ENTREVISTA COM HELENO GODOY
 
Heleno Godoy - acervo Pessoal

A Revista Banzeiro republica a entrevista* com o escritor, professor e crítico literário Heleno Godoy. Natural de Goiatuba, Goiás, ele foi professor titular de Literatura Inglesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (hoje é aposentado, trabalhando apenas como professor voluntário/colaborador na pós-graduação em letras) e ex-professor adjunto de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira no Departamento de Letras da PUC-GO. Concluiu a Licenciatura Plena em Português-Inglês no Departamento de Letras da UCG (PUC Goiás), é Mestre em Letras Modernas pelo Graduate Institute of Modern Letters da University of Tulsa (Tulsa, Oklahoma, EU) e Doutor em Letras (Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Como escritor, estreou em 1968 com o livro de poemas-práxis Os veículos. Tem publicado vários outros livros, As lesmas (1969, romance), Relações (1981, narrativas), O amante de Londres (1996, contos), A feia da tarde (1999, contos). Seus outros livros de poesia são: Fábula fingida (1985), A casa (1992), Trímeros (1993), A ordem da inscrição (2004), Lugar comum e outros poemas (2005). Organizou e editou os livros de ensaio O ser da linguagem (1983) e Identidades prováveis, representações possíveis (2005). Tem colaborado com inúmeras revistas acadêmicas e suplementos literários do país, assim como de outras coleções de ensaios, além de já ter publicado inúmeras traduções de poetas e ficcionistas de língua inglesa, sobretudo escritores irlandeses. Ao completar 47 anos de Literatura, Heleno Godoy, ainda este ano, terá toda sua poesia reunida em livro, sob a coordenação da professora Dra. Solange Fuiza Yokozawa.


* Esta entrevista foi, originalmente, publicada online na Revista Bula, em duas partes, em maio de 2006. Dela fizeram parte Edival Lourenço, Flávio Paranhos, Carlos Willian Leite e eu, Francisco Perna.



Escrita



"Não vejo problema em um escritor ser influenciado por outro. Recomendo apenas a busca de influência de escritor realmente bom e grande."



FRANCISCO PERNA – Julio Cortazar, numa entrevista, afirmou que se não tivesse escrito Rayuela (O jogo da amarelinha) teria se atirado no rio Sena. O senhor já foi salvo pela palavra? Quando?

HG - Ser escritor não foi coisa decisão recente em minha vida. Desde menino já escrevia, sonhava escrever livros e publicá-los. Daí concordar com sua pergunta, mas no sentido de a palavra me fazer ser o que sou, não no sentido messiânico da salvação. Não sou escritor por achar que tenho algo a dizer ao mundo, nem por vaidade ou qualquer coisa do gênero. Não acho que o mundo precise de mim, muito menos a literatura. Sou escritor por não dar conta de não sê-lo. Escrever é condição essencial para eu poder continuar existindo, independentemente de ser reconhecido, ser considerado importante, ter fama, ficar para a posteridade. Nada disso faz sentido para mim. Não estou inscrito na “Maratona da Glória”, não sou atleta da “Corrida da Fama”. Sou escritor como condição de vida, é o que eu sou, como me defino. As outra coisas eu as faço por profissão, para ganhar dinheiro, para sobreviver e prover para minha família: sou professor em duas universidades, em duas línguas diferentes, cumpri todas as exigências acadêmicas do ensino superior – fiz graduação, mestrado e doutorado, sou professor titular em uma universidade federal, por concurso público; sou professor adjunto em outra, também por concurso. Não tenho mais o que fazer, a não ser, talvez, um pós-doutorado, já que o plano administrativo da vida universitária não me interessa, não me atrai – também já passei por isso, já fui diretor de departamento. Nada disso, no entanto, valeria a pena se eu não fosse escritor e não publicasse meus livros. Daí, mas longe do sentido messiânico, a palavra não apenas me salvou, ela me definiu, deu rumo e sentido à minha vida.

  Julio Cortázar



FLÁVIO PARANHOS - Sua graduação, pós-graduação e docência universitária em letras/literatura atrapalham ou ajudam na criação literária?

HG -Não atrapalha; na verdade, ajuda. Não confundo as coisas: uma coisa é eu ser professor há mais de trinta anos; outra é ser escritor. O que sei como professor de teoria da literatura ou de literatura (principalmente de línguas portuguesa e inglesa, minhas especialidades) amplia minhas possibilidades como escritor. Mas eu já era escritor antes de me tornar professor. Em minha vida, escrever precedeu ensinar. Quando escrevo, não penso a teoria a priori, penso minha escrita, o que estou criando. Não quero, ao escrever, provar nenhuma teoria, testar nenhum estilo, me incluir nesta ou naquela tendência. Quando escrevo, penso apenas na eficácia de minha linguagem, na adequação entre o que quero fazer e o que consigo realizar. Na minha capacidade de realizar o que pretendo e quero, se a linguagem que estou usando é adequada ao tema ou assunto que abordo, se a estrutura que estou criando é a melhor para o que me propus, estas coisas todas que afloram à mente de um escritor no momento do processo criativo. Sobretudo, penso em como meu significante vai funcionar, não apenas os conteúdos possíveis e significações várias de meus significados. Não sou um escritor impulsivo. Escrevo somente após muita elaboração mental. Meu processo criativo é emocional apenas no momento da concepção da idéia, depois é a vez da criação racional, da busca da melhor linguagem. Acredito muito naquilo que o grande poeta francês Paul Valéry disse certa vez, mais ou menos assim: “Os deuses dão/propiciam o primeiro verso, o poeta escreve os outros.” Meus conhecimentos de teoria da literatura e de literatura não afloram no momento criativo, mas estão na base, como coisa sedimentada, aquilo que já faz parte do meu eu, pois é disso e com isso que vivo, é meu trabalho no dia-a-dia. Eles me deixam mais alerta, mais atento a erros, mais severo quanto ao resultado de meu trabalho. Sobretudo, deixam-me muito mais exigente comigo mesmo. Assim, garanto-lhe que ser professor não é incompatível com o fato de eu ser escritor. Continuo achando que uma coisa não atrapalha a outra, até ajuda.


Paul Valéry


FLÁVIO PARANHOS - A faculdade de medicina forma médicos, a de engenharia forma engenheiros. E as de filosofia e letras? Formam filósofos e escritores?

HGFlávio, faculdades de filosofia formam professores de filosofia (se alguns desses formandos se tornam efetivamente filósofos é uma outra história), assim como faculdades de letras formam professores de língua portuguesa e estrangeira e também professores de literaturas de língua portuguesa e estrangeira. Esta é a razão para cursos de letras existirem, este é o objetivo delas. Inexistem faculdades para a formação de escritores, nem mesmo aqueles conhecidos cursos de creative writing, por exemplo, nos Estados Unidos. Eles podem fornecer informações, técnicas, orientação, mas não dão talento e qualidade, apenas contribuem para o desenvolvimento de um escritor. Cursos de letras, no entanto, podem ser úteis a quem quer ser ou é escritor, ao menos para o estudo de teoria da literatura e literaturas várias, pois é um estudo formal, melhor do que o informal que todo escritor faz ao ler um livro. Pois é isso o que na verdade fazemos quando lemos um livro, nós estudamos o modo como o escritor o escreveu, como nele lidou com os temas que se propôs, seu uso da técnica, o uso que fez nele de determinadas palavras, sua linguagem, seu estilo, etc. Quem quer ser escritor, deve fazer isso obrigatoriamente. Ninguém se torna um escritor sem conhecer a obra de outros escritores e o maior número possível deles, em verdade. Sem leitura não há literatura. Então, cursos de letras podem ajudar na formação, mas não formam escritores e, insisto, não existem para isso, mas para formar profissionais da educação, para o trabalho de ensino de língua e literatura em escolas de nível fundamental, médio e superior. Um escritor se forma, é o que penso. O estudo formal auxilia muito, mas estudo mesmo, intenso, ainda que informal, é indispensável a qualquer escritor. Sem estudar literatura ninguém se torna escritor. Pode publicar livros, mas isso é outra coisa. Aliás, nem todos os médicos são bons só por terem feito o curso de medicina, não é? Nem também todos os engenheiros; muito menos, os filósofos. Não há garantia alguma. A existência de diploma não é garantia de qualidade. Qualquer qualidade vem da prática, é evidente, mas principalmente, da capacidade que tem o profissional de ser cada vez melhor, de se superar sempre. É preciso ter talento e saber usá-lo.


Heleno Godoy

FRANCISCO PERNA - No conto “O Albino”, o senhor aborda os procedimentos da literatura fantástica e, ali, percebe-se – claramente - o pleno domínio desta modalidade narrativa. Qual a importância da teoria na literatura? Pelas teorias é possível escrever boas histórias? Bons poemas?

HGAntes desse conto a que você se referiu, de meu livro O Amante de Londres, já havia escrito a “Segunda” das narrativas do livro Relações, também fantástica, sobre o avô que perde a sombra, aos poucos os membros do corpo, assim por diante. Esse conto foi escrito antes de 1979, pois Relações ganhou o prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos naquele ano, embora só tenha sido publicado em 1981, pelo CERNE. Minha aproximação com o fantástico decorre de minha leitura de literatura gótica – O Castelo de Otranto, Frankenstein, O Retrato de Dorian Gray, Drácula (todos do século XIX, com exceção do primeiro, que é de 1764). Li todos esses livros na adolescência, quando tinha entre onze e quinze, talvez dezesseis anos. Devo me lembrar ainda dos contos de Edgar Allan Poe, um de meus poetas e contistas preferidos, e de meu gosto (duvidoso, alguém poderia dizer) por filmes de terror, mesmo aqueles de produção pobre, filmes B e C, se não forem até piores. Isso é uma preferência (por gosto pessoal meu), não um pecado (não quero que alguém goste deles como eu gosto). Quando escrevi a “Segunda” narrativa de Relações, tinha acabado de estudar o livro do Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica. Na década de 70, por sinal, comprei uns trinta volumes da coleção “Livro B”, da Editorial Estampa, de Portugal, toda ela em capa de papel preto, com letras impressas em branco. Esta coleção incluía, entre muitos outros livros, os Manuscritos Encontrados em Saragoza, de Potocki, as Fábulas Fantásticas, de Ambrose Bierce, O Lobisomem, de Dumas, Vatek, de Beckford, O Horla e Outros Contos Fantásticos, de Maupassant, os Contos Fantásticos, de Hoffmann. Li todos eles, mais a obra de Lovecraft, claro, inclusive seu livro teórico, O Horror Sobrenatural na Literatura, que estudei primeiro em espanhol (El Horror en la Literatura), numa edição da Alianza Editorial, de Madrid. Ele existe numa edição brasileira, da Francisco Alves, de 1987. Assim, acho que tudo o que aprendi com os melhores mestres do fantástico do passado e também com os teóricos do gênero, aflorou quando escrevi esse conto e também, tempos depois, quando escrevi “O Albino”, mas não intencional ou propositadamente. Aliás, só com a “Segunda” narrativa de Relações se poderia dizer que isso aconteceu de forma consciente (mas não quanto ao fantástico), já que neste livro testei e tentei, propositada e intencionalmente, todas as possibilidades técnicas da construção da narrativa: vozes, focalização, ponto de vista, estrutura, enfim, as técnicas de construção do enredo, pois era professor de teoria da narrativa no Departamento de Letras da UCG na época. Foi uma forma de unir duas experiências, a de escritor e a de professor. Relações é um livro que confirma meus conhecimentos teóricos sobre a construção da narrativa. Quanto a “O Albino”, o propósito foi outro e a escolha do fantástico foi mera decorrência do tema, o preconceito social contra a diferença. Em verdade, esse conto nasceu de eu observar pessoas na rua, sempre que ia para minha casa, depois do trabalho, no fim da manhã. Quando parava no sinaleiro da Rua 55, coincidentemente encontrava varredores de rua na Avenida Goiás e, entre eles, um albino que se cobria todo de mangas compridas da camisa, panos na cabeça e nos ombros, além de usar um largo chapéu. Era o único dos varredores de rua que fazia isso. Comecei a pensar no tema, por não conseguir entender como a Prefeitura de Goiânia não via que aquele era um emprego impossível para aquele albino, que devia sofre um calor medonho debaixo de tanta roupa, panos e chapéu, para poder trabalhar. Por qual razão não lhe davam um trabalho que lhe permitisse ficar dentro de algum lugar, longe do sol e da rua? Um belo dia não vi mais nem ele, nem outros varredores. Devem ter mudado de horário de trabalho e minha passagem de carro por ali não coincidia com a presença deles na avenida. No entanto, a idéia permaneceu em minha cabeça, a da diferença estabelecida pelo fato de um albino ter de ficar exposto ao sol, o que lhe causa danos à saúde da pele e dor nos olhos. O que aconteceria na vida de um albino, que transtornos para a vida da pessoa adviriam daí? E se o personagem que comecei a imaginar tivesse hábitos noturnos, evitando o sol? Daí para acusá-lo de ser vampiro ou qualquer outra coisa seria um pulo, não é? Então a diferença seria a causa da repulsa dos outros e assim por diante. Achei que com esse tema o uso do fantástico servia melhor ao meu propósito.


Por isso, posso responder que estudar teoria da literatura (inclusive a literatura fantástica), me ajudou muito. Ajuda em toda a minha produção literária, na verdade, já disse isso antes. Não creio, entretanto, que o fantástico tenha importância em minha literatura, nem creio que recorrerei a ele novamente. Mas isso não é promessa. Posso voltar a usar o fantástico de novo, sem problema algum. Agora, quanto a saber se conhecer teoria da literatura ajuda a escrever, minha resposta continua sendo afirmativa: – Sim, ajuda, claro. Mas escrever bem ou boas histórias ou bons poemas? Isso é outra coisa, que independe do conhecimento teórico. Quem tem de dizer se o conto foi bem realizado ou bem escrito são os críticos e você foi um dos que disse que foi, pois escreveu um ótimo ensaio sobre o conto “O Albino”, publicado na revista Estudos, da UCG, pelo que lhe sou grato.

Não acredito que o conhecimento teórico crie o bom escritor, mas ajuda, pois esse conhecimento é fundamental para qualquer escritor. Horácio, na sua velha Epístola aos Pisões, sua “arte poética”, já chamava a atenção para o fato de que sem a ars (o arete, a arte, a técnica, o conhecimento do modo de fazer), o ingenium (a inclinação para, o talento individual) é insuficiente. E é, evidentemente, para a tristeza de muitos que têm pretensões, mas não têm nem uma coisa nem a outra, nem, às vezes, as duas, ao mesmo tempo. É que não basta ter talento ou inclinação para a poesia, é preciso aprender a escrevê-la; é preciso estudar os grandes poetas para se aprender a escrevê-la melhor. É preciso que o poeta adquira técnica, destreza, capacidade, e isso só vem com o estudo e a prática. A boa obra de arte nasce do equilíbrio entre a ars e o ingenium. Não foi por isso mesmo que Camões disse que cantaria, n’Os Lusíadas, os grandes feitos heróicos do povo português, “Se a tanto me ajudar o engenho e arte”? Está lá, no fim da segunda estrofe do poema. Camões sabia das coisas e foi um grande estudioso dos poetas épicos do passado e de suas técnicas. Se não fosse, como poderia ter escrito seu poema? Re-inventando a épica, escrevendo como se toda a épica anterior não existisse? Ou fingindo que não existisse? Seria impossível! Poeta que não estuda e aprende está condenado a repetir o passado, principalmente os erros do passado. Está condenado a dizer o que outros poetas anteriores já disseram e de forma melhor.

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Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann

CARLOS WILLIAN LEITE - Otto Maria Carpeaux, em A Cinza do Purgatório, disse: "As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não formam homens práticos; formam o tipo ideal de nação: o lettré, o gentleman, o gebildeter". Sendo professor, como o senhor identifica a universidade brasileira na era do pragmatismo, da voragem informativa e do desenvolvimento tecnológico?

HGCarpeaux não estava falando da universidade brasileira, nem de uma universidade em particular, estava falando muito mais de uma política de classe ou de educação, de uma escolha ideológica por um determinado tipo de formação, através da educação. Se isolamos frases como esta e as aplicamos na avaliação de uma universidade qualquer, estaremos cometendo um erro. Isso é um risco. Nem a Universidade de Oxford, nem a da Sorbonne, nem a de Harvard, nem qualquer outra, no mundo, forma letrados pedantes. Quando discutimos a universidade brasileira, tendemos a menosprezá-la, como se ela não produzisse nada. Entra em funcionamento nosso famoso complexo de inferioridade colonial. Não deve ser bem assim. A universidade brasileira, com e apesar do poder público, vai bem. Poderia ser melhor, é verdade, mas já produziu e continua produzindo muito. Situações erradas existem em qualquer universidade, pesquisas inúteis são feitas todos os dias, aqui, ali e mais além. Fraudes também. Uma fraude recente não aconteceu na Coréia, na Universidade de Seul? As universidades no Brasil lutam com falta de dinheiro (se são privadas), com falta de verbas (se são públicas), mas sobrevivem e desenvolvem pesquisas e já conseguiram muito e conseguirão mais ainda, no futuro. Eu acredito na capacidade de nossos cientistas, de nossos professores, apesar e com os que são de nível inferior aos melhores. Se não acreditasse, não poderia estar trabalhando em duas delas, aqui em Goiânia, a Católica e a Federal, nem torceria para que a UEG se consolide e se torne um sucesso. Nem penso que a universidade brasileira esteja aquém de outras, de outros países, em termos de informação, de pesquisa e qualidade de seus professores. Temos muita gente boa desenvolvendo trabalho de qualidade. Além do mais, e exatamente por causa dessa voragem informativa a que você se refere, é impossível a uma pessoa desconhecer o que acontece no mundo. O saber está disponível, basta que se tenha interesse por ele. Revistas científicas da maior importância podem ser acessadas via Internet. Também se podem comprar livros, pesquisar, obter informações vastíssimas. Se você fizer essa mesma pergunta a um professor alemão ou japonês, ele reclamará de coisas que não andam bem quanto às universidade da Alemanha ou do Japão. Lembro-me de ter visto, na biblioteca da Universidade de Tulsa, onde trabalhei, quando lá estudava, um professor reclamar que dois livros para a bibliografia, que ele havia exigido para uso dos alunos, publicações recentíssimas, não haviam chegado depois de uma semana. Pensei em nossa triste situação aqui no Brasil, quando os professores pedem e as bibliotecas de nossas universidades às vezes nem compram os livros ou demoram meses para fazê-lo. Pois bem, infelizmente devo reconhecer que ainda estamos, quanto à universidade brasileira, longe do ideal, mas – e isso é o mais importante – não no caminho errado. O que parece é haver desconhecimento do que anda sendo feito, pesquisado e estudado em nossas universidades. O grande público não compreende, nem pode compreender, o que se faz na universidade, o que se pesquisa nela. O grande público vê os resultados, como uma vacina, a descoberta de novas técnicas. O grande público não conhece os intrincados caminhos da pesquisa acadêmica. Ele quer resultados. Mas não pode, por desconhecimento, criticar sem entender. Lembro-me de um escritor goiano que vivia falando mal de doutorados e de cursos de pós-graduação em geral, no Brasil. Aliás, escritor que não tem nem segundo grau completo. Pois bem, quando de uma doença em sua família, foi um doutor de um hospital especializado, de Brasília, que podia atender e resolver o problema – um médico com graduação, mestrado e doutorado e mais, capacitado para tal apenas em virtude de ter feito suas pesquisas de doutorado sobre aquela específica doença, sua especialidade. Ironia dolorida, não?


Otto Maria Carpeaux


FLÁVIO PARANHOS - Muitos dos contos da Antologia do Conto Goiano (Editora da UFG), organizada por Vera Maria Tietzmann Silva e Maria Zara Turchi, incluindo o seu (“Quarta”) têm nível para publicação em editora de circulação nacional. O mesmo vale para seu romance As Lesmas. Enfim, há muita coisa boa (claro, há muita coisa ruim também) publicada em Goiás. Uma pergunta óbvia, mas gostaria que enriquecesse sua resposta com sua própria vivência: por que é tão difícil para a província furar o bloqueio da corte?

HGExatamente por mantermos essa dicotomia “Colônia x Corte” e acreditarmos nela, em sua existência. Quando você faz a pergunta e reconhece o bloqueio, você contribui para que ele exista de fato. O que precisamos, a meu ver, é parar de reconhecer a existência desse bloqueio e fazer o que fazem no Rio Grande do Sul, por exemplo, ter uma literatura e um público regional fortes e despreocupados com o eixo Rio-São Paulo. Se em todos os estados brasileiros se fizesse isso, o eixo Rio-São Paulo não existiria. É difícil, eu sei, a vaidade pessoal de ser editado por uma editora grande e de nomeada é sonho de qualquer escritor, mesmo quando se tem de contentar com uma edição em papel “quase bíblia”. Isso é muito triste. Pior é ficar contando vantagem aqui de pequenos triunfos “lá fora”. Glória, sucesso e renome são passageiros. E isso também é um lugar comum, mas vejamos: quem lê, hoje em dia, Coelho Neto ou Humberto de Campos? Foram o que existia de mais respeitado, cada um em sua época. Quando comecei minha carreira literária, no início da década de sessenta, Paulo Pacheco, se não me falha a memória e não lhe erro o nome, era o mais publicado poeta da época, juntamente com A. J. G. de Araújo Jorge. Quem sabe de seus paradeiros hoje? A imprensa cria e desfaz reputações com muita facilidade. Se você é colunista de algum grade jornal ou revista de circulação nacional, tudo fica mais fácil. Mas livro nas livrarias, o que é mais importante, não temos. Falta distribuição, no Brasil. Além do mais, nossas editoras, que editam muitos títulos, editam poucos exemplares de cada título. Os autores mais editados têm edições de, no máximo, noventa mil exemplares; às vezes, um pouco mais. O que significa isso num país de cento e setenta milhões de habitantes? Nada! Livros, em Goiás, quando são bem editados, saem em edições de mil exemplares. E, ainda assim, não vendem. Drummond ou João Cabral, quando vivos, tinham edições de no máximo três a seis mil exemplares para um livro novo. Isso é ridículo! Parece brincadeira. Recentemente, numa entrevista, um poeta goiano de renome afirmou ter esgotado três edições de seus poemas completos e coligidos. Em primeiro lugar, ele se referia, na verdade, a uma edição e duas reimpressões. Espero que tenham sido de, no mínimo (o poeta não disse nada sobre isso, na entrevista), quarenta mil exemplares cada, pois se foram de apenas dois mil exemplares, foi muito bom para o poeta, mas uma vergonha, ainda assim, para o país. Seis mil exemplares, para um país de cento e setenta milhões de habitantes continua sendo um ridículo total de edição. Claro que a culpa não é do escritor brasileiro. Tudo isso, no fundo, tem a ver com uma estrutura de educação, hábitos de leitura criados desde cedo, na família e na escola, e assim por diante. Antigamente, comprava-se livros aos metros, para o enfeite de estante. Hoje, nem isso, pois coleções inteiras poder ser vendidas agora em RD-Room e estantes de livros não enfeitam mais salas de visitas de nossas casas ou apartamentos. O gosto burguês quanto à decoração de interiores mudou. Mas ninguém quer pensar sobre isso ou encarar assim o problema. Escritores preferem contar vantagens por causa de uma edição de mil exemplares por uma grande editora. Infelizmente, essa é a realidade nacional: publicam-se muitos títulos, mas pouquíssimos exemplares. Somos um país de não-leitores, um país que lê pouco e, sobretudo, mal. Quanto a mim, sou um escritor de Goiás, que vive em Goiás e aqui publica. Se isso me angariar algum tipo de reconhecimento, ótimo; se não, pouco me importa. Volto a insistir: não sou atleta da Maratona da Glória, deixo a outros a tarefa do esforço na corridinha pela fama. Já enviei originais para algumas importantes editoras. Foram todos recusados e a desculpa era, usualmente, duas: “não estamos em condições de aceitar originais agora” ou “infelizmente seu livro não se encaixa nos planos atuais da editora”. Bobagens, claro. Depois de recusarem livro meu, vi algumas dessas editoras editarem livros que, tenho plena consciência, eram inferiores aos meus que lhes enviara. É por isso que continuo aqui, publicando aqui, quando posso. O que me interessa é que construí uma carreira constante, regular, tenho escrito e publicado livros desde 1968. Sei de escritores goianos que começaram depois de mim e já publicaram muito mais livros. Não me faz diferença, volto a insistir, não estou disputando nada com ninguém. E se esses escritores são assim tão melhores, por qual razão ainda devem, a cada livro, lutar para conseguir editora. Todos sabemos que grandes autores são disputados pelas editora, não o contrário. Esses que se dizem tão bons aqui, por qual motivo não têm editora fixa – de grande nível nacional – do eixo Rio-São Paulo, como você diz, com contrato para livros futuros? Eu não tenho e nem me preocupo com isso. Publicarei quando e sempre que tiver oportunidade. Minha palavra para os que são mais novos do que eu, mas sem pretender dar lições, é de perseverarem, continuar cada um com seu trabalho. E não se preocuparem se não ganharem nenhum prêmio por aí. Prêmios são bons, mas também relativos.


Divulgação


FRANCISCO PERNA – Para o senhor, existem em Goiás prosadores, como José J, Veiga e Bernardo Elis, que são injustiçados por não terem o reconhecimento nacional devido?

HG Voltamos ao problema abordado na resposta anterior. Em primeiro lugar, Bernardo Elis não foi nunca um escritor popular, nem tão famoso assim, no Brasil inteiro. Para muitos e milhões de brasileiros continua um desconhecido. Foi um grande escritor, mas de reconhecimento ainda hoje restrito. Nisso, José J. Veiga teve um pouco mais de sorte. Afonso Félix de Sousa (na minha opinião, nosso maior poeta) também continua desconhecido do grande público. Merece muito mais fama do que tem. Alaor Barbosa, Miguel Jorge e Antônio José de Moura são ficcionista goianos vivos merecedores de respeito e reconhecimento. Têm um e outro, mas por um público restrito também. Na poesia, Yêda Schmaltz e Carlos Fernando Magalhães, por exemplo. O fato de não serem nomes largamente reconhecidos no Brasil diminui a qualidade de seus trabalhos? Nunca. Não acho que a fama seja tão importante assim. Antes de se preocuparem com a fama, os escritores deveriam se preocupar com a qualidade de seus trabalhos. Muitos famosos de dez anos atrás não são mais lembrados hoje. Depois, é até fácil conseguir quinze minutos de fama, no mundo atual, como disse ironicamente um artista famoso.

Bernardo Élis
José J. Veiga


CARLOS WILLIAN LEITE - O senhor não faz parte da Academia Goiana de Letras, mesmo sendo um dos principais escritores de Goiás. Por quê?

HG - Nunca me candidatei, jamais o farei.


Fardão da Academia Brasileira de Letras


EDIVAL LOURENÇO - Joyce, Gertrude Stein, Rimbaud, Eliot, Proust, dentre outros, só alcançaram o reconhecimento quando Edmundo Wilson realizou críticas corajosas e inovadoras a respeito de suas obras (O Castelo de Axel - 1931). Aqui no Brasil, escritores criativos, dentre eles Guimarães Rosa e Clarice Lispector, também contaram com críticos igualmente criativos, como Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai – europeus fugitivos da 2 ª Guerra – para aquilatar o elevado valor de seus trabalhos. A crítica hoje, quase sempre de caráter acadêmico, não estaria muito apegada a um figurino formalista, a um paradigma fóssil, e dificilmente teria condições de, não apenas analisar (segundo o seu figurino), mas de fazer críticas criativas e identificar obras que eventualmente estariam a dizer novas coisas no turbilhão de publicações que assola o País?

HGAcho que há uma outra desinformação aqui. Todos os escritores citados já eram famosos e respeitados, antes da publicação do livro de Edmund Wilson, que o escreveu exatamente por isso, por a crítica literária europeia e americana já ter consagrado esses escritores, inclusive pelo escândalo provocado por suas obras, caso de James Joyce. O romance Ulisses, na época, ainda tinha sua publicação proibida pela censura, nos Estados Unidos. Sua liberação só aconteceu em 1933, numa decisão histórica do juiz John M. Woolsey. Não vamos confundir reconhecimento crítico, por parte da crítica, com popularidade, favor do público e grandes vendagens. A crítica de Wilson foi inovadora quanto a seus postulados, não quanto à coragem de escrever sobre escritores desconhecidos do grande público. Pelo contrário, Wilson raramente escreveu sobre escritores pouco conhecidos. O resto de sua pergunta demonstra apenas preconceito contra a crítica feita nas universidades, o que você chama de crítica acadêmica, sem, no entanto, se referir ou precisar a que tipo de academia você se refere. Se você estava se referindo à crítica produzida no mundo acadêmico universitário, sobretudo em nível de pós-graduação, errou a munição, o tiro e o alvo. A crítica universitária não difere daquela publicada em rodapés (que, aliás, desapareceu do jornalismo brasileiro) senão quanto aos objetivos e ao público a que é endereçada. A crítica de jornal se dirige ao grande público e não pode ser erudita; a crítica acadêmica dirige-se ao público universitário e serve aos propósitos de fazer evoluir e crescer os estudos literários, aprofundando-os, o que a torna obrigatoriamente erudita e difícil, apenas para iniciados, pois é essa sua obrigação e objetivo. Isso não quer dizer formalismo. Mesmo quando certas teses de mestrado ou doutorado são publicadas em forma de livro, são dirigidas também a um público de especialistas, aqueles encarregados de fazer evoluir e melhorar os estudos literários no país. Se não fizessem isso, estaríamos condenados todos à repetição e ao marasmo, à não-evolução. O que é inconcebível. Depois, Alceu de Amoroso Lima também reconheceu, logo depois da estreia da escritora, a qualidade da obra de Clarice Lispector. E ele foi um grande crítico, coisa que Paulo Rónai nunca foi. Você se esqueceu da importância fundamental de Antônio Cândido ou de um Alfredo Bosi em nossa crítica? A melhor crítica à obra de Clarisse continua sendo produzida na universidade, por um Benedito Nunes, uma Olga de Sá, entre outros. Quanto a Guimarães Rosa, foi um crítico de rodapé, Wilson Martins, quem atacou e não reconheceu a obra dele (principalmente Grande Sertão: Veredas), não os críticos trabalhando nas universidades de todo o Brasil. Martins mudou de opinião, algum tempo depois, ainda bem. E mesmo se muitos críticos tenham cometido erros de avaliação no passado, isso não invalida o trabalho da crítica literária, apenas denigre a pessoa do crítico que cometeu o erro. Ao longo da história da crítica literária, muito erros de avaliação crítica foram cometidos.  Mas foi o crítico específico que errou, não a crítica. Agora mesmo, na Faculdade de Letras da UFG, a profa. Dra. Maria Helena Garrido Saddi acabou de escrever e teve aprovada sua tese de doutorado, muito boa, aliás, sobre Guimarães Rosa, na PUC de Minas Gerais, enfrentando uma vasta bibliografia já escrita sobre o escritor. Dizer que isso é “paradigma fóssil” é um absurdo.  Você classificaria de “paradigma fóssil” o trabalho de um Antônio Cândido, de um Alfredo Bosi, de um Luiz Costa Lima, todo ele desenvolvido na universidade, na academia, em cursos de graduação e pós-graduação? Só se você for louco.

Criticar não é avaliar se uma obra é boa ou não, mas estudar como ela funciona, os motivos pelos quais ela é única e especial, o que a torna diferente das outras e, por isso, de qualidade, lembrada sempre. A crítica de jornal, aquela feita por jornalistas que dizem que isso é bom e aquilo não é, isto é, apenas expondo gosto pessoal, não é crítica literária. Uma coisa é analisar uma obra, outra, muito mesquinha e insignificante, é avaliar o escritor e falar mal dele. Ou encontrar defeitos em sua obra. Mesmo quando acertam, sem querer, quanto ao caráter da obra de que falam mal. Isso sim, é paradigma fóssil, se entendi bem o que você quer dizer com isso. A crítica literária feita hoje na academia brasileira, na universidade brasileira, é boa e tem rendido bons trabalhos, boas teses, ótimos livros. A pequena crítica de jornal, rápida e deselegante, apressada e, muitas vezes, míope, essa sim, ineficaz e fossilizada, presa a valorações e elogios compadrescos e interesses editoriais, tem sido incapaz de descobrir valores entre os inúmeros escritores que hoje produzem e publicam no Brasil. Se não forem estas as razões, por quais delas teríamos Chico Buarque de Holanda reconhecido como bom romancista? Ele é? Ou dizem isso apenas em virtude de ele já ser famoso e respeitado como grande compositor de música popular? Isso ele realmente é. Não se preocupe muito, no entanto, com essa cena brasileira, ou, ao menos, não se preocupe tanto, ela se repete em outros lugares, não acontece só aqui no Brasil não, em qualquer lugar do mundo existe boa e má literatura, boa e má crítica. Por isso, a crítica é útil sempre, inclusive quando erra. E sempre haverá escritores reclamando contra ela, principalmente quando ela não fala deles ou não lhes dá atenção.


Edmund Wilson

FRANCISCO PERNA- Por falar em crítica, no Festival de Poesia de Goyaz, uma pessoa do Rio de Janeiro (eu estava saindo do Teatro São Joaquim) lhe perguntou se o senhor conhecia Carmo Bernardes, já que havia um interesse muito grande pela obra dele e que ninguém no Rio de Janeiro o conhecia. Vi que o senhor ficou estupefato. Como isso pode acontecer, uma vez que lá nós temos nomes representativos das nossas Letras, como é o caso do Gilberto Mendonça Teles?

HGEssa é uma pergunta que você deve fazer a quem disse desconhecer Carmo Bernardes, não a mim. Foi Maria Lúcia Del Farra, de São Paulo, quem me perguntou, durante o Festival de Poesia de Goyaz, se eu conhecia o Carmo. Disse que sim, pessoalmente inclusive, pois cheguei a conviver com ele. Pois ela me disse (e isso é responsabilidade dela, não minha) estar chocada por Ivan Junqueira e Gilberto Mendonça Teles lhe haverem dito que desconheciam a obra do Carmo Bernardes. Ela não disse que todos no Rio de Janeiro desconheciam. Deve ter havido um mal entendido, pois Gilberto não pode ter dito isso, tenho certeza. Fiquei espantado, de qualquer forma. Que Ivan Junqueira desconheça, não me impressiona, no entanto. A verdade é que Carmo Bernardes é reconhecido também, infelizmente, por poucos. Ainda bem que Maria Lúcia Dal Farra, crítica e professora respeitada, o conhece, aprecia sua obra e a divulga. Isso é que é importante. Que Ivan Junqueira desconheça (e muitos outros com ele), perda dele, não do Carmo.


CARLOS WILLIAN LEITE - Em linhas gerais, qual a avaliação que o senhor faz da literatura goiana, na sua precoce existência, pouco mais de cem anos?

HGNem tão precoce assim, pois que de bem mais de cem anos, já que nasceu ainda no século XVIII, o mesmo século de nosso “descobrimento” por Bartolomeu Bueno da Silva. Mas não se amofine com isso, a ficção brasileira data de um pouco antes de meados do século XIX, portanto, tem, a rigor, um pouco mais que apenas cento e setenta anos. Assim, a ficção brasileira, que já produziu um José de Alencar e um Machado de Assis, tem quase a mesma idade da literatura em Goiás, que já produziu um Félix de Bulhões e um Hugo de Carvalhos Ramos, sem contarmos Bernardo Élis, Afonso Félix de Sousa, José Décio Filho e José J. Veiga, já que são do século XX. Um estado que conta com poetas como Carlos Fernando Magalhães e Yêda Schmaltz ou ficcionistas como Miguel Jorge, Alaor Barbosa e Antônio José de Moura não tem com que se preocupar. Sua literatura vai muito bem, obrigado!


Yêda Schmaltz

FLÁVIO PARANHOS - Como professor de literatura inglesa na universidade, quais suas preferências em sua área de estudo? E quanto à literatura norte-americana dos séculos XX e XXI, quais suas preferências? Conhece o trabalho do contista Raymond Carver?

HGE a poesia dele, claro, além dos contos. Seus Poemas Coligidos saíram em 1996, quase dez anos depois de sua morte, 1988. Conheço não todos, mas muitos de seus livros, como conheço livros de todos os grandes escritores norte-americanos, sem me esquecer nem de um outro Raymond, o Chandler, que nasceu um século antes da morte de Carver e morreu bem antes, em 1959. Seus romances, como Adeus, Minha Querida, A Dama no Lago e O Longo Adeus, são imperdíveis. Sou leitor de Irwing, Hawthorne, Poe, Wharton, James, Lewis, Faulkner (na época do GEN, entre 1963 e 1969, cheguei a fazer conferência sobre ele, numa de nossas reuniões), Steinbeck, Saroyan, McCullers, O’Neill, Tennessee Williams, são tantos. Mais todos os escritores afro-americanos, inclusive os menos conhecidos entre nós, como a contista e romancista Zora Neale Hurston ou a poeta Gwendolyn Brooks. E os poetas? Whitman, Dickinson, Poe, Crane, Marianne Moore (grande influência formal em minha poesia), Pound, Eliot (apesar de naturalizado inglês), assim como escritores mais recentes, como o ficcionista Cormac McCarthy, o poeta Mark Doty, a contista e romancista Annie Proulx, entre os mais recentes. Nem vou falar dos escritores ingleses ou de Shakespeare, especialmente, que comecei a estudar em fins de 1958, obrigação de qualquer escritor na face da terra, ao menos uma vez na vida. Todo poeta tem a obrigação de estudar o grande Bardo inglês.

Minha sorte, ou meu problema, é eu ser professor de literatura inglesa ou de língua inglesa na Faculdade de Letras da UFG e também no Departamento de Letras da UCG, o que me obrigou a uma especialização em literatura da Inglaterra. Mas esse colonialismo vai acabar. Nas duas universidades, já reformulamos os currículos e agora estudamos “Literaturas de Língua Inglesa” e não mais apenas inglesa e norte-americana. Ainda bem, pois isso me levou a fazer um doutorado em literatura irlandesa e descobrir a riquíssima literatura da Irlanda. Atualmente, ando interessado em outras literaturas de língua inglesa, como a do Canadá, onde existe uma Margaret Atwood; da Austrália, onde existe um Patrick White, que já ganhou o prêmio Nobel; da África do Sul, de onde saiu um John Michael Coetzee e uma Nadine Gordman, também premiados com o Nobel; da Nigéria, de onde saiu outro Nobel, Wole Soyinka, mas onde existe ainda um Chinua Achebe ou um Ben Okri. Mas, na verdade, estou mais interessado em outros escritores menos conhecidos ainda, como Musaemura Zimunya, Julius Chingono, John Eppel, Dambudzo Marechera, Chenjerai Hove, Freedom Nyamubaya, Kristina Rungano, alguns dos mais importantes poetas do Zimbábue do período pós-independência. Estou preparando um texto sobre esses poetas, para apresentação no próximo congresso da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) no Rio de Janeiro, no próximo mês de julho. As possibilidades de estudo e de pesquisa sobre esses poetas fora do cânone tradicional são inúmeras.

Acabei de traduzir vários poetas africanos de língua inglesa e dois contos irlandeses, um de Flann O’Brien (foi sobre seus romances que escrevi minha tese de doutorado) e outro de James Stephens, para uma antologia de contos daquele país, organizada pela profa. Dra. Munira Mutran, que foi minha orientadora, e que deve sair pela Humanitas, uma das editoras da USP. O livro já foi aprovado para publicação. Lamentei a morte recente de Muriel Spark, grande escritora. Não tenho acompanhado, infelizmente, os mais recentes lançamentos de Doris Lessing, não nascida, mas criada na antiga Rodésia, hoje Zimbábue. Desconheço os últimos livros de Peter Carey, da Austrália, ou Hanif Kureishi, de origem paquistanesa, mas inglês. Não li o último romance de Kazuo Ishiguro, nascido no Japão, mas inglês por opção. Não estou me exibindo ou, talvez, diria Chaves, o comediante, “sem querer, querendo!”. Sou professor e doutor em literatura, é minha profissão, tenho obrigação de conhecer esses escritores, não posso deixar alunos sem informação ou sem respostas. Literatura, um amigo meu professor, já falecido, costumava dizer, é um poço sem fundo, quanto mais você lê, mais existem coisas a serem lidas e descobertas. Eu tenho muita pena de pessoas que sempre afirmam estar relendo algum clássico, tenho sempre a impressão de que não saem do lugar. Não sou contra releitura dos clássicos. Mas a releitura dos clássicos sem a leitura do novo e atual é inconcebível.



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Raymond Carver


FLÁVIO PARANHOS - Falando em Raymond Carver, lembro-me da brilhante versão de seus contos para o cinema (Short Cuts, de Robert Altman). Qual é maior, o cinema ou a literatura?

HG – Os dois são grandes e nenhum é melhor que o outro. São linguagens e meios diferentes, apenas. Um grande filme é como um grande romance, eleva-nos e emociona-nos da mesma forma. Não acho que exagero ao dizer isso, mesmo sendo cinéfilo de carteirinha há anos, desde a adolescência. Fiz meu primeiro curso sobre cinema com um professor que veio de Belo Horizonte, um padre salesiano ou jesuíta, em 1960, quando tinha quatorze para quinze anos. Não me lembro de seu nome agora. As aulas foram no auditório do Colégio Santo Agostinho, com patrocínio do Ateneu Dom Bosco, onde estudava, se me lembro direito. Foi uma revelação, abriu-me os olhos para o cinema como arte. Eu o via apenas como possibilidade de diversão. Abriu-me os olhos também para os grandes filmes clássicos, que passei a procurar conhecer. Foi quando vi O Encouração Potemkin, de Eisenstein, num antigo cinema de Campinas, o Cine Eldorado. No antigo Casablanca, também descobri o cinema de Akira Kurosawa, quando lá exibiram um festival de cinema japonês. Fiquei maravilhado com Os Sete Samurais e O Trono Manchado de Sangue (que é uma adaptação de Macbeth, de Shakespeare).

Mas, por falar em Short Cuts, por qual razão será, deram o último Oscar para Crash, esse filmezinho repetitivo e pouco inventivo, inclusive o de melhor roteiro original, e não deram Oscar algum para Short Cuts, na época, de onde evidentemente saiu a ideia para Crash?  Quem já assistiu a Short Cuts, sabe de início que a ideia de Crash nasceu do filme de Altman. Mas isso não faz parte de sua pergunta. Digo-lhe apenas que me interesso muito por cinema, tenho muito respeito pelo cinema e digo sempre a meus alunos da UFG, que fazem uma disciplina que ofereço lá todos os anos, “Literatura e Cinema”, que assim como o cinema se alimentou da literatura em seu início, a literatura beneficiou-se enormemente com a invenção do cinema, principalmente em relação às novas possibilidades da narrativa ou dos modos de se criá-la.




Akira Kurosawa

EDIVAL LOURENÇO - Quando e como o senhor começou a se interessar pela Literatura Inglesa, especialmente a produzida na Irlanda?

HG – Meu interesse pela literatura inglesa data do tempo em que comecei a ler livros. Naquela época, década de cinquenta e início da de sessenta, romances ingleses do século dezenove eram muito lidos. Além disso, na década de quarenta e cinquenta, minha geração teve a sorte de poder contar e ler as traduções editadas pela Editora Globo, de Porto Alegre, onde se publicou muito de literatura estrangeira, em ótimas traduções, por grandes escritores brasileiros, assim como de uma coleção da José Olympio, a “Fogo Cruzados” (tenho alguns desses volumes até hoje, datados da década de quarenta, que pertenceram à minha família): Jane Austen, as irmãs Brontë (quem não leu Morro dos Ventos Uivantes na adolescência não viveu uma juventude romântica), Charles Dickens, Thomas Hardy e D. H. Lawrence, principalmente. Na década de cinquenta, também, foram publicados em Portugal, pela editora Atlântida, de Coimbra, vários volumes de uma coleção chamada “Antologia do Conto Moderno” (a edição original era em capa dura, vermelho-vinho, com letras em dourado – depois passaram a fazer edições comuns, com capa em cartolina mesmo), que incluía Steinbeck, Dorothy Parker, Ignazio Silone, Caldwell, Saroyan, Unamuno, Maugham, Faulkner, Woolf, Lawrence, até uma contista alemã de quem nunca li livro algum mais, Ana Seghers (a antologia dos contos dela, que tenho, é de 1954), sobre cujos contos, aliás, escrevi um artigo e publiquei na antiga Folha de Goyaz. Quem nunca leu O Amante de Lady Chatterley escondido, na adolescência, não aprendeu nada sobre sexo. Deles para os outros foi uma questão de tempo e de estudo. Lembro-me de que, quando ainda era estudante do Liceu e passei a freqüentar as reuniões do GEN, levado por Ciro Palmerston, depois me tornando integrante do grupo, Miguel Jorge era apaixonado por Judas, o Obscuro, de Hardy, e emprestava o livro para todo mundo, querendo que todos o lessem. Quase exigia isso. Minha primeira leitura dele foi feita nesse volume, que o Miguel tem até hoje, em sua biblioteca. A convivência no GEN foi outra oportunidade muito proveitosa, pois todos nós líamos muito, discutíamos muito. Tínhamos quase que uma obrigação de ler todas as novidades e quase um livro por semana ou dois. Depois, quando fui fazer o curso de letras, fiz licenciatura em português-inglês. Foi aí que descobri o colonialismo literário, pois o que se considerava e se estudava como literatura inglesa não vinha da Inglaterra, mas da Irlanda: Jonathan Swift, George Bernard Shaw, Oscar Wilde, William Buttler Yeats, James Joyce, Samuel Beckett. Existe uma piada universitária, que diz que a melhor literatura inglesa é escrita na Irlanda. E é mesmo! É verdade.

Depois, fui fazer mestrado na Universidade de Tulsa, no Oklahoma, nos Estados Unidos. Meus professores lá eram quase todos pesquisadores e especialistas em literatura inglesa, principalmente irlandesa, como o Dr. Thomas F. Staley, fundador e, na época, editor da mais importante revista sobre James Joyce no mundo, a James Joyce Quarterly. Com ele fiz um curso só sobre Joyce. Outro professor que tive em Tulsa foi o Dr. Joseph Kestner, especialista em literatura inglesa e européia (que chamam de “continental”, por lá), com quem estudei muito outros romancistas ingleses do século dezenove: Disraeli (sim, isso mesmo, o próprio primeiro ministro da rainha Vitória), Elizabeth Gaskell, George Eliot (de quem já lera, desde o fim da década de cinqüenta, O Moinho à Beira do Floss), Maria Edgeworth e George Moore (esses dois, irlandeses). Além de outros de outros países: russos, italianos, francês e alemães.  Foi lá que li e estudei Evgeny Oneguin, de Pushkin, um romance escrito em versos (lamento que Haroldo de Campos nunca tenha traduzido este romance para o português, é magnífico). Lá em Tulsa fiz minha pesquisa de mestrado e escrevi minha monografia sobre a estrutura dos contos de D. H. Lawrence, sob a orientação do prof. Dr. Donald Hayden, grande especialista em poesia inglesa vitoriana, Shelley, Byron, Keats, Browning e outros.

Agora, fazer doutorado em literatura irlandesa foi uma imposição das circunstâncias. Por ser professor titular de literatura inglesa na UFG e por conhecer, na época, apenas a Dra. Munira Mutran, dentre os professores orientadores disponíveis, na área de literatura de língua inglesa. Ela só orienta teses sobre literatura irlandesa, sua especialidade. Tive uma sorte enorme de poder trabalhar com ela, que me aceitou como orientando, e descobrir mais sobre a Irlanda e seus outros grandes escritores, principalmente esse fantástico e inventivo, grande escritor que é Flann O’Brien, objeto de minha pesquisa. Hoje ando pesquisando, como já respondi ao Flávio, outras literaturas em língua inglesa. Meu poeta de leitura constante, nos dias atuais, é Dambuzo Marechera, de quem comprei três livros: The House of Hunger (contos), Black Sunlight (romance) e Cemetery of Minds (poesia). De Annie Proulx, por causa do filme O Segredo de Brokeback Mountain, tenho na estante, esperando para serem lidos, The Shipping News (romance que ganhou o prêmio Pulitzer), Close Range e Bad Dirt (livros de contos). Além desses, algumas antologias: The Oxford Book of Australian Short Stories, The New Oxford Book of Canadian Short Stories, The Best Australian Short Stories, The Faber Book of Contemporary Australian Short Stories, The Anchor Book of African Short Stories e The Penguin Book of African Poetry. Estão todos na minha biblioteca, quase saltando na minha mão. É muita coisa para um professor só, que ainda tem, por outros compromissos, de tentar ficar a par do que se publica no Brasil e em Portugal. Como não acompanhar a carreira de António Lobo Antunes? É um extraordinário e difícil romancista, muito mais merecedor do Nobel (insisto em dizer sempre: na minha opinião e ninguém precisa concordar com ela, é só mesmo uma opinião, não uma verdade!) do que Saramago, mais comercial e mais fácil.


Jane Austen


FRANCISCO PERNA – Por falar em Irlanda, para o senhor, quem é mais genial, Oscar Wilde ou James Joyce?

HG – Francisco, você não obtém nada com uma pergunta como essa, só uma opinião, nunca uma verdade ou um juízo definitivo e imutável, que todo mundo deve aceitar ou engolir, repito. Opinião pessoal não tem valor cultural, não é uma verdade. O “achismo” não é ciência. Esse tipo de pergunta interessa a quem é preocupado em criar fatos, notícias escandalosas e controversas, que seja dedicado a provocar debates tão insensatos quanto inúteis.  Veja, Wilde e Joyce são ambos grandes escritores, ambos geniais, cada um em seu tempo e por razões completamente diferentes. Não posso menosprezar um em benefício do outro, não posso valorizar mais um do que o outro. Tudo dependerá da aula que estiver ministrando, se for sobre a literatura gótica, como estou dando aula neste ano de 2006, num curso para meus alunos da Federal, do quarto ano seriado. Aí é Wilde que entra na lista de leitura, com O Retrato de Dorian Gray. Se for sobre o conto moderno, como no curso que ministro neste semestre para o quinto período semestralizado, também na Federal, e para o quarto período, na Católica, é Joyce que vai entrar, com seus contos de Dubliners, e muitos outros contistas. Os dois escritores fazem parte de meu repertório de leituras, são grandes e fundamentais. Só isso interessa.


James Joyce


EDIVAL LOURENÇO - A Dublin de Joyce em Ulisses é um labirinto que se constitui numa espécie de “prisão das almas”. Nada do que está nela contido (personagens, ideias, hábitos, anseios, etc) parece encontrar saída. Há um contexto sócio-cultural de colônia, disputas políticas, injustiça social, degradação familiar, droga (álcool), corrupção, hipocrisia. Goiânia, ou qualquer outra cidade brasileira de porte médio acima, vive em contexto semelhante à de Dublin de Ulisses, em 1904. O Sr. acredita possível o surgimento de um Joyce tupiniquim, que possa traduzir o nosso contexto com tanto vigor, ou a Literatura não tem mais o poder de representação que teve com Joyce e no tempo dele?

HG – E por qual razão estaríamos interessados em um escritor com o vigor irlandês de Joyce? Um Joyce tupiniquin seria uma excrescência. Nós precisamos de escritores brasileiros, com vigor brasileiro e só. O mundo mudou muito no século XX. Acho não haver clima literário, no Brasil, para romances como Grande Sertão: Veredas, O Romance dA Pedra do Reino ou Catatau. Este último, aliás, é propositadamente ilegível e, por isso mesmo, desafiador e importante, como toda a obra do Leminski. Não é por isso que é “Prosa Experimental”? Cada um à sua maneira, Guimarães Rosa, Suassuna e Leminski, respectivamente, tentaram em seus livros um retrato do Brasil. Mas não acho que tivessem em mente repetir ou ser igual a ninguém no mundo, nem mesmo Rosa, que foi inegavelmente influenciado por Joyce, embora gostasse de negar isso. Ter influências não é vergonha ou erro; fazer igual, sim. E eles não fizeram. O que interessa é que tenhamos escritores que, de uma forma ou outra, também exponham nossa cara, como José de Alencar, Machado de Assis e Aluísio de Azevedo fizeram, no século XIX. Qual o tipo de romance que aparecerá na literatura brasileira atual? Não sei. Espero que seja bom. Um Bernardo Carvalho, um Fernando Bonassi, um Cristovão Tezza, um Marcelo Mirisola, um Marçal Aquino, e tantos outros escrevendo atualmente, não me parecem interessados em criar romances com tão amplo escopo quanto o Ulisses, de Joyce. São escritores de naipe ou clave diferenciada, mais miniaturistas, mais detalhistas quanto à contemporaneidade, à violência urbana, à desintegração da sociedade em seus vários níveis, mais pós-modernos. Hoje, menos que no século XX, para seguirmos o raciocínio de Walter Benjamin, há menor possibilidade ainda para a ação épica, para a construção de uma narrativa que dê conta de um painel amplo de nossos problemas. Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, tentou isso antes, não foi? Acho que Sargento Getúlio é mais pertinente, sob este aspecto.

Acho que precisamos de bons escritores, bons romancistas, só isso. Que sejam brasileiros como quiserem, que retratem nossa cara tal como somos, que nos surpreendam com sua criatividade e originalidade. E basta. Sobretudo, que não sejam novos Joyces, novos Prousts, novos sei lá o quê. Espero que sejam apenas eles mesmo. E muito, mas muito bons.



Walter Benjamin

EDIVAL LOURENÇO – Uma das técnicas mais notáveis em Joyce é o monólogo interior, usado principalmente no discurso de Molly Bloom, em Ulisses. Essa técnica narrativa, Joyce buscou em um certo Édoudard Dujardin (escritor do século 18), que, aliás, é um ilustre desconhecido. O senhor concorda com Ralph Waldo Emerson que “nossas melhores ideias são dos outros?”



HG – Desconhecido para quem não leu nenhuma das duas traduções e edições brasileiras (além da portuguesa), a última pela Editora Brejo, em tradução de Hilda Pedrollo. A primeira (pelo menos, que eu conheço) saiu com o título de A Canção dos Loureiros, em tradução de Elide Valarini, pela Editora Globo. Eu o li pela primeira vez em inglês, em 1981, na tradução de Stuart Gilbert, quando fazia o Mestrado em Tulsa, no Oklahoma, Estados Unidos. Acho que o problema não é o Monólogo Interior (Monologue Intérieur, em francês), o discurso de um(a) personagem posto(a) em cena e que tem como objetivo introduzir o leitor diretamente na vida interior desse(a) personagem, sem que o autor intervenha com explicações ou comentários. O que quer dizer que é um discurso sem interlocutor, sem quem o escute. Ou em que o emissor é seu próprio interlocutor. Ainda, quanto à forma, realiza-se através do uso de frases diretas, reduzidas ao mínimo de sintaxe. Essa é a definição clássica de monólogo interior, dada pelo próprio Dujardin. Mas é preciso distinguir o que Joyce fez, que foi mais “Fluxo de Consciência” (Stream of Consciousness, em inglês), no monólogo de Mary Bloom. O monólogo interior é mais organizado e lógico, enquanto o fluxo de consciência, que é uma extensão do monólogo interior, é menos organizado e lógico, com sintaxe praticamente inexistente, pela consciência do personagem, que não fala para si mesma, apenas pensa, deixa sua consciência fluir, sem nexos lógicos, valendo-se apenas de nexos emocionais ou psíquicos. Há teóricos que não vêm diferença entre um e outro. Outros, mais minuciosos e detalhistas, separam as duas técnicas. Eu sigo esses últimos. Monólogo interior e fluxo de consciência são técnicas distintas e o segundo é um avanço sobre o primeiro, sendo de uso mais difícil e complexo. Do primeiro, historicamente, Dujardin fez uso inicial. Joyce reconheceu isso, também é verdade. Mas, se você ler Os Loureiros Estão Cortados, em pouquíssimos momentos e de forma bem primária a corrente de consciência aparece. O que predomina é o “monólogo interior”. O problema é que já em Dubliners e em O Retrato do Artista Quando Jovem essa técnica do monólogo interior aparece, assim como aparece, de certa forma, em Flaubert, através do uso do “discurso indireto livre”, também, de maneira insipiente, tateante, em Doistoiévski  e Proust, por exemplo, sem ter nada a ver com Dujardin. Joyce, muito mais que reconhecer um processo anteriormente utilizado por outro escritor, fez uma homenagem a alguém cuja lembrança quase desaparecera. Dujardin, já velho (nasceu em 1861 e morreu em 1949), teve sua fama reconstruída e refeita por Joyce.  Depois que virou celebridade, graças ao escritor irlandês, passou a fazer conferências sobre o assunto, chegando a publicar um livro crítico-teórico, resultado dessas conferências, que chamou de O Monólogo Interior, publicado em 1931, em que fala muito mais da técnica de Joyce do que da dele, que era incipiente e canhestra. Na verdade, estamos diante de um caso de criação do antecedente. Joyce foi honesto e extremamente gentil ao dizer a Valéry Larbaud, que divulgou a notícia, de ter tirado sua técnica, muitos anos depois de ter lido o livro de Dujardin, de Os Loureiros Estão Cortados. Ele nem precisava reconhecer que apreendera a técnica do monólogo interior com Dujardin, pois na verdade foi ele, Joyce, a fazer uso consciente e definitivo da técnica, transformando-a, ampliando-a, dando-lhe o aspecto definitivo do fluxo ou corrente de consciência. Foi com Joyce, e não com Dujardin, que outros escritores, como Virginia Woolf e Faulkner, aprenderam-na. A técnica, tal como usada por Joyce, é muito mais complexa e rica do que a insipiência do tratamento dado a ela por Dujardin. Basta que você leia o livro e vai comprovar isso. É um livro interessante, mas insignificante, perto de Ulisses, tecnicamente falando. Às vezes, na literatura (e nas outras artes também), isto acontece, alguém tem uma ideia, mas ela é melhorada, ampliada e usada por outro, de mais talento, com muito mais eficácia e precisão. Quem pode garantir, por exemplo, que Picasso não copiou Bracque, ou vice-versa, quanto ao Cubismo? Ambos juraram, por toda a vida, desconhecer o trabalho um do outro. A historiografia consigna que ambos criaram o Cubismo.

Na verdade, Joyce nem precisava ter dito o que disse. Se tivesse sido desonesto, ninguém, até hoje, falaria tanto sobre Dujardin. Ele foi honesto e até hoje existe gente que quer diminuir ou desqualificar Joyce, dizendo que ele tirou sua ideia da técnica do fluxo ou corrente de consciência do uso do monólogo interior por Édouard Dujardin. Esta sim, é que é uma discussão fossilizada e inútil, condenar um artista por ter sido honesto e digno.

Agora, ao citar o romântico norte-americano, do século XIX, Emerson, você tenta desqualificar o também norte-americano, mas modernista, Harold Bloom, que teorizou a “angústia da influência” e utilizou-a na teoria, na crítica e na historiografia literária. Você está tentando, num gesto kenósico defensivo (a palavra é da teoria do Bloom) de recriação de uma antecedência (no caso, mais remota ainda) que desqualificaria Harold Bloom muito mais. Cá entre nós, a frase de Emerson é uma “verité de La Palisse” ou “palissade”, uma dessas verdades enunciadas com pompa e circunstância, mas que apenas repetem o óbvio. Dizer que “nossas melhores ideias são dos outros” é repetir, com outras palavras, uma velhíssima expressão: “Nada de novo sob o sol, depois da Bíblia.” E isso sempre foi demonstração de poder e de desqualificação de ideias novas, como se só o passado e o antigo contivessem verdade ou fossem merecedores de respeito. Quem gosta dessas ideias, quer se manter no poder e não aceita o novo e o transformador. Sou a favor da utilização de todas as boas ideias, desde que de maneira criativa. Não vejo problema em um escritor ser influenciado por outro. Recomendo apenas a busca de influência de escritor realmente bom e grande. E volto a repetir o que disse numa outra entrevista, há algum tempo, quem é influenciado por escritor menor não tem futuro literário.



Édouard Dujardin

EDIVAL LOURENÇO - Em seu poema “Auto-retrato” (Lugar Comum e Outros Poemas - 2005) há a seguinte estrofe: “Se já escolhi caminhos errados,/sempre sei aonde não quero ir;/ prefiro evitar amigos a construir/adeptos – sou muito constante/quando trato de ódio; vulnerável, /quando acho que o que é o amor/perdura.” José Régio em seu conhecido “Cântico Negro” (Poemas de Deus e do Diabo – 1925) diz: “Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,/ Ninguém me peça definições!/ Ninguém me diga: ‘vem por aqui’!/ A minha vida é um vendaval que se soltou,/ É uma onda que se alevantou,/ É um átomo a mais que se animou.../ Não sei por onde vou,/ Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!” Na opinião do senhor este ponto de contato, este diálogo estabelecido entre os dois textos de épocas diferentes, constitui uma sedimentação cultural ou a expansão de um sentimento que é recorrente à humanidade?

HG – As duas coisas, acho. Eu uso muito, em minha poesia, esse jogo intertextual com os autores de minha preferência. Meu livro Fábula Fingida, de 1985, é todo construído sobre a intertextualidade, isso que você chama de diálogo entre dois textos de épocas distintas e poetas diversos. Pois José Régio está incluído entre meus poetas favoritos. Já ministrei muita aula usando especialmente este poema dele. Depois, o imaginário coletivo sempre guarda algumas coisas dos grandes poetas. Por exemplo: “Ora, direis, ouvir estrelas!”, “Escarra nesta boca que te beija!”, “O poeta é um fingidor!” ou “Vou-me embora pra Pasárgada!”. Mesmo quem nunca leu, respectivamente Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa ou Manuel Bandeira reconhece, usa, cita, parafraseia estas frases ou versos. A mesma coisa com os versos “Não sei para onde vou/Sei que não vou por aí!”, do nosso grande José Régio. O diálogo ou o jogo intertextual com eles, em meu poema “Auto-retrato”, foi proposital. Há um outro, com Drummond, por causa do título de um dos livros dele, Fazendeiro do Ar. Em meu poema “Fazendas”, do mesmo Lugar Comum, digo que “Minhas fazendas nem estavam/ no ar”. Outro exemplo, agora de diálogo com Casemiro de Abreu, poeta do Segundo Romantismo: meu poema “Deus” faz uso consciente até do título do poema dele, e ainda intertextualiza versos dele “Eu me lembro! Eu me lembro! – Era Pequeno”, que transformei em “Sim, eu me lembro,/ pois um dia também/ já fui pequeno”, em que o “sim” inicial e o “também” do final do segundo verso claramente remetem o leitor ao poema de Casemiro de Abreu, marcando uma repetição (sim) e uma referência proposital, posterior (também). Na segunda estrofe do poema, só a palavra “bramia” é suficiente para fazer o leitor se lembrar da expressão “o mar bramia”, do poeta romântico. E assim, da mesma forma, em vários outros trechos de poemas meus.

Não tenho problema em dialogar com bons poetas. Não dialogo com maus poetas, aqueles que não fazem parte do repertório de minhas preferências O que é preciso notar, no entanto, é que não tenho linguagem nem estilo parecido com os deles. Mantenho, ao longo dos anos em que tenho sido poeta e professor, constante e perene diálogo com tais poetas, seja através de minha produção poética e de minhas aulas, seja através de minhas leituras não vinculadas a aulas. Meu processo de escrita envolve isso também. Daí eu ter concordado com você desde o início de minha resposta, pois acho que sim, as duas coisas acontecem, uma sedimentação cultural e também a expansão de um sentimento que é recorrente, se você quer dizer com isso que guardamos na memória e assimilamos, mais emocional do que racionalmente, versos, frases, momentos da criação de grandes artistas, momentos esses capazes de nos emocionar tanto, a ponto de não mais nos livrarmos deles. Creio que é exatamente isso. E posso lhe garantir que esse diálogo ou esse jogo intertextual estará sempre presente em minha poesia. Já esteve até na prosa. Todo o conto “O amante de Londres”, do livro de mesmo nome, faz um jogo intertextual com sonetos de Shakespeare. No título de meu livro A feia da tarde e outros contos esse jogo acontece também, por causa do famoso romance de Joseph Kessel, A Bela da Tarde. Em meu penúltimo livro de poesia, A Ordem da Inscrição, de 2004, fui além da mera intertextualidade, cheguei mesmo a incorporar, verbatim, trechos inteiros de Raniero de’ Calzabigi, no original italiano e em itálico, para deixar bem claro ao leitor que aquilo era mais que uma citação, era um incorporação. Isso sem mencionar, no mesmo livro, o diálogo estabelecido também com Rainer Maria Rilke, quer com Elegias de Duíno, quer com Sonetos a Orfeu.

Finalmente, nunca pretendi esconder meus conhecimentos, minhas leituras, minhas preferências, minhas influências. Minha poesia reflete isso claramente, pois nunca escondi meu jogo intertextual. Sabe o que me angustia mais em relação a isso? É reler, por exemplo, Fábula fingida e ser incapaz de me lembrar ou de identificar a origem da intertextualidade ou do diálogo, pelas tantas vezes que eles acontecem nesse livro. Às vezes custo a me lembrar de onde tal pequeno trecho saiu, quais transformações ou alterações incluí nele. Acho que esse diálogo enriquece minha poesia e é salutar para eu saber, muito conscientemente, que não sou o primeiro, que muitos outros chegaram primeiro do que eu, que não estou só, que existem muitos e muitos outros poetas por aí. Todo poeta, ao escrever, deveria ao menos pensar que, ao mesmo tempo em que ele escreve seu poema, milhares de outros poetas estão, em todo o mundo, a fazer a mesma coisa, no mesmo instante. A maioria dos poetas, dos escritores em geral, de Goiás, que conheço, escreve como se tivesse consciência de que só eles existem no mundo. Coitados, você não concorda comigo? Ter esses poetas uma tão grandiosa visão de si mesmos? Escritores como Bernardo Elis, J. J. Veiga e Eli Brasiliense, entre os que já morreram, não agiam assim, sabiam bem da existência da literatura anterior à eles, que estudaram. Dentre os vivos, Alaor Barbosa, Carlos Fernando Magalhães, Antônio José de Moura, Miguel Jorge, não agem assim. Todos têm a maior consciência do que se faz na literatura brasileira e estrangeira hoje, por isso mesmo são bons e eu os respeito.



Divulgação


EDIVAL LOURENÇO - O uso extraordinariamente criativo da linguagem, proporcionando o surgimento de novas realidades, a introdução de arquétipos, fazendo o texto ecoar o processo civilizatório percorrido pela humanidade são alguns pontos em comum de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e Ulisses de James Joyce. Rosa teria recebido influência direta ou indireta do escritor irlandês, ou tudo não passa de mera coincidência?

HG – É claro que a influência existiu. Afinal, Guimarães Rosa começou a publicar muito tempo depois de Joyce. Rosa negava e até não gostava de que se referissem a isso, à influência sofrida de Joyce. Mas ela é inegável. Rosa, afinal, sabia muito bem inglês e várias outras línguas. O que ele parece não ter entendido é que essa influência foi salutar e benéfica, não um desdouro. O que Guimarães Rosa fez com a língua portuguesa é similar, mas não igual ao que Joyce fez com o inglês. Além do mais, a inventividade dele não é igual, embora também similar, à de Joyce. Rosa já havia lido Joyce antes de escrever Sagarana, mas a influência maior do escritor irlandês foi sobre Grande Sertão: Veredas, evidentemente. Isso não desmerece Guimarães Rosa em hipótese alguma e nem é um problema. Será que ninguém nunca notou que Dom Casmurro é o avesso de Madame Bovary, que o livro do brasileiro é o reverso do livro de Flaubert, isto é, que Dom Casmurro é uma clara e evidente, incontestável reescritura de Madame Bovary, do ponto de vista do marido traído? E olha que eu não acho ter havido adultério. Só os cegos não enxergariam isso. Além do mais, tudo não é apenas um disfarce? Machado não fez uso declarado de Otelo, de Shakespeare, em seu romance, para disfarçar aquele uso mais sutil, mas de mais forte influência, de Flaubert?

Volto a insistir: influência nunca foi problema. Copiar e repetir, sim. Só se preocupa com a influência quem tem consciência de estar apenas repetindo ou copiando técnicas e procedimentos alheios.


João Guimarães Rosa


CARLOS WILLIAN LEITE - Quando as vanguardas brasileiras se esgarçaram, falou-se muito em pós-modernismo e cultura de assimilação. Hoje, décadas depois, é possível dizer precisamente, em qual período estamos? É possível contextualizar a inércia dos anos 90 com a globalização linguística de agora?

HG – Engraçado seu uso do verbo “esgarçar”, como se quisesse, já na pergunta, diminuir a importância das Vanguardas. Desta forma, sua pergunta é preconceituosa. Você é ainda jovem. Quando as vanguardas aconteceram – Concretismo, Práxis, Poema Processo – você nem tinha nascido. Você não tem ideia do que foi viver os anos pouco anteriores e, depois, os anos da ditadura de 64. Você não pode falar das Vanguardas assim não. Concretismo, Práxis e Poema Processo, com todos os seus erros e seus defeitos, com todos os desvios, foram fundamentais para o desenvolvimento da linguagem poética brasileira da atualidade. Sem as Vanguardas das décadas de cinquenta e sessenta, você não existiria hoje. Foram as Vanguardas que nos libertaram da prisão da forma a que a insossa Geração de 45 nos havia condenado. Além de nos terem libertado também de uma poesia sobre o “eu”, o “meu”, o “mim” e o “eu mesmo”, a estética do próprio umbigo – infelizmente, ainda muito praticada entre nós. Com exceção de João Cabral de Melo Neto, não havia nada de muito interessante. Bandeira já não produzia nada de novo, Drummond demorou uma década para se recuperar e cair no memorialismo de Boitempo e Boitempo II. Pois as Vanguardas nos salvaram desse mesmismo e dessa repetitividade. O Concretismo influenciou enormemente a propaganda, as artes plásticas, o design. Práxis trouxe uma nova concepção de livro, de criação e de consciência poética. O Poema Processo levou a liberdade da palavra a ainda mais amplas possibilidades. Exageraram, erram de vez em quando? Sim, mas você não pode fazer pouco caso de escritores, livros, posturas e tendências que ampliaram nossos horizontes poéticos, nossa paisagem sonora, nossa capacidade de visualização além do verso como apenas ou simples unidade rítmico linear. As Vanguardas descobriram novos horizontes criativos, ao insistirem na qualidade verbi-voco-visual da poesia, que nos enriqueceu enormemente e ampliou nossas possibilidades.

Quando comecei na literatura, recomendavam os nossos escritores mais velhos (e Domingos Félix de Sousa era o principal porta-voz dessa corrente, junto com Gilberto Mendonça Teles), que devíamos estudar os clássicos, buscar o aprendizado das técnicas do verso metrificado. Enfim, “repetir, para aprender”. Mas pobremente se esqueciam eles de que, naquela época, no jornal Correio da Manhã, Mário Faustino, com sua página de poesia, dizia isso, mas acrescentava o que a nós interessava muito mais: “criar, para inovar”. E mais, diziam-nos por aqui que devíamos ser “regionalistas”. Já imaginou? A diferença, e o que nos salvou, é que víamos o futuro, não queríamos caminhar para o passado. Nós estudávamos e muito. O GEN, por exemplo, tinha, como um de seus princípios, o estudo diário da literatura. Quase toda semana (pois nos reuníamos semanalmente), um de nós se encarregava de fazer uma pesquisa e uma palestra sobre um assunto literário qualquer, para os membros do grupo. Fizemos inúmeros ciclos de estudos, sobre o conto, sobre tendências da poesia, sobre estilos históricos, sobre tipos de romance, etc. Ninguém nos mandou estudar. Por conta própria fizemos isso. E se melhoramos, se alguns dentre os vários nomes que pertenceram ao grupo, perseveraram e adquiriram respeitabilidade como escritores, foi por nossa conta mesmo, não de sugestão de ninguém. E não foi só escritores que pertenceram ao GEN, dentre os que não pertenceram, mas foram contemporâneos, alguns são hoje escritores de respeito também.

Pois as Vanguardas, que você parece menosprezar agora, ampliaram tudo isso, salvaram-nos do regionalismo e da poesia da Geração 45, mergulhando-nos fundo num mundo novo e frenético de criatividade nova. Devo reconhecer que a fundação de Brasília deu novo impulso ao nosso estado e a todo o Centro Oeste. Acostumados à Goiânia pequena e interiorana daquele tempo, nossos velhos escritores e homens de letras não vislumbravam maiores possibilidades nem para si próprios, embora sonhassem com a glória nacional. Alguns conseguiram alguma glória. Nós, de outro tempo e com diferente predisposição, nunca aceitamos essa forma de controle que queriam exercer sobre nós. Gostem ou não da ideia, foi o GEN que abriu caminhos. Juntos com alguns outros escritores, que nunca fizeram parte dele, é bem verdade, mas que comungavam com o GEN alguns ideais similares ou concorrentes, como Carlos Fernando Magalhães, Antônio José de Moura e Alaor Barbosa. E não interessa o que digam, nós, dessa geração, viemos primeiro. Líamos jornais do Rio e de São Paulo diariamente; comprávamos O Estado de São Paulo por causa de seu “Suplemento Literário” dominical (que não existe mais, com a mesma qualidade daquele tempo, hoje); estávamos (e procurávamos ficar) a par de tudo o que se fazia e se escrevia no Brasil. Goiânia cresceu quando nós crescíamos, quando nossas duas maiores universidades, a Católica e a Federal, foram fundadas. Foi nossa geração que colocou Goiás em sintonia de atualidade em relação ao que se fazia no resto do país. Antes de nós isso não acontecia, tudo chegava aqui com muito atraso. Gilberto Mendonça Teles estreou como neo-parnasiano, com dois livros que denunciam isso irrefutavelmente, Alvorada e Estrela d’Alva, com direito a uma “Ode à Árvore” e tudo, na década de cinquenta, com o Concretismo já em andamento e provocando mudanças. Não estou dizendo isso como se fosse culpa dele. Pelo contrário, Gilberto construiu uma carreira respeitável e evoluiu consideravelmente depois desse início neo-parnasiano. Nós tivemos mais sorte em nosso início. Por causa das Vanguardas, fomos mergulhadas num universo mais dinâmico e criativo, mais voltado para o futuro, para a busca do novo e do diferente.
Se as Vanguardas erraram? Sim, erraram, exageraram, caíram na repetição, como qualquer tendência, em qualquer época e lugar. Isso não invalida a existência dela. A afirmação de Ferreira Gullar de que as Vanguardas não valeram nada é errada, sinto muito ter de dizer isso. Ele é muito bom poeta, mas nasceu no Neo-concretismo e nele escreveu um grande livro, A Luta Corporal. Pessoalmente, acho este livro mais importante do que Poema Sujo. Precisamos reavaliar as Vanguardas, é claro, mas não fazer tabula rasa de todas as suas conquistas e dizer que não valeram a pena. Ou, se isso for feito, que se diga ao menos a razão. Até hoje nunca ouvi razões convincentes o suficiente para me fazer mudar minha opinião favorável às Vanguardas. Só afirmações contundentes, que carecem de análise e confirmação através da análise.

Mas você ainda fala de um “marasmo dos anos 90”? Não vejo os anos noventa como de marasmo. Como, se foram os anos que viram a consolidação de um Francisco Alvim, de um Alexei Bueno, um Carpinejar e um Paulo Henriques Brito? Não, definitivamente, os anos noventa não foram de marasmo, e olha que estou me referindo só à poesia. E se lhe indagar de Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, e tantos outros prosadores? Os anos noventa, em Goiás, viram o melhor possível de Miguel Jorge, Antônio José de Moura, Yêda Schmaltz, Carlos Fernando Magalhães e Alaor Barbosa, que publicou o romance Memórias do Nego-Dado Bertolino D’Abadia em 1999. Não, definitivamente os anos noventa não foram de marasmo. Releia o que foi publicado no período e veja se não tenho razão.

Agora, o que vem a ser “globalização linguística”? Não sei o que é isso. Seria, por acaso, mundialização linguística. Porque mundialização é uma coisa, globalização, atrelada às grandes corporações econômico-industriais, não tem a ver com linguística. O que é isso, um novo conceito linguístico? Desconheço, se for. Se você se refere a algo como o domínio de uma linguagem (a do computador, por exemplo) ou de uma língua (o inglês) sobre as outras, então você está falando de mundialização, não de globalização. Seria a possibilidade de que uma só língua esteja ganhando primazia sobre as outras? Isso nunca vai acontecer, não até que a identidade de um povo – suas emoções e paixões – seja marcada pela língua que fala, e isso é imutável. Não se a melhor língua para o comércio for a do freguês ou comprador, como insistem aos industriais e produtores japoneses, derrotando os norte-americanos na conquista do mercado consumidor.

Para complicar nosso problema, sua pergunta faz referência ao Pós-Moderno e pós-modernismo. Talvez você não saiba que a expressão “pós-modernismo” tem exatamente setenta e dois anos, pois foi cunhada por Federico de Onis (crítico literário e antologista espanhol, catalão, mais exatamente), em 1934, para expressar uma reação aos experimentos modernistas (portanto, de nascença, uma posição retroativa, passadista e anti-revolucionária). Posteriormente, em 1947, o historiador inglês Arnold Toynbee usou-a para se referir ao período que viria depois do modernismo na história do mundo. Em 1959, Harry Levine transformou-a em expressão pejorativa, para descrever a decadência que aconteceu com as consequências do modernismo. Na década de sessenta, a expressão passou a ser usada em sentido de aprovação a uma nova sensibilidade, em referência a atitudes que, nos anos posteriores à Segunda Grande Guerra, rompeu com as técnicas e convenções do modernismo, sem, no entanto, retomar as posições realistas e pré-modernistas. A partir dos anos setenta, a expressão passou a ser usada para se referir à condição humana geral, depois da dissolução da hegemonia burguesa no capitalismo tardio e ao desenvolvimento da cultura de massa. Quem melhor escreveu e continua escrevendo sobre este último significado da expressão é a canadense Linda Hutcheon. Ao menos, na minha opinião. Tais informações você encontra nos críticos, historiadores e teóricos do assunto. Existem vários.

A qual desses pós-modernismos você se refere? Se entendi o que quis perguntar, você parece se referir a esse último. Mas parece querer entender a codificação cultural da pós-modernidade como uma construção (ou seria des-construção?) sócio-histórica. Será? Tem certeza? Por quê? Isso você não falou. Preferiu falar na inércia dos anos noventa ou a partir dessa perspectiva. Ora, seria mais lucrativo se abordássemos o problema do ponto do vista do conceito literário do pós-modernismo como uma tendência que evita o simbolismo, promove a indeterminação da linguagem ou no uso da linguagem, busca propositadamente a fragmentação, colocando-se contra toda e qualquer reconciliação, mais preocupado que está com a ironia do que com a catarse. Sem nos esquecermos de que esse pós-modernismo é também auto-reflexivo e pluralista, preferindo os gêneros híbridos, os discursos marginais, privilegiando a intertextualidade, as variações topográficas que levam à fragmentação visual e física da obra, da página, da palavra. Enfim, uma tendência que celebra a paródia, o jogo, o pastiche, o anti-mito. Acima de tudo, uma tendência que não aceita nenhuma noção de textualidade que promova a possessão e o gênio, questionando a unificação de vozes, por ser anti-autoria.
Outra coisa. Você terá que concordar, depois de tudo o que foi dito, que um poeta que se auto-denomine “ícone de uma geração” já pulou fora da pós-modernidade, por erro indevido e imperdoável. Então, entendido o pós-modernismo literário da forma como resumi acima, vê-se que ele é avesso também às classificações, por serem elas desnecessárias. O mundo mutante e dinâmico do pós-modernismo literário não se enquadra em classificações, pois todas elas envelhecem e perdem eficácia no momento mesmo em que são feitas. Acho que estamos em pleno domínio dessa tendência. Somos todos pós-modernistas ao nos recusarmos a uma classificação, ao resistirmos a um enquadramento, ao nos atirarmos à conquista de novas linguagens, ao ousarmos novas técnicas e sermos, inclusive, contraditórios e desrespeitosos. O que é preciso é saber o que vamos fazer com toda essa possibilidade de liberdade, transformação e ousadia. A única coisa que deve prevalecer na literatura e em todas as outras artes é a qualidade. É esse o padrão. Não saberia contextualizar tudo isso de outra forma.



Arnold Toynbee



EDIVAL LOURENÇO - No primeiro quartel do século passado, a Literatura latino-americana de língua portuguesa (brasileira) importou o que havia de mais novidade nas vanguardas europeias e fez o movimento modernista de 22. A Literatura latino-americana de língua espanhola fez o movimento inverso. Foi buscar subsídios no chamado Século de Ouro (séc. 17), nas obras de Francisco Quevedo, Calderon de la Barca, Lope de Vega, Luís de Góngora, etc. Quando veio o boom da Literatura latino-americana, ele só chegou para o pessoal de língua espanhola, com vários autores sendo laureados com o Nobel e muitos até supostamente injustiçados por não o terem ganhado. Será que a nossa Literatura fez uma opção equivocada ou é a nossa vez que ainda não chegou?

HG – Como não sou especialista em literatura hispano-americana, posso lhe dizer apenas que o modernismo hispano-americano, que começou em Cuba, com José Marti; no México, com Manuel Gutiérrez Nájera; e na Argentina, com Olegario Andrade e Rafael Obligado, deve sua influência ao romantismo e seus desenvolvimentos, sendo influenciado, em seu início, pelo parnasianismo e por Góngora, é verdade, mas só esse poeta barroco, que eu saiba. Nesse período, final do século dezenove, o movimento visava o verso de intrincada elaboração (tal como foram os versos de Góngora), imagens brilhantes, sendo influenciado, principalmente, pelas artes plásticas, que os poetas tomavam como modelo. Com Ruben Darío, nicaraguense que se mudou para a Espanha e lá viveu até próximo de sua morte (morreu na Nicarágua, para onde retornou), e que publicou o primeiro livro realmente modernista em língua espanhola, Azul, em 1888, o modernismo espanhol e hispano-americano sofreu influência do parnasianismo e, ainda, do simbolismo (sobretudo o ideal da musicalidade “acima de tudo”, tal como preconizada por Verlaine) franceses e de Edgar Allan Poe, além de uma evidente influência do verso livre do norte-americano Walt Whitman. Não sei de onde vem esse barroquismo a que você se refere. De Calderón de la Barca e Lope de Veja, menos ainda me parece ele ter vindo. De Góngora, ainda vai, mais essa influência desapareceu com Ruben Darío, Nicolás Gullién (em sua busca de ritmos e vocabulário afro-caribenhos) e Borges, em que não vejo nenhum neo-barroquismo. Menos ainda em Gabriela Mistral, do Chile, a primeira latino-americana a ganhar o Nobel, em 1945, portanto, muito antes do boom do romance hispano-americano do realismo-mágico dos anos sessenta. Também não vejo esse neo-barroquismo no peruano César Vallejo, cujo Trilce é exemplar livro de poesia. Na ficção, talvez, com Astúrias e Gabriel Garcia Marques, como antes com Jorge Icaza, em Huasipungo (que é de 1934), Alejo Carpentier (e seu realismo-mágico de O Reino deste Mundo, de 1948), possivelmente Juan Rulfo e seu Pedro Pájamo (que é de 1955, mas fruto de uma longa gestação, começada anos antes) e Horácio Quiroga, tenha havido um certo gosto neo-barroco pelos excessos da linguagem narrativa e pelo jogo dos contrastes. Na poesia não, não vejo Jorge Luis Borges (principalmente por seu gosto orientalista) e Pablo Neruda como neo-barrocos, a despeito do gosto nerudiano pelo excesso, pelo falar demais.

Agora, que uma possível influência de Góngora tenha servido, décadas depois (o modernismo hispano-americano desapareceu por volta de 1914, para dar lugar a uma literatura voltada para os aspectos sócio-políticos da região, sendo neo-realista de fatura e perspectiva), para influenciar o boom da ficção hispano-americana, acho difícil de imaginar e aceitar. Uma coisa não tem a ver com a outra, acredito. O Nobel atribuído a Miguel Angel Astúrias em 1966 premiou muito mais um autor político e engajado do que necessariamente o escritor, embora ele seja muito bom. Os prêmios posteriores a Garcia Marques e Octavio Paz não têm nada a ver com possível escolha do barroco como influência pré-moderna.

As literaturas hispano-americanas e brasileiras têm origem diversa e desenvolvimento paralelo, mas diferente. Não somos tão conhecidos, escritores de língua portuguesa, tanto quanto os de língua espanhola, pelo fato de nossa língua não ter, internacionalmente, a mesma influência política que o espanhol. Nem economicamente. Como compro muitos DVDs importados de ópera, posso lhe garantir que trazem legendas em várias línguas, inglês, francês, italiano e, obviamente, em espanhol; até em algumas línguas orientais, mas nunca em português. E por qual razão, não somos, por acaso, um grande público consumidor? Além do mais, nossa experimentação linguística talvez seja mais desconcertante do que aquela praticada por escritores espanhóis e hispano-americanos. Não sei, essa parece uma afirmação temerosa. Em todo o caso, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, que conheço em língua inglesa, são mal traduzidos e soam comuns, ao menos não tão bons como soam e são, em português. As melhores traduções de Rosa, em alemão e italiano, não chegam ao grande público de língua inglesa, daí não terem atingido ou provocado boom nenhum. Ora, até o Nobel, ao considerar e premiar um escritor de língua portuguesa, preferiu Saramago sobre António Lobo Antunes, muito melhor, mais complexo e difícil. Depois, tudo tem a ver com o peso político que tem um país.  Brasil e Argentina, enquanto não superarem seus problemas internos e suas dificuldade de entrada no primeiro mundo, jamais terão força suficiente para ocasionar ou despertar um grande interesse por suas literaturas. Produzem escritores de peso e importantes, reconhecidos pela crítica internacional e respeitados, mas não o suficiente para provocarem boom nenhum. Aliás, esse boom nem durou tanto assim, logo o realismo-mágico esgotou suas possibilidades. Em fins da década de setenta esse boom acabou. E ele foi uma criação principalmente editorial, de interesse econômico editorial. Um fato interessante, a respeito dele, por sinal, é ter saído de outros países latino-americanos sem grande desenvolvimento econômico, mas com grande passado e tradição cultural. Daí que talvez ao Brasil não faça diferença entrar no primeiro mundo, se nossa atividade cultural for socialmente secundária, com pouca penetração popular. Volto a um ponto abordado antes: somos um país que lê pouco e mal. O livro não é nosso objeto cultural mais importante, pois se publicam muitos títulos, mas com pouca tiragem. Não é por isso mesmo que o livro é um objeto caro, muito caro, no Brasil? Não podemos comprar livros por menos de R$ 25,00 hoje em dia. Sabe a razão? As editoras sabem muito bem que a camada social que compra livros no Brasil é sempre a alta e a essa não interessa o preço, vai continuar comprando livros do mesmo jeito, a preço maior ou não. Tome a Editora CosacNaify como exemplo: só faz livros de luxo, encadernados e com sobrecapa, muitíssimo bem feitos e impressos. Seu livros são os mais caros do mercado (juntamente com os da Editora Martins Fontes, caríssimos), mas a editora é um sucesso e vende muito bem. Quem compra seus livros, as classes baixas? Não, não têm como! E não se esqueça, nossos escritores modernistas pós-22 (nenhum deles, é triste ter de reconhecer isso), jamais conseguiram, fora do Brasil, atingir o grau de respeitabilidade conseguido pelo nosso velho e glorioso Machado de Assis. Nosso maior escritor, o mais respeitado em círculos acadêmicos e críticos, em qualquer lugar do mundo, continua sendo Machado de Assis. Outros sucessos, quando ocorrem, são eventuais e pontuais. Nisso, estamos muito aquém dos países hispano-americanos. Não temos, além, de Guimarães Rosa, ninguém para ombrear com Borges, Neruda, Garcia Marques, Quiroga, Paz, Fuentes e tantos outros escritores hispano-americanos. Mas isso não tem nada a ver com influências barrocas pré-modernas, se existiram.


Machado de Assis


CARLOS WILLIAN LEITE- Há quem considere que as vanguardas tinham um propósito construtivo, a ruptura com o passado, e a manutenção de uma autonomia formal para o poema, por exemplo, depois que a versolibrismo criou mais poetas do que poesia. Além desse, existem outros méritos? Qual sua opinião sobre as experiências vanguardistas na literatura?

HG – Da forma como você pergunta, “Há quem considere...”, até parece que somos minoria. Fique certo de uma coisa, somos a maioria, apenas uma minoria cega para a história e para a seriedade com que se deve estudar a literatura é que não reconhece a importância das Vanguardas. Começando pela última de suas perguntas: tenho a melhor opinião possível. A melhor possível, repito, e existem muitos méritos nas Vanguardas, já lhe disse isso na resposta que dei a outra pergunta sua sobre o mesmo tema. As vanguardas nos jogaram na pós-pós-modernidade, como entendem alguns teóricos mais recentes. Mas a reação aos excessos do verso livre não foi conquista ou trunfo ou mesmo triunfo das Vanguardas. Não no Brasil, evidentemente, onde o que lutou contra o que você chama de “versolivrismo” foi a Geração de 45, que tinha como lema uma frase de Ledo Ivo: “Retornemos a Bilac!” O que o Concretismo fez foi decretar o fim do ciclo do verso, para, anos depois, seus praticantes, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, sobretudo depois do II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em Assis, São Paulo, em 1961, reconhecerem sua utilidade, dizendo que dariam o “pulo da onça”, isto é, fariam uma volta estratégica atrás, para recuperarem ao menos a possibilidade de engajamento sócio-político que não tinham ou não praticavam, e que era a grande crítica que se fazia a eles, naqueles tempos de início da década de sessenta. Esta história pode ser lida, se você tiver acesso a ele, no primeiro número de Invenção – Revista de Arte de Vanguarda, lançada pelo grupo concretista no primeiro trimestre de 1962. Nela estão publicados dois ensaios (apresentados naquele congresso), um de Cassiano Ricardo, intitulado “22 e a Poesia de Hoje” (p. 5-50) e outro de Décio Pignatari, “Situação Atual da Poesia no Brasil” (p. 51-70). São fundamentais para a crítica e a historiografia das Vanguardas. Ambos discutem a situação da vanguarda brasileira naquele período, Cassiano Ricardo tentando mostrar que a maioria das “invenções” concretistas já haviam sido realizadas ou inventadas por poetas de 1922. Pignatari tentando mostrar a validade das propostas concretistas e sua atualidade, mas reconhecendo, afinal, embora a contragosto, a necessidade de uma espécie de retorno ao verso, para a poesia dar conta de formulações políticas, sobretudo, do engajamento na luta política que se travava então. Veio o golpe militar e a ditadura de 1964. Tudo não passou mesmo só de um sonho. Na mesma época, Ferreira Gullar mergulhou de corpo e alma na poesia falsamente de cordel, mas, como se exigia naquela época, “engajada”, isto é, de denúncia das injustiças sociais e políticas, que nossa contraditória sociedade vivia e não dava conta de resolver (não dá, até hoje!). Ora, a poesia social engajada do início da década de sessenta – os vários volumes dos Violões de Rua –, produziu até o poema “Operário em Construção”, de Vinícius de Moraes, esquecido momentaneamente de sua poesia machista e às vezes pedófila de enganar mocinhas ávidas por amores românticos inatingíveis. Ainda bem que ele foi grande letrista de música popular, não é?, senão já estaria mais esquecido do que está hoje, como poeta. A experiência de Gullar, de qualquer modo, frustrou-se (esteticamente, era muito ruim) e o próprio poeta reconheceu isso, embora sem voltar a fazer a mesma poesia que antes fazia, como em seu A Luta Corporal (de 1954) ou Poemas – 1959.

Diferentemente do Concretismo, a Poesia Práxis nunca se preocupou com o fim do verso, apenas se propunha a articular o conceito de uma “unidade de composição” que não estivesse presa à ideia da “unidade rítmico linear” (definição tradicional de verso, desde sempre). Práxis propunha a construção da poesia a partir de uma “área de levantamento”, isto é, de uma elaboração poética que fosse o resultado de um levantamento anteriormente feito das contradições sócio-político-culturais existentes na sociedade brasileira. Daí Práxis não ter de dar “pulo de onça” nenhum, já que ela nascia uma poesia politicamente comprometida. Além do mais, Práxis trazia, em sua própria teoria, a ideia da renovação constante como uma das necessidades básicas da própria construção poética, vendo-se com uma inserção a mais no processo desencadeado pela Semana de Arte Moderna de 22, como um prolongamento do modernismo posto em marcha a partir de 22, cujo ciclo não se encerrara e nem se encerraria. Ao contrário, abria novas e amplas possibilidades. Em verdade, não se encerrou, pois nada surgiu ainda, quase um século depois, capaz de pôr um fim a seus postulados.

Se a prática do Poema Processo, posterior ao Concretismo e à Práxis, foi a de, no início, nazistamente botar fogo em livros de grandes escritores, de grandes poetas, como Cabral de Melo Neto, Drummond, até mesmo de Haroldo de Campos e Mário Chamie, que eram mais recentes, passada a euforia inicial, os erros e os contratempos, pode-se reconhecer no Poema Processo uma radicalização positiva quanto à nossa concepção de livro, página da poesia ou do poema, do próprio poema como um objeto visual manipulável, estendendo as conquistas do Concretismo. Além do mais, ao Poema Processo se deve um grande avanço ao design brasileiro, sobretudo na arte da publicidade, nas campanhas visuais de marketing. Nossos cartazes publicitários, nossas propagandas em páginas de revista melhoraram muito, depois do Concretismo e do Poema Processo. Práxis não teve nada a ver com isso porque Práxis nunca se propôs como poesia visual, nunca se preocupou com esse aspecto.

As Vanguardas não devem ser desprezadas, pois foram responsáveis por nossas atualizações, por nos obrigarem a fazer o que propôs um dia Ezra Pound, a ideia do “make it new”, do constante “fazer o novo” – uma obrigação modernista, em qualquer época e lugar. Sem elas, estaríamos à mercê daquilo que Mário Chamie chamou de “novidade velha”. Sem elas, estaríamos sempre à mercê dos diluidores, dos oportunistas que vislumbram alguma boa ideia anterior, para regurgitá-la décadas depois, a partir do conforto da ausência de problemas (já que em sua época, por ser nova, a ideia era perigosa) e da aceitação da ideia já operada ou processada pela sociedade. É fácil ser poeta posterior, não dá trabalho, é só ajuntar as sobras do trabalho alheio e de vanguarda de algum poeta que teve a coragem e a ousadia de antever rumos novos décadas antes. É muito fácil fazer poesia visual, décadas depois, no conforto da aceitação do Concretismo e da respeitabilidade com que ele é visto e estudado hoje. Poesia visual que interessa é aquela feita naquele tempo, quando as condições exigiam coragem para tanto. É muito fácil fazer hoje uma poesia com aliterações, assonâncias e consonâncias, nós de Práxis, aqui em Goiás, fizemos isso demais, até à exaustão, na década de sessenta. Esses repetidores e diluidores chegaram com quase cinquenta anos de atraso. Precisamos nos livrar desses parasitas, essa é que é a verdade, nunca da lembrança ou da importância das Vanguardas.

Lêdo Ivo

FRANCISCO PERNA- Por falar em poetas, qual foi a sua maior emoção, conhecer Jean-Nicholas-Arthur Rimbaud ou Mikhail Iúrievitch Liérmontov?

HG – Ao ler ambos, em épocas diferentes e por razões diferentes. Aliás, de Liérmontov, meu conhecimento é mais da prosa, de seu romance desmontável em contos, chamado Um Herói de Nosso Tempo, que já usei várias vezes em cursos de teoria da narrativa na Católica e na pós-graduação da Federal. Conheço pouco sua poesia romântica e sempre em traduções. Rimbaud é sempre uma revelação e um impacto a cada leitura, desde a primeira. A minha leitura de Uma temporada no inferno e iluminações data da década de sessenta, numa tradução de Ledo Ivo, de que gosto mais do que daquela outra em português, no Brasil, da obra completa do poeta, feita por Ivo Barroso. De Liérmontov, guardo bem a revelação do homem supérfluo – em russo, lishnii cheloviek –, a contrapartida russa ao homme sensible e sua maladie du sciècle ocidentais. Petchórin é um dos grandes personagens românticos do século dezenove, juntamente com o Werther (de Goethe, em verdade, do século dezoito), Atala e René (de Chateaubriand), o Jacopo Ortis (do italiano Ugo Foscolo), o Adolphe (de Benjamin Constant) e Oblomov, (do também russo Gontcharov).

Mas Chico, esta pergunta me parece meio ‘preciosista’. Não estou propositadamente ofendendo-o ou a quem quer que seja. Se estivesse, nem me daria ao trabalho de responder às perguntas todas desta entrevista. Mas pergunta desse tipo me faz apenas exibir conhecimento e não deveria ser essa a proposta da entrevista. Com perguntas intrincadas, às vezes várias em uma só, vocês acabam por me forçar a pôr para fora informação que são do meu dia-a-dia como professor e não de possível vontade minha de me exibir. Essa técnica de embutir, numa só, várias perguntas (e vocês às vezes teorizam antes e perguntam depois, ainda por cima – como se obrigando o entrevistado a concordar com a pergunta), é perigosa para o entrevistado, sobra sempre a sensação de que não se obteve a resposta desejada. Jô Soares faz muito isso com seus entrevistados; Marília Gabriela, também, que faz até pior, pois no meio de uma resposta sendo elaborada, interrompe o entrevistado para lhe fazer uma nova pergunta. Depois, diz: “Mas você não me respondeu!” Ora, como, se foi ela mesma que não deixou? Volto à minha pequena reclamação: não estou me exibindo. Mas acabo sendo obrigado a isso, mesmo sem gostar. Veja: estes livros que acabei de citar, se não dei aulas, já escrevi e publiquei ensaios sobre eles. Em aulas, já trabalhei com Os sofrimentos do jovem Werther, Atala, René, Adolphe. Já escrevi e publiquei sobre As últimas cartas de Jacopo Ortis, de Foscolo, e o Adolphe, de Constant. Só Oblomov eu apenas li, em tradução para o inglês. Aliás, das traduções que conheço do romance/contos de Liérmontov, a primeira foi de Portugal, da coleção “Livros de Bolso Europa-America”. A brasileira, que também tenho, é muito posterior. A melhor que tenho e conheço bem é a de Vladimir Nabokov (que escreveu para ela uma importante “Introdução”) e seu filho Dimitri Nabokov. Hoje, o livro de Liérmontov é encontrável, com notas explicativas e tudo, online. Que diferença do meu tempo de aprendizado! Como é mais fácil hoje e como se lê menos também, infelizmente. Não estou me exibindo, Chico, mas, por outro lado, não pedi que perguntassem. Aliás, tenho muito receio de pessoas que se exibem muito, comentam livros que leem, até sobre a qualidade de suas traduções, mesmo não sabendo língua estrangeira nenhuma.


Mikhail Iúrievitch Liérmontov


EDIVAL LOURENÇO- De um modo geral, os livros que alcançam grandes tiragens e frequentam as listas dos mais vendidos são catapultados por grandes e dispendiosos esforços de marketing e raramente são representativos de uma Literatura digna do nome. O senhor acha que a Literatura de qualidade pega carona nesse processo ou ela (a Literatura de qualidade) é desencorajada ou afugentada para pequenos círculos?

HG – Nem uma coisa, nem outra. Virginia Woolf, um dos maiores nomes da literatura do mundo, em todos os tempos, fez uma ironia enorme disso em seu romance Orlando, na figura do crítico literário que é sempre contra os escritores novos e a favor dos mais antigos. Só que, com a passagem do tempo, ele passa a ser favorável àqueles a quem antes atacava, por causa de seu medo pelos ainda mais jovens, que vão aparecendo. Acho que boa literatura nunca desaparecerá por causa da má literatura. Um caso curioso e, ao mesmo tempo, também irônico, é o de Isadore Ducasse, conde de Lautréamont, e seus Cantos de Maldoror, enormemente criticados na França, quando apareceram, como plágio e outras coisas mais, principalmente a de querer matar a poesia. Pois bem, havia na França, na época, um tal Georges Ohnet, escritor de alguns livros atacados pela crítica como irreais e cheios de lugar comum, mas que caíram no gosto do público e se tornaram muito populares, vendendo bastante. Um caso como o de Paulo Coelho, hoje. Ele gozou de sucesso até seu último livro, La dixième muse, de 1906, se minha informação está correta. Fausto Cunha, em seu livro A Luta Literária, de 1964, num ensaio intitulado “Lautréamont ou o plágio como necessidade”, trata desse episódio, concluindo que o poeta d’Os Cantos de Maldoror “não sairá da literatura da qual foi posto para fora um honestíssimo Mr. Georges Ohnet”. Os detratores de Joyce vão continuar falando mal dele, sem nunca conseguirem expulsá-lo do nicho que ele tem como um dos maiores escritores do mundo em todos os tempos. Alguns grandes escritores são esquecidos por algum tempo, até muitos anos, depois são redescobertos e passam a ocupar o lugar que merecem na galeria dos grandes nomes: Rimbaud e Sousândrade, por exemplo. Alguns grandes escritores são muito massacrados, em benefício de outros, até oficialmente, como foi José de Alencar, em defesa de Gonçalves de Magalhães, poeta oficial de D. Pedro II, a quem Alencar ousara atacar por causa de um poema épico sofrível, A Confederação dos Tamoios. Ora, Alencar publicou O Guarani, também para provar o que deveria ser o que chamou de a “épica dos tempos modernos” e fez história, jamais sendo esquecido pelos leitores brasileiros. Para cada grande escritor existem inúmeros Gonçalves de Magalhães, Paulos Coelhos, Coelhos Netos, Humbertos de Campos, Georges Ohnets, Sidneys Sheldons (que já vendeu mais de trezentos e cinquenta milhões de exemplares de seus livros no mundo inteiro) e assim por diante. O tempo, a melhor resposta sempre, deixa assentar poeira sobre tudo o que é passageiro e não representativo, mas permite manterem-se sempre limpas de poeira as boas obras, as obras significativas de cada período. Os Três Mosqueteiros, de Dumas, sempre lembrados e relidos, provam isso.

Virginia Woolf


FRANCISCO PERNA- Na orelha do seu livro Lugar comum e outros poemas, a respeito do poema requerer eternamente, a professora Albertina Vicentini assim se manifesta: “uma longa ”tetra-tradução” do texto da missa de defuntos, tal como utilizada por Giuseppe Verdi em sua monumental Messa da Requiem,(...). Partindo do texto da missa em latim, inglês, francês e alemão,  chega Heleno Godoy a um texto em português  que, ao mesmo tempo em que venera, destrói a linguagem escrita do réquiem e, ‘vertiginosamente’ recria-o mais visual(...).O que o senhor faz é uma transcriação da missa de defuntos, não é? Toda tradução de poesia não termina sendo um reinvenção da mesma? Como o senhor lida com isso?

HG – Chico, meu texto, o último desse livro, que na verdade se intitula “Requerer Eterno/Eterno Resto/Repouso Eterno/Erguida Rua”, sem nos esquecermos da contrapartida em latim, inglês, francês e alemão, não é apenas transcriação do texto da Missa dos Defuntos, é mais, pois também é uma transposição e uma transmutação. Como está muito bem dito na orelha do livro por Albertina Vicentini, trata-se de uma veneração aliada a uma destruição e visam ambas à recriação “mais visual” que “significadamente” do texto da Missa dos Defuntos, tal como usado por Verdi em seu famoso Requiem. Sempre que ouvia a uma especial gravação dessa música, dentre algumas que tenho dela, em CDs e DVDs, sob a regência de Georg Solti e tendo Joan Sutherland como soprano, entre outros também grandes cantores (e esta gravação é de uma qualidade de som espantosamente boa), tinha nas mãos o texto da missa no original (um livreto impresso que acompanha a gravação) e, lado a lado, acompanhando o texto em latim, as traduções inglesa, francesa e alemã. Ora, ao acompanhar com o olho o texto sendo cantado, dava-me conta de estar a fazer isso nas três outras línguas, ao mesmo tempo. Como não sei alemão, o texto escrito nessa língua parecia não fazer parte desse todo, pois eu apenas imaginava, visualmente, suas possibilidades de significação, não aquilo que o texto significa para quem sabe alemão, mas aquilo que parecia significar, pela semelhança com a escrita em português. O meu poema nasceu daí, dessa transposição – uma destruição amorosa e respeitosa – “quadrilíngue”, do texto original, entre sua escrita em latim e sua escrita em alemão, encaixando as duas outras línguas que conheço e posso entender e ler, para além da mera visualização. A idéia que me ocorreu foi a da possibilidade plurissignificativa de um texto que nascesse dessa possível “quadritradução”, em que, por exemplo, da “lux aeterna” em latim, eu poderia chegar, em português, a “luxo aéreo, lixo eterno” e “luz etérea” e até mesmo à “luz eterna” da significação do original, assim como a inúmeras outras possibilidades que os quatros textos me ofereciam. Mas esse meu texto, mesmo nascido de uma “quadritradução”, é um original meu, não é uma cópia ou mera transcrição. É transcriação sim.

Quanto à tradução de poesia em si (e eu tenho traduzido e publicado alguma poesia, em minha carreira), concordo com Haroldo de Campos: toda boa tradução é uma recriação sonora do original em uma outra língua, é uma transcriação, isto é, como queria o poeta e grande tradutor, uma tradução criativa. Assim, está certa sua pergunta, toda tradução é uma recriação de um original em outra língua. Deve ser, não é? A tradução que somente põe o texto de uma língua em português, por exemplo, não vale a pena. Toda tradução tem a obrigação de ser “transcriativa”, transformadora, inteligente, não mera elucidação de conteúdo do original. A tradução não pode ser apenas do significado, deve ser do significante também. É assim que entendo a tradução e é assim que espero dar conta de trabalhar com ela. Ou procuro trabalhar com ela. Traduzir é uma coisa que me agrada muito, principalmente se imagino que o autor da obra, do poema que estou traduzindo, ficaria feliz com o resultado do que estou escrevendo em português. Estou às voltas, presentemente, com tradução de poetas africanos de língua inglesa, como já disse, e estou descobrindo grandes obras. Quem sabe publico, mais tarde, essas traduções? Mas quero deixar bem claro que não sou profissionalmente um tradutor. Traduzo só do inglês, aquilo que leio e de que gosto, para meu prazer, não para trabalhar profissionalmente com tradução.


Joan Sutherland


EDIVAL LOURENÇO - Para Habermas, fora da vida doméstica, fora da igreja e do governo existe uma “esfera pública”, onde as ideias são examinadas e discutidas. É onde se dá a formação da verdadeira “opinião pública”. No entanto, essa “esfera pública” vem sendo disputada pelo poder da mídia e das grandes corporações, especialmente as multinacionais, através de um marketing avassalador. O senhor acredita que a Internet representaria o surgimento de uma nova “esfera pública”, ou de seu alargamento, onde a reflexão pudesse acontecer com autonomia, com contribuições positivas para a Literatura?

HG – Talvez sim. O Google e o Yahoo alargam consideravelmente nossas perspectivas. O que interessa é o que há de bom nisso tudo. Podemos encontrar coisas fantásticas – desde o muito bom ao muito ruim – na Internet. Por isso, de certa forma, não conseguimos mais viver sem ela. Sem ela, como as pessoas poderiam comprar livros, CDs e DVDs, por exemplo? Como poderiam encontrar respostas rápidas e eficientes para algumas pesquisas, inclusive bibliográficas? O problema é o mau uso da Internet, como o caso de alunos copiando coisas e apresentando-as ao professor como trabalho escolar exigido. Mas estes são poucos e a rede de informações disponível nos ajuda enormemente em muitas coisas boas. Temos livros, revistas, divulgação de resultados de pesquisa, tudo, até mesmo o hipertexto, um grande avanço e uma possibilidade riquíssima. Não sou fechado a nada disso, pelo contrário. E acho que teremos contribuições positivas, através da web, para a literatura. O hipertexto é uma dessas possibilidades. Você nunca pensou nas inúmeras possibilidades da poesia hipertextual? Já existem seus cultores produzindo-a, alguns com resultados até razoáveis. Falta um grande poeta entrar nessa onda. Um Joan Brossa, por exemplo, seria o ideal. Ou alguém com sua capacidade criativa, sua competência e sua qualidade. Ele já modificou nossa compreensão de poesia ao insistir no que chama (e pratica) de poesia visual (que não quer dizer apenas impressa na página). É de 2005 a publicação, no Brasil, pela Amauta e pela Ateliê de seu livro Poesia vista (poesia literária, visual e poemas objeto), em catalão e em português, em tradução de Vanderley Mendonça. Também no ano passado, dele foram publicados Seborrea y otros poemas, da mesma forma, poesia literária e visual, em espanhol e em tradução de Carlos Vitale, em Miami, na Flórida, Estados Unidos, pela revista, Ambos Mundos, número 2 (primavera-verão). Admiro muito a poesia de Brossa e até usei uma epígrafe dele como entrada de meu mais recente livro, lançado em 2005, Lugar Comum e Outros Poemas. O hipertexto parece-me capaz de oferecer inúmeras possibilidades novas. Vejamos o que o futuro da poesia, por esse viés, pode nos oferecer. Acho que toda novidade causa espanto. Depois, acostumamo-nos a ela, daí passamos a esperar por mais transformações e mais novidades. É sempre assim, na história da evolução artística do homem. Não devíamos nos espantar tanto, já devíamos estar acostumados com tudo isso. Novidades sempre chegam e acabam por triunfar, um dia. Foi assim com o Renascimento, com o Barroco, com o Arcadismo. O Romantismo parecia a maior ameaça à sociedade, quando apareceu; já o Parnasianismo, nem tanto. Mas o Simbolismo, esse sim, despertou enormes medos outra vez. Com o Modernismo, nem se fala. Até hoje existem os que ainda temem as Vanguardas e não se esquecem delas e estão sempre a falar mal delas, coitadas, resumidas que estão hoje a mero passado e acontecimento deixado para trás, sem deixar de ter importância, claro! É o medo do novo e transformador. Desse medo não nos livramos com facilidade.



livros

EDIVAL LOURENÇO - Com o avanço da informática, há certos “moldadores de eventos” que preconizam o fim do livro e até mesmo a redução da Literatura a uma atividade supérflua, restrita a grupos diletantes, a uma espécie de falcoaria ou arte plumária. Como o senhor vê o futuro do livro e da Literatura?


HG – Não acredito no fim do livro, nem que a literatura será, um dia, num futuro próximo ou muito distante, considerada uma arte supérflua, para diletantes. “Arte plumária”? Cruzes! Não, de jeito algum! Já disseram coisas parecidas, de futurologia desastrosa, desde séculos antes do nosso. Nada parecido aconteceu ou acontecerá. O homem tem prazer físico com o livro. O livro é bom de se pegar, folhear, rabiscar, anotar, marcar, dobrar página, pedir emprestado, emprestar aos amigos. Nada disso se pode fazer com um e-book. Na minha opinião, um trambolho pequeno e deselegante. Há os que gostam dele e não os acuso ou critico. Eu sou fã ardoroso do livro, um objeto sem o qual não vivo. Dos poucos prazeres que tenho na vida, de que necessito na vida (fora meu sagrado whiskey de fim de semana), o livro é um dos principais: não sei ficar sem comprá-lo, sem lê-lo, sem tê-lo, quando ele me interessa. Outras coisas sem a quais não vivo são meus Cds e DVDs de ópera, particularmente, e de música em geral. Constituem meu combustível diário, é com eles que me afasto da brutalidade das coisas menores do dia-a-dia (trabalho, trânsito, necessidade de dinheiro, sobrevivência) e me permito reciclar, reanimar, reaparelhar para a semana que se inicia. São meus suplementos vitamínicos constantes. Não, o livro não vai desaparecer – espero e confio. Nem vai desaparecer a literatura. Um mundo sem arte é inconcebível. O homem jamais deixará de produzir música, pintura, escultura, literatura, cinema, o que seja. A arte é o que de melhor produzimos, o que temos de melhor, aquilo com que enfrentamos as adversidades e desafiamos o futuro. A arte, acredito, não morrerá nunca. Não pode morrer, por ser parte integrante do homem e de seu modo de viver. É a arte que nos salva da bestificação. A única coisa, aliás, que pode nos salvar da bestificação!

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