. Esperei a noite e o pedaço de luz que talvez se derramasse outra vez ao pé do mourão, como um náufrago que esperasse uma mão salvadora. Deitei na rede, andei pelas veredas que levavam aos grotões e aos limites da propriedade, fumei muito, observei pássaros e identifiquei árvores, a curicaca de bico majestoso, os pintassilgos vida inteira de canto, amarelo e preto, um preto que ia muito além do preto de praxe, o comum, as pipiras, que me pareciam pássaros ansiosos, inquietas por natureza, pouco canto e muita ação, não se prestavam às gaiolas – o pé de pequi sozinho, em frente ao curral, circunspecto, esperando a hora de derramar ao chão os frutos para se servir no almoço ou, de resto, para fazer sabão - mais longe, à esquerda, os buritizais, signos de água limpa, clara e fria, com suas palmas de entreventos, verde profundo vazado nos buritis daquele vermelho quase negro, escamado. Acompanhei o sol enquanto cruzava a cuia do céu, minuto por minuto.
A noite chegou, sentado no batente da porta acompanhei a lua, que já nasceu encorpada, para os lados do Santo Antônio, brilhando um absurdo de brilho que iluminou o horizonte até onde a vista dava. Segui com os olhos algumas nuvens esparsas e escuras, que talvez anunciassem chuva noite adentro. Não demorou e a lua se mostrava ora nua, ora velada. Uma ou duas horas depois a lua, aos poucos, foi projetando sua espada de luz que eu tanto esperava ao redor do mourão. Fixei meu olhar naquele ponto e, concentrado, orando com ansiedade, desejei reencontrar minha mulher e minha filha. Foram horas com os braços cruzados, observando a claridade do luar naquele ponto. Na madrugada senti medo, mas não arredei pé. Tarde, no meio da madrugada, vi sombras projetadas no círculo de claridade. Cansado, fui tomado de uma euforia doce, comedida. Transportado de mim mesmo, e era isso que parecia ser, vi com nitidez e com uma certa calma inesperada sombras frágeis, ondulantes e vacilantes de uma cabeça, talvez a forma de um tronco mais adiante, membros, um ou outro não claramente identificados. Levantei e me aproximei, mas as sombras dissolveram-se tão ligeiro como haviam aparecido. Recuei horrorizado, as pernas trêmulas; as sombras no círculo de luz ao pé do mourão pareciam ter vida própria.
Quando acordei, o sol esquentava meu rosto. Dormira ao pé do batente, as costas doíam. Olhei para o pé do mourão, a manhã reverberava na terra branca do terreiro. Uma fome longínqua beliscou o estômago, mas não acendi o fogo, dispensei o quebra-jejum. Desci para o ribeirão, a água fria diminuiu a dor nas costas, eu estava leve e oco. A chuva anunciada caiu perto de meio dia. Dormi. Naquela tarde tive o sonho óbvio, pleno de sombras, silhuetas e projeções luminosas com formas e traços de minha mulher e de minha filha. Não apareciam inteiras, claramente expostas, com as faces de frente, à mostra, mas somente sugeridas e no entanto eu sabia tratar-se de Poliana e Francisca.
No fim da tarde, garimpando os sonhos que tivera, me senti fraco, como se as duas jamais pudessem colocar-se ao meu alcance. Saí para o pátio, acendi um cigarro, e à luz do dia olhei outra vez para o mourão, que aquela hora era apenas uma peça comum de madeira cinzenta e carcomida, com gretas profundas cavadas pelo tempo. No chão, ao seu redor, a terra branca e algumas folhas secas decolando ou pousando conforme o vento que vinha dos brejos.
A noite chegou com um céu limpo, céu azul de dia posto na noite, emprestado à noite, Marte cintilando encarnado. Uma beirada da lua logo apareceu por trás do capão de mato, depois destampou completa, amarelo vertigem, lua cheia do sertão. Sentei no chão ao pé da parede, pelo lado de fora. Depois, quando levantei, a calça arriou chegando à linha abaixo da cintura - emagrecera muito. Para me recompor usei embira em vez do cinto. Cheguei para perto do círculo de claridade que já se formara. Lembrei de todos e chorei. Acendi o cigarro e sentei, pernas cruzadas, sem tirar os olhos do pé do mourão, porque não aguentava em pé. Nada se deu até a lua alcançar o ponto do céu sobre minha cabeça. Meu corpo agora era um elemento de carne volátil, pela fome ou talvez pelo desmedido desejo de rever minha mulher e minha filha, ou talvez pela obcecada concentração naquele círculo de claridade.
As sombras reapareceram, bruxuleantes no início, depois mais densas e firmes. Senti uma ponta de medo. As sombras tinham cheiro e sussurravam algumas  palavras distantes e ininteligíveis, embora num ou noutro momento fossem distorcidas e remotas. Cheiros e vozes de minha casa, um resto de razão da minha clarividência pessoal, agora despertada, resgatou outras memórias. As sombras não ultrapassavam os limites do círculo iluminado. Caminhei em sua direção, cambaleante e inseguro. Não estava a cinco metros do lugar quando as sombras altearam-se, humanizaram-se, caminharam para fora do círculo e foram na direção oposta, me abandonaram; Poliana e Francisca, de costas, afastando-se na direção do  campo de pouso. Gesto impotente e solitário, levantei o braço para acenar, para pedir que retornassem, mas não havia nem voz, nem passos, nem mão para acenar. Acredito que naquele momento desfaleci.
No outro dia acordei cedo. Dali do chão, onde estivera estendido, olhei para o mourão e suas imediações – àquela hora era apenas um ícone do meu patético desespero, que no entanto se fazia ardente quando eu fechava os olhos e revia aquele pedaço insignificante de madeira suscitando as presenças de minha mulher e de minha filha ou a sombra das duas, como tivera acontecido. Desejei minhas mortas, desejei a noite. Que a noite retornasse trazendo as duas, pois elas estavam reclusas além do ocaso do dia.
Minhas roupas fediam e do calor da hora brotava suor das dobras do corpo. Desci para o rio, ia para três dias sem comer, fumava muito, dia e noite. Desci as sacolas de mantimentos do paiol e procurei por mais cigarros. Descendo pela vereda quase encoberta olhei o céu, um céu bonito, que seria muito mais prazeroso se eu não estivesse carregando tanta angústia d’alma – os ventos de maio e junho que talvez eu não pudesse esperar eram o contraponto, por sua imensa transparência e claridade.
Um só lugar são muitos, o mundo são muitos, qualquer barulhinho doce ou estertor ou virada de cor da natureza são muitos. O mesmo céu de maio agora era um céu rajado de listras cinzas e negras, não tinha o gosto da sembereba de cajá, mas de papa de mastruz, gosto de consumição e eu desejava viajar sem mim, o amor abalando, somos o amor e a morte e nem percebemos que a vida não existe.
O sol arremeteu de vez por detrás de um capão de mato. A noite levantou-se em toda sua majestade e amplidão, límpida como um cristal vário e lapidado com cuidado. As faiscações, de tantas, confundiam-se, e o céu era mesmo um infinito descampado, um luzeiro sem fim. Deitei no terreiro, o corpo molhado mas limpo. Quando a lua despontou virei a cabeça e olhei o pé do mourão. À medida que ela subia curiosamente eu ficava menos angustiado. Quando ela alcançou o ponto do céu acima da cabeceira do campo de pouso eu estava eufórico e surgiram as primeiras nuvens encharcadas e as primeiras sombras - das mangueiras, das cercas, e uma enorme rente ao oitão da casa. Logo ela clareou com o máximo de força o espaço ao redor do mourão. Qual o fascínio do olho da cobra, para quem é passarinho, a língua de fogo da luz da lua me atraía e decerto faiscava nas profundezas de minhas pupilas. Levantado, os passos saíam arrastados, o calção dobrando-se ao vento, que agora chegava com força, anunciando chuva para mais tarde. O peso do corpo descera terra a dentro, rumei para adiante, leve, depois quase flutuando, não sentia as duas extremidades agora sobrantes, inapropriadas, que desciam do meu corpo, os braços. As pernas, como se fossem dois cortes de véus, estavam despedindo-se de mim. As primeiras sombras apareceram no espaço de claridade ao pé do mourão, insinuando-se naquele espaço exíguo, serenas e sem pressa. O vento delineou ombros e ancas, juntas minha mulher e minha filha surgiram daquele pedaço de terra iluminado, um milagre visível, por certo também palpável. Ouvi o som do que poderia muito bem ser minha gargalhada, mas não estava certo disso. Depois dei-me conta que era mesmo a minha gargalhada, sem dúvida ! Eu a reconheceria em qualquer canto deste mundo, pois era grave e consumava-se com uma espécie de apito esganiçado. Havia também que aquela gargalhada não era um som natural, não era audível, como por lei da natureza deveria ser, e chegava-se como um breve surto de memória, que também, por sua vez, desaparecia aos poucos. Minha mulher trajava um vestido azul seu que era meu predileto e não sorria como deveriam sorrir todos os ressuscitados. Francisca descansava a cabeça nos braços da mãe e a réstia de luz ao pé do  mourão era uma pérola incandescente. As duas me receberam como quem recebe marido e pai para jantar, com o carinho comedido do cotidiano. Acariciei-as. Cheiravam aos perfumes de família, os antigos perfumes que eram pequenas glórias dos nossos dias e de nossas noites. Agora eu tinha a certeza que estava bem próximo delas e não obstante o cansaço, eu não ofegava ou suava. Abaixei a cabeça e olhei ao redor, transido, pois eu vi a luz trespassando-me. Meu corpo não tinha, não fazia sombra.

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