José Saramago - CONTO




                                                                                  
Embargo 


Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse a voltar a dormir já, acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe porém o ânimo para levantar-se, para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com um lençol e virar-se para a mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro d seus cabelos libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina matinal. Mas depois acudiu-lhe a idéia do casulo morno q era a cama e a presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça foi-se azulando aos poucos, fitando fixo as duas cabeças pousadas na cama, como restos aquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro.

Disse à mulher que não se levantasse, que aproveitasse um pouco mais da manhã, e escorregou para o ar frio, para a humidade indefinível das paredes, dos puxadores das portas, das toalhas da casa de banho. Fumou o primeiro cigarro enquanto se barbeava e o segundo com o café, que entretanto aquecera. Tossiu como todas as manhãs. Depois vestiu-se às apalpadelas, sem acender a luz do quarto. Na queria acordar a mulher. Um cheiro fresco de água-de-colônia avivou a penumbra, e isso fez que a mulher suspirasse de prazer quando o marido debruçou-se na cama para lhe beijar os olhos fechados. E ele sussurrou que não viria almoçar a casa.

Fechou a porta e desceu rapidamente a escada. O prédio parecia mais silencioso que de costume. Talvez do nevoeiro, pensou. Reparara que o nevoeiro era assim como uma campânula que abafava os sons e os transformava, dissolvendo-os, fazendo deles o que fazia com as imagens. Estaria nevoeiro. No último lanço da escada já poderia ver a rua e saber se acertara. Afinal havia uma luz ainda cinzenta, mas dura e rebrilhante, de quartzo. Na berma do passeio, um grande rato morto. E enquanto, parado à porta, acendia o terceiro cigarro, passou um garoto embaçado, de gordo, que cuspiu em cima do animal, como lhe tinham ensinado e sempre via fazer.

O automóvel estava cinco prédios abaixo. Grande sorte ter podido arruma-lo ali. Ganhara a superstição de que o perigo de lhe roubarem seria tanto maior quanto mais longe o tivesse deixado à noite. Sem nunca o ter dito em voz alta, estava convencido de que não voltaria a ver o carro se o deixasse em qualquer extremo da cidade. Ali, tão perto, tinha confiança. O automóvel apareceu-lhe coberto de gotículas, os vidros tapados de humidade. Se não fosse o frio tanto, poderia dizer-se que transpirava como um corpo vivo. Olhou os pneus segundo o deu hábito, verificou de passagem que a antena não fora partida e abriu a porta. O interior do carro estava gelado. Com os vidros embaciados, era uma caverna translúcida afundada sob um dilúvio de água. Pensou que teria sido melhor deixar o carro em sítio onde pudesse faze-lo descair para pegar mais facilmente. Ligou a ignição, e no mesmo instante o motor roncou alto, com um arfar profundo e impaciente. Sorriu, satisfeito da surpresa. O dia começava bem.

Rua acima, o automóvel arrancou, raspando o asfalto como um animal de cascos, triturando o lixo espalhado. O conta-quilómetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreite e ladeada de carros parados. Que seria isto? Retirou o pé de acelerador, inquieto. Por pouco diria que lhe teriam trocado o motor por outro muito mais potente. Pisou à cautela o acelerador dominou o carro. Nada de importância. Às vezes não se controla bem o balanço do pé. Basta que o tacão do sapato não assente no lugar habitual para que se altere o movimento e a pressão. É simples.

Distraído com o incidente, ainda não olhara o marcador da gasolina. Ter-lhe-iam roubado durante a noite, como já não era a primeira vez? Não. O ponteiro indicava precisamente meio depósito. Parou num sinal vermelho, sentindo o carro vibrante e tenso nas suas mãos. Curioso. Nunca dera por essa espécie de frémito animal que percorria em ondas a chapas da carroçaria e lhe fazia estremecer o ventre. Ao sinal verde, o automóvel pareceu serpentear, alongar-se como um fluido , para ultrapassar os que lhe estavam à frente. Curioso. Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum. Questão de boa disposição, esta agilidade dos reflexos hoje, talvez excepcional. Meio depósito. Se encontrasse um posto de abastecimento a funcionar, aproveitaria. Pelo seguro, com todas as voltas que tinha que dar antes de ir para o escritório, melhor de mais que de menos. Este estúpido embargo. O pânico, as horas de espera, filas de dezenas e dezenas de carros. Meio depósito. Outros andam a essa hora com muito menos, mas se for possível atestar. O carro fez uma curva balançada, e, no mesmo movimento,  lançou-se numa subida íngreme sem esforço. Ali perto havia uma bomba pouco  conhecida, talvez tivesse sorte. Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e ocupar espaço na fila que esperava. Boa lembrança.

Olho o relógio. Deviam estar à frente uns vinte carros. Nada de exagerado. Mas pensou que seria melhor ir ao escritório e deixar as voltas para a tarde, já cheio o depósito, sem preocupações. Baixou o vidro para chamar um vendedor de jornais que passava. O tempo arrefecera muito. Mas ali, dentro do automóvel, de jornal aberto sobre o volante, fumando enquanto esperava, havia um calor agradável, como o dos lençóis. Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora, e recostou-se melhor no assento. O jornal não prometia nada de bom. O embargo mantinha-se. Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos. Mas ele ainda dispunha de meio depósito e ao tardaria a té-lo cheio. O automóvel da frente avançou um pouco. Bem.

Hora e meia mais tarde estava a atestar , e três minutos depois arrancava. Um pouco preocupado porque o empregado lhe dissera, sem qualquer expressão particular na voz, de tão repetida a informação, que não haveria ali gasolina antes de quinze dias. No banco, ao lado, o jornal anunciava restrições rigorosas. Enfim, do mal o menos, o depósito estava cheio. Que faria? Ir directamente ao escritório, ou passar primeiro por casa de cliente, a ver se apanharia a encomenda? Escolheu o cliente. Era preferível justificar o atraso com a visita, a ter de dizer que passara hora e meia na fila da gasolina quando lhe restava meio depósito. O carro estava óptimo. Nunca se sentira tão bem a conduzi-lo. Ligou o rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo.

De repente, o carro deu uma guinada e descaiu para a rua à direita, até parar numa fila de automóveis mais pequena do que a primeira. O que fora aquilo? Tinha o depósito cheio, sim, praticamente cheio, porque diabo de lembrança. Manejou a alavanca das velocidades para meter a marcha atrás, mas caixa não lhe obedeceu. Tentou forçar, mas as engrenagens pareciam bloqueadas. Que disparate. Agora avaria. O automóvel da frente avançou. Receosamente, a contar com o pior, engatou a primeira. Tudo perfeito. Suspirou de alívio. Mas como estaria a marcha atrás quando tornasse a precisar dela? 

Cerca de meia hora depois metia meio litro de gasolina no depósito, sentindo-se ridículo sob o olhar desdenhoso do empregado da bomba. Deu uma gorjeta absurdamente alta e arrancou num grande alarido de pneus e acelerações. Que diabo de ideia. Agora ao cliente, ou será uma manhã perdida. O carro estava melhor do que nunca. Respondia aos seus movimentos como se fosse um prolongamento mecânico do seu próprio corpo. Mas o caso da marcha atrás dava que pensar. E eis que teve que pensar mesmo. Uma grande camioneta avariada tapava todo o leito da rua. Não podia contorná-la, não tivera tempo, estava colado a ela. Outra vez a medo, manejou a alavanca, e a marcha atrás engrenou com um ruído suave de sucção. Não se lembrava de a caixa de velocidades ter reagido dessa maneira antes. Rodou o volante para esquerda, acelerou, e de um só arranco o automóvel subiu o passeio, rente aa camioneta, e saiu do outro lado, solto, com uma agilidade de animal. O diabo do carro tinha sete fôlegos. Talvez que por causa de toda essa confusão do embargo, tudo em pânico, os serviços desorganizados tiveram feito meter nas bombas gasolina de muito maior potência. Teria a sua graça.

Olhou o relógio. Valeria ir ao cliente? Por sorte apanharia o estabelecimento ainda aberto. Se o trânsito ajudasse, sim, se o trânsito ajudasse, teria tempo. Mas o trânsito não ajudou. Tempo do Natal, mesmo faltando a gasolina, toda a gente vem para a rua, a empatar quem precisa de trabalhar. E ao ver uma transversal descongestionada, desistiu de ir ao cliente. Melhor seria explicar qualquer coisa no escritório o e deixar para tarde. Com tantas hesitações desviara-se muito do centro. Gasolina queimada sem proveito. Enfim, o depósito estava cheio. Num largo ao fundo da rua por onde descia viu outra fila de automóveis, à espera de vez. Sorriu de gozo e acelerou, decidido a passar roncando contra os entanguidos automobilistas que esperavam. Mas o carro, a vinte metros, obliquou para esquerda, por si mesmo, e foi parar, suavemente, como se suspirasse, no fim da fila. Que cisa fora aquela, se não decidira meter mais gasolina? Que coisa era, se tinha o depósito cheio? Ficou a olhar os diversos mostradores, a apalpar o volante custando-lhe a reconhecer o carro, e nessa sucessão de gestos puxou o retrovisor e olhou-se no espelho. Viu que estava perplexo e considerou que tinha razão. Outra vez pelo retrovisor distinguiu um automóvel que descia a rua, com todo o ar de vir colocar-se na fila. Preocupado com ideia de ficar ali imobilizado, quando tinha o depósito cheio, manejou rapidamente a alavanca para a marcha atrás. O carro resistiu e alavanca fugiu-lhe das mãos. No segundo imediato achou-se apertado entre seus dois vizinhos. Diabo. Que teria o carro? Precisava de leva-lo à oficina. Uma marcha atrás que funcionava ora sim ora não, é um perigo.

Tinha passado mais de vinte minutos quando fez avançar o carro até à bomba. Viu chegar-se o empregado e a voz apertou-se-lhe ao pedir que atesta-se o depósito. No mesmo instante, fez uma tentativa para fugir à vergonha, meteu uma rápida primeira e arrancou. Em vão. O carro não se mexeu. O homem da bomba olhou desconfiado, abriu o depósito, e, passados poucos segundo, veio pedir o dinheiro de um litro, que guardou resmungando. No instante logo, a primeira entrava  sem qualquer dificuldade e  o carro avançava, elástico, respirando pausadamente. Alguma coisa não estaria bem no automóvel, nas mudanças, no motor, em qualquer sítio, diabo levasse. Ou estaria ele a perder a suas qualidades de condutor? Ou estria doente? Dormira ainda assim bem, não tinha mais preocupações da vida que em todos os outros dias dela. O melhor seria desistir por agora de cliente, não pensar neles durante o resto do dia e ficar no escritório. Sentia-se inquieto. Em redor de si, as estruturas do caro vibravam rapidamente, não à superfície, mas no interior dos aços, e o motor trabalhava com aquele rumor inaudível de pulmões enchendo e esvaziando, enchendo e esvaziando. Ao princípio, sem saber por quê, deu por que estava a traçar mentalmente um itinerário que o afastasse das outras bombas de gasolina, e quando percebeu o que fazia assustou-se, temeu-se de não estar bom da cabeça. Foi dando voltas, alongando e cortando caminho, até que chegou em frente ao escritório. Pôde arrumar o carro suspirou de alívio. Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair.

Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria ao patrão se assomasse a uma janela e o visse ali sentado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fé-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se as mãos ambas ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil. Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo retrovisor e olhou-se. Nenhuma diferença no rosto. Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina.

Voltou a olhar no espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deixando a mão à porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito, um objectivo muito definido que j;a o tranqüilizava e tanto que se deixou ir com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição. 

Só reparou na bomba de gasolina quando lhe ia a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia "esgotado, e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios, estava perto o sito que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a chover quando parou o automóvel. 

A sua ideia era simples. Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo, deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém. A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola de lã, à camisa, à camisola anterior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isso que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se torcesse para fora, para a abertura da porta, por onde a chuva entrava emperrada por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos segurou-se ao tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o mundo. Diante dos seus olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação, oscilavam com um ruído seco, de metrônomo. De longe veio o apito da fábrica. E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado, por ver um homem sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera. 

O que estava a passar-se era absurdo. Nunca ninguém ficara preso dessa maneira no seu próprio carro, pelo seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E depois? Juntar-se ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalista, os fotógrafos, e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado à chuva. Tinha de arranjar outra maneira. Desligou o motor e sem interromper o gesto atirou-se violentamente para fora, como quem ataca de surpresa. Nem um resultado. Feriu-se na testa e na mão esquerda, e a dor causou-lhe uma vertigem que se prolongou , enquanto uma súbita e irreprimível vontade de urinar se expandia, libertando interminável o líquido quente que vertia e escorria entre as pernas para piso do carro. Quando tudo isso sentiu, começou a chorar baixinho, num ganido, miseravelmente, e assim esteve até que um cão, vindo da chuva, veio ladrar-lhe, esquálido e sem convicção, à porta do carro. 

Embraiou devagar,  com os movimentos pesados de um sonho de cavernas, e avançou pela azinhaga fazendo força para não pensar, para não deixar que a situação se lhe figurasse num entendimento. De um modo vago sabia que teria de procurar alguém que o ajudasse. Mas quem poderia ser? Não queria assustar a mulher, mas não restava outro remédio. Talvez ela conseguisse. Ao menos não se sentiria tão desgraçadamente sozinho. 

Voltou a entrar na cidade, atento aos sinais, sem movimentos bruscos no assento, como se quisesse apaziguar os poderes que o prendiam. Passavam das duas horas e o dia escurecera muito. Viu três bombas de gasolina, mas o carro não reagiu. Todas tinham o letreiro de "esgotado". À medida que penetrava na cidade, ia vendo automóveis abandonados em posições anormais, com os triângulos vermelhos colocados na janela de trás, sinal que noutras ocasiões seria de avaria, mas que significava, agora, quase sempre, falta de gasolina. Por duas vezes viu grupos de homens a empurrar automóveis para cima dos passeios , com grandes gestos de irritação, debaixo da chuva que não parara ainda. 

Quando enfim chegou à rua onde morava, teve de imaginar como iria chamar a mulher. Parou o carro em frente da porta, desorientado, quase à beira doutra crise nervosa. Esperou que acontecesse o milagre de a mulher descer por obra e merecimento do seu silencioso chamado de socorro. Esperou muitos minutos, até que um garoto curioso da vizinhança se aproximou e ele pôde pedir-lhe, com o argumento de uma moeda, que subisse ao terceiro andar e dissesse à senhora que lá morava que o marido estava em baixo à espera, no carro. Que viesse depressa, que era muito urgente. O rapaz foi e desceu, disse que a senhora já vinha e afastou-se a correr, com o dia ganho. 

A mulher descera como sempre andava em casa, nem sequer lembrara de trazer um guarda-chuva e agora estava entreportas, indecisa, desviando sem querer os olhos para um rato morto na berma do passeio, para o rato mole, de pelo arrepiado, hesitando em atravessar o passeio debaixo da chuva, um pouco irritada contra o marido que a fizera descer sem motivo, quando poderia muito bem ter subido a dizer o que queria. Mas o marido acenava de dentro do carro e ela assustou-se e correu. Deitou a mão ao puxador, precipitando-se para fugir à chuva, e quando enfim abriu a porta e viu diante do seu rosto a mão do marido aberta empurrando-a sem lhe tocar. Teimou e quis entrar, mas ele gritou-lhe que não, que era perigoso, e contou-lhe o que acontecia, enquanto ela encurvada recebia nas costas toda a chuva que caía e os cabelos se lhe desmanchavam, e o horror lhe crispava a cara toda. E viu o marido, naquele casulo quente e embaciado que o isolava do mundo, torcer-se todo no assento para sair do carro e não conseguir. Atreveu-se a agarra-lo por um braço e puxou, incrédula, e não pode também move-lo dali. E como aqui era horrível demais para ser acreditado, ficaram calados a olhar-se, até que ela pensou que o marido estava doido e fingia não poder sair. Tinha de ir chamar alguém para o tratar, para o levar aonde as loucuras se tratam. Cautelosamente, com muitas palavras, disse ao marido que esperasse um bocadinho, que ela não tardaria, ia procurar ajuda para ele sair, e assim até poderiam almoçar juntos e ele telefonaria para o escritório a dizer que estava constipado. E não iria trabalhar da   parte da tarde. Quer sossegasse, o caso não tinha importância, a aver que não demora nada. 

Mas quando ela desapareceu na escada, ele tornou a imaginar-se rodeado de gente, o retrato nos jornais, a vergonha de se ter urinado pelas pernas abaixo, e esperou ainda uns minutos. E quando em cima a mulher fazia telefonemas para toda a parte, para a polícia, para o hospital, lutando para que acreditassem nela, e não na sua voz, dando seu nome e o do marido, a cor do carro, e a marca, e a matrícula, ele não pôde agüentar a espera e a imaginação, e ligou o motor. Quando a mulher tornou a descer, o automóvel já desaparecera e o rato escorregara da berma do passeio, enfim, e rolava na rua inclinada, arrastado pela água que corria dos algeroses. A mulher gritou, mas as pessoas tardaram a aparecer e foi muito difícil de explicar.

Até o anoitecer o homem circulou pela cidade, passando por bombas esgotadas, entrando em filas de espera sem o ter decidido, ansioso por o dinheiro se lhe acabava e ele não saberia o que poderia acontecer quando não houvesse mais dinheiro e o automóvel parasse ao pé duma bomba para receber mais gasolina. E isso só não aconteceu porque todas as bombas começaram a fechar e as filas de espera que ainda se viam apenas aguardando o dia seguinte, e então o melhor era fugir de encontrar bombas ainda abertas para não ter que parar. Numa avenida muito longa e larga, quase sem outro trânsito, o carro da polícia acelerou e ultrapassou-o, e quando o ultrapassava um guarda fez-lhe sinal para que parasse. Mas ele teve outra vez medo e não parou. Ouviu atrás de si a sereia da polícia e viu, também, vindo não soube donde, um motociclista fardado quase a alcançá-lo. Mas o carro, o seu carro, deu um rondo, um arranco poderoso e saiu, de um salto, logo adiante, para o acesso duma auto-estrada. A polícia seguia-o de longe, cada vez mais longe, e quando a noite se fechou não havia sinais deles, e o automóvel rolava por outra estrada. 

Sentia fome. Urinara outra vez, humilhado demais para se envergonhar e delirava um pouco: humilhado, himolhado. Ia declinando sucessivamente, alterando as consoante e as vogais, num exercício in consciente e obsessivo que o defendia da realidade. Não parava porque não sabia para que iria parar. Mas, de madrugada, por duas vezes, encostou o carro a berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altuar de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixa-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir. 

Toda a noite viajou sem saber por onde. Atravessou povoações de que não viu o nome, percorreu longas rectas, subiu e desceu montes, fez e desfez laços e deslaços de curvas, e quando a manhã começou a nascer estava em qualquer parte, numa estrada arruinada, onde a água da chuva se juntava em charcos arrepiados à superfície. O motor roncava poderosamente , arrancando as rodas à lama, e toda a estrutura do carro vibrava, com um som inquietante. A manhã abriu por completo, sem que o sol chegasse a mostrar-se, mas a chuva parou de repente. A estrada transformava-se num simples caminho, que adiante, a cada momento, parecia que se perdia entre pedras. Onde estava o mundo? Diante dos olhos eram serras e um céu espantosamente baixo. Ele deu um grito e bateu com os punhos cerrados no volante. Foi nesse momento que viu que ponteiro do indicador da gasolina estava em cima do zero. O motor pareceu arrancar-se a si mesmo e arrastou o carro por mais vinte metros. Era outra vez estrada para lá daquele lugar, mas a gasolina acabara. 

A testa cobriu-se-lhe de suor frio. Uma náusea agarrou nele e sacudiu-o dos pés a cabeça, um véu cobriu-lhe por três vezes os  olhos. Às apalpadelas, abriu a porta para se libertar da sufocação que aí vinha, e nesse movimento, por que fosse morrer ou porque o motor morrera, o corpo pendeu para o lado esquerdo e escorregou do carro. Escorregou um pouco mais, e ficou deitado sobre as pedras. A chuva recomeçara a cair.

In. Objecto quase, 1978.
Mantem-se a grafia original do autor - Português de Portugal.

Gilberto Mendonça Teles - Crítica Literária



Este ensaio crítico, de autoria do Professor Doutor Gilberto Mendonça Teles, renomado crítico literário, poeta refinado, e pesquisador incansável, foi publicado originalmente na revista Sigila, nº25, em Paris. As imagens aqui colocadas não fazem parte do ensaio original, elas foram inseridas por pura feição estética do blog. Agradeço ao Professor Gilberto por ter atendido ao meu convite e permitir que eu publicasse aqui o seu Ensaio Crítico.



                  E a tua vida se levantará mais clara que o meio-dia; ainda que haja trevas, será como a manhã.

              JÓ 11,17.



O CLARO-ESCURO DA TRANSPARÊNCIA LITERÁRIA

Gilberto Mendonça Teles

O termo Transparência põe de imediato o leitor em face de uma série de relações – com a lingüística, a mitologia, a religião, a filosofia, a retórica, a arte e, claro, com a literatura. Em todas as direções o termo se emprega para revelar, deixar transparecer uma imagem, um conceito, um conteúdo especial, que às vezes não se quer mostrar, quer ser ambíguo, dizendo e não dizendo e valendo pela sua própria obscuridade, quando não pela sua natureza autotélica. Tomando-o como tema de uma revista que tem o nome de Sigila, somos tentado a ver a Transparência como uma figura de linguagem que, se não é apenas uma antítese ou um paradoxo na revista, é pelo menos um bem pensado oxímoro, uma coisa assim como o Claro enigma ou a Paixão medida, títulos de dois belos livros da obra poética de Carlos Drummond de Andrade. A tensão criada entre o título e a figura só se deixa atenuar na compreensão maior do jogo entre os dois termos que se juntam à medida em que as raízes etimológicas se afloram e se explicam mutuamente.
O nome de Sigila, além de denotar na superfície uma revista de cultura filosófico-literária, aponta para um perfil de sentidos primitivos, oriundos de sǐgǐllǔm, ī,diminutivo de Sīgnŭm, ī., de onde o adjetivo sĭgīllatŭs, ă, ŭm, e a significação de “pequena marca, sinalzinho”, “estatuazinha, feita a cinzel”, obra de relevo ou vasos galo-românicos decorados com sinais cinzelados. Varro, no Codex Theodosianus, registra como “personagens representadas por agulhas”; no fundo, é aquilo que traz um selo (sǐgǐllǔm), uma marca, um segredo, digamos, de fabricação. Acontece que o título (em francês) mantém a forma latina do neutro plural e, assim, se deixa ler como “os sinais, as pegadas, os vestígios, os presságios” e até – por que não? – “as palavras”, enfim, tudo aquilo que revela, que deixa transparecer o plural de sentidos culturais que a revista agasalha nos seus vários números publicados.
Há por isso mesmo a necessidade de se cavar mais os sentidos etimológicos do vocábulo transparência, que designa o fenômeno pelo qual os raios luminosos se deixam perceber através de certas substâncias, qualidade que em grego se designava por διαφάνεια – diáfano, claro, evidente, visível, brilhante e ilustre, num fio semântico que vai do natural ao humano. O termo ou radical φαíνω (proveniente do indo-europeu, com o sentido de “esclarecer”, “brilhar”, “falar” e “manifestar”) empregava-se para indicar o “ato de se tornar visível, de dar a conhecer”, ou seja a “transparência”, palavra que, no entanto, só será conhecida no latim medieval (transparentia). Na época romana se conheceu o termo transpectus, us, ou seja, “aquilo que se vê através de”, que aparece por meio de outra coisa. A partir daí se formaram transparens e transparentia que motivou o francês transparence (1372). O curioso é que o vocábulo francês, formado a partir de transparaître, tem a ver com um antigo percer (da época da Chanson de Roland), que indicava o ato de “abrir um buraco, uma clareira para mostrar alguma coisa”, concreta ou não. Liga-se intelectualmente a percepção. O paralelismo dos dois significantes se relaciona com duas raízes indo-europeias que acabaram se juntando: a primeira, com o sentido de “torcer”, “esfregar”; a segunda com a idéia de “atravessar para atingir um objetivo”. A aproximação dos dois significados enriquece a palavratransparence, tanto em francês como na sua correspondente em português, onde se documenta no início do século XIX, com a invasão napoleônica a Portugal.
Assim, na língua portuguesa, transparência é a palavra para designar o fenômeno pelo qual os raios luminosos [visíveis] são percebidos “através” de algumas substâncias, ou seja, é a denominação para o que permite a passagem da luz, daquilo que se deixa atravessar pela luminosidade, que permite a visibilidade de objetos e de imagens (de figuras, tropos, como na linguagem literária). É sinônimo de diafaneidade cujo radical (δια-) enfatiza a “transparência”. Mas é possível estabelecer uma diferença, como se verá abaixo. No sentido moral, a transparência é o que revela uma qualidade (ou uma atividade criminosa) oculta, como se documenta abundantemente no discurso dos políticos brasileiros da atualidade... O fenômeno contrário – que mostra a absorção de um meio óptico determinado pela relação entre o raio luminoso que incide e o que salienta – é denominado opacidade. Neste sentido esses dois termos formam as faces de uma mesma realidade óptica, ora aberta à visibilidade das imagens alcançadas pela luz, ora fechada à intromissão dos raios luminosos.
É interessante notar que os dicionários nem sempre reservaram um verbete especial para o termo transparência, dado sempre como sinônimo de claridade ou diafaneidade, como no Dicionário poético, de Cândido Lusitano (1620), onde no verbete Claro se lê, em vez da definição, quatro séries de sinônimos, separadas por ponto e vírgula, de modo a permitir gradações de sentidos:
      Claro. Lúcido, luzente, nítido, fulgente, refulgente, brilhante, luminoso, resplandecente, coruscante, cintilante, radiante; Ou Diáfano, transparente; Ou Certo, evidente, perspícuo, manifesto, patente; Ou Nobre, ilustre, generoso, egrégio, exímio, célebre, ínclito, afamado, famoso, memorável, celebrado.1
Mas o Dicionário dos sinônimos poéticos e de epítetos da língua portuguesa, de J.-I. Roquete e José da Fonseca, de 1848, deixa a pura sinonímia e aprofunda a diferença de significação entre os termos tidos como sinônimos. Dedica, na sua primeira parte, vários verbetes para a distinção de palavras derivadas de Clareza, entre as quais os sinônimos claro, diáfano e transparente. Começa por distinguir clarão, claridade e esplendor:
      Clarão. Quando a luz sai de seu estado ordinário pode avivar-se por diferentes gradações que, segundo a sua intensidade, se diferençam [sic] da maneira seguinte. / Claridade é o efeito que causa a luz aclarando algum espaço. Clarão, pela força aumentativa da terminação, é grande claridade, e às vezes forte e rápida. Esplendor é a luz mui clara que despede o sol ou outro qualquer corpo luminoso. – O clarão quando é forte incomoda a vista, e às vezes apenas percebemos os objetos. A claridade é branda e mostra-os distintamente. O esplendor pode deslumbrar se é mui luminoso, mas apresenta-os em todo o seu luzimento.
Em seguida dedica-se a explicar retoricamente a diferença entre clareza e perspicuidade (lat. pērspĭcŭŭs, ă, ŭm), escrevendo que consiste a
      clareza em que nas cláusulas dum discurso, na ligação delas entre si, se evite com o maior cuidado toda a obscuridade ou ambiguidade no sentido. Depende pois a clarezanão só das ideias senão das expressões e da boa construção das cláusulas; porque ainda que as ideias fossem claras, sendo exprimidas com ambigüidade ou anfibologia perderiam sua clareza e seriam obscuras.
Acrescente-se que a raiz indo-europeia [spek-] que está em pērspĭcŭŭs introduz também a idéia de ver, olhar, observar, vigiar, fiscalizar, examinar, aprofundar o exame; aparece em todas as línguas românicas, às vezes com a significação de transparência, como registra a estilística do dicionário de Roquete ao tratar da perspicácia:
      Perspicuidade é como se disséssemos transparência [itálico nosso] no discurso, limpeza no estilo. É pois expressão mais valente, e denota não só a clareza na frase, senão uma escolha de termos que pintem as idéias com lúcidas cores.
Quanto aos vocábulos claridade e clareza, o dicionarista diz que os dois substantivos representam a idéia abstrata de claro, formada por dois sentidos: o físico e omoral. Para o primeiro, ele diz que o certo é empregar claridade (do sol, da lua, das estrelas, etc.); e para designar o sentido moral e figurado o certo é empregarclareza (do discurso, por exemplo).
É no entanto ao tratar de Claro, diáfano e transparente que o lexicólogo atinge os limites da filosofia e da metafísica, igualando-se aos filósofos que trataram da Transparência. Ele começa por definir o que entende por Claro [Vale a pena transcrever īpsĭs līttĕris as suas definições, ainda que às vezes em forma de dialelo]:
      Claro é o que tem claridade ou luz, que é limpo, puro, não turvo, e assim se diz manhã clara, dia claro, água clara, etc. Diáfano é palavra grega [...] fazer ver ou brilhar através), que diz o mesmo que Transparente, que é palavra latina, transparens, de transpareo, eu apareço além ou através; contudo o primeiro [diáfano] diz-se dos corpos através dos quais passa a luz, e o segundo [transparente] dos corpos além dos quais aparecem e se vêem os objetos.
O autor continua a sua explicação com alguns exemplos: a água reúne às vezes as três qualidades: “é clara, quando nenhum corpo estranho a turva; é diáfana, por que por ela passam os raios de luz; é transparente porque permite se apresentem à nossa vista os objetos que em si contém.” O espelho só pode ser claro, não é diáfano nem transparente. O tecido (cendal) com que Camões (Os Lusíadas, II, 37) “cobre” o corpo de Vênus é transparente e não diáfano:
C’um delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde, nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pêra que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
Conclui envolvendo os três termos na seguinte explicação que se quer científica:
      A diafaneidade dos corpos, diz Newton, resulta não da quantidade e reta direção dos poros senão da igual densidade de todas suas partes. Sua transparência é efeito ou da mesma causa ou da falta de aderência e de conexidade de suas entreabertas partes. – Diáfano é termo de física de que às vezes se faz uso em poesia; transparente é palavra mais vulgar e geralmente usada.
Dentro destas especulações de ordem lingüística, bastante controversas, não se pode esquecer da transparência como termo para designar, no século XX, odiapositivo, ou slide para retroprojetor. Um bom dicionário analógico reúne em torno do verbete Transparência as possíveis relações semânticas encontradas em substantivos como
      limpidez, nitidez, diafaneidade, translucidez, lucidez, clareza, serenidade, pureza, claridade, isocromia, vidro, cristal, linfa, água, atmosfera, corniola, cornalina, hialóide, telésia, cristal, e hialino.
Em verbos e expressões verbais do tipo
      vazar, deixar-se atravessar de luz, coar a luz, dar passagem à luz, reslumbrar, transluzir, transparecer, transparentar, desenturvar e translucidar.
E em adjetivos, expressões adjetivais mais ou menos conhecidas como
      transparente, pelúcido, limpo, límpido, translúcido, vítreo, lúcido, diáfano, pérvio à luz, cristalino, hialino, claro, puro, sereno, sem nuvens, sem jaça, claro como cristal, aerófano, pirófano, vaporoso, aeriforme, isotrópico, desvelado, desnubrado, desanuviado, especular, aclasto, da mais pura água e inúmeras outras nem sempre de fácil conotação.

Deixando o plano sincrônico por onde se estende a sinonímia puramente linguística e, por isso mesmo, visível na “transparência” do discurso comum da língua, é possível pensar que as raízes etimológicas foram ramificando-se pelas várias regiões culturais, motivando as teofanias (θεοφάνειαι) mitológicas, ocultistas e religiosas, como nas incontáveis metamorfoses amorosas de Zeus na Grécia antiga; nos avatares de Vixenu na Índia; e nos Elfos das sagas germânicas, espécie de criaturas aéreas e luminosas, que têm medo da luz. Ditas ou não-ditas, a significação de transparência se faz presente nessas metamorfoses ou nas teofanias das culturas religiosas.
Assim o judaísmo, por força de sua crença na vida eterna, é pródigo em fenômenos teofânicos (de Deus, de anjos, demônio, sonhos e visões), como em Gen 35, 7; Num 6,25; Dt 33,2; Sl 31,17; 67,2; e 118,27; Jer. 29,14; Ez 39,28, por ex.). Termos como hierofania, , teofania, epifania e parusia (παρουςία = vinda, aparecimento do rei / do Senhor [Deus]) são comuns no vocabulário judaico-cristão, todos ligados à ambiguidade aparecimento / desaparecimento, nos limites datransparência. No Velho Testamento, sobretudo com Isaías, o jogo antitético de relação entre luz e escuridão adquire tons hiperbólicos de admoestações, dando-se a entender que a luz era às vezes “confundida” com a escuridão, como em 5,20:
Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal;
que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade.
Mas em 45, 7, Isaias vai dizer que é o Senhor quem faz todas essas coisas, como se aludisse ao livre-arbítrio de que dotou o homem para escolher entre a luz (o bem) e as trevas (o mal): “Eu formo a luz, e crio as trevas”, separando os dois fenômenos unidos pela mesma criação. No Novo Testamento, entretanto (principalmente em João, 1,5), os dois conceitos estão em níveis diferentes de relação:
A luz resplandece nas trevas,
e as trevas não prevaleceram contra ela.
Percebe-se que o sentido mítico e religioso da transparência se manifesta ao mesmo tempo que se oculta no “resplandecer” de uma certeza religiosa no final dos tempos.
É por aí, que se chega naturalmente às especulações filosóficas. Acontece que os filósofos preferem cogitar sobre a claridade (a clareza), considerando-a, entretanto, como uma espécie de transparência. Para os escolásticos um conceito é claro quando permite distinguir uma coisa de outras coisas: se permite, o conceito é claro e distinto; se não, é obscuro e indistinto ou confuso. A distinção (a claridade ou a transparência do raciocínio) é a base do cartesianismo, tanto que a principal regra do discurso sobre o método (Discours II) é a de só admitir o que se chega à mente de maneira clara e distinta, sem deixar dúvidas, uma vez que a verdade é o que se concebe clara e distintamente. Clareza e distinção são os dois graus de evidência no sentido subjetivo, como foi vista a partir de Descartes: “a clara percepção, presente e manifesta no espírito daquele que lhe presta atenção, tal como são claras as coisas presentes em nossos olhos”. (Princ. Phil. I, 45). A distinção cartesiana se tornou mais precisa com Leibniz, que considera clara (ou transparente) a noção que permite distinguir a coisa representada; e obscura a que não permite. Como a evidência implica uma transparência, um mostrar-se do próprio ente, ela é o ato cognoscitivo da verdade e o meio de transcedência do supra-sensível e do inexperimentável.
Para Bergson (La pensée et le mouvant) há duas espécies de claridade: a das idéias que, já conhecidas, se apresentam numa nova ordem; e a da idéia radicalmente nova e simples, captada pela intuição. A primeira é absorvida logo pela inteligência; a segunda é negada por obscura. No entanto, diz o filósofo, “tal idéia, mesmo obscura, serve para dissipar obscuridades”. Daí porque ele distingue entre idéias que são luminosas por si mesmas e idéias que iluminam”.
Heidegger escreve que a transparência é a intuição que o Ser-aqui tem de si mesmo: “Existindo, o Ser-aqui só vê a si mesmo enquanto se tornou originariamente transparente no seu ser no mundo e no seu ser com os outros, como momentos constitutivos da sua existência” (Sein und Zeit, §31). O Ser é já um suceder, não mais apenas um parecer. E o ato de interpretar é saber ir além das aparências, é atravessar o que se deseja ao mesmo tempo opaco e transparente. Diz Heidegger que, “Sendo ao mesmo tempo Ser em geral e Ser em particular, o Ser lido pelo Dasein (isto é, pela existência) terá diferente sentido conforme tenha diferente iluminação”. Para ele, compreender é projetar: a projeção do Dasein é o lugar do desenvolvimento de uma potência efetiva própria de sua essência. Sendo o Dasein o mundo, também o será o logos, razão por que o logos, a linguagem, deve ser ouvido. O Dasein se refugia na cotidianidade: foge ou se escapa porque se angustia, uma vez que é o Ser-no-mundo que gera a angústia. Assim o Dasein chega a uma transparência que lhe deixa ver o Ser. Em conclusão: a revelação em que consiste em boa parte a ciência histórica não significa outra coisa: a re-presentação do passado: O que o Ser assimilou na sua essência e volta agora no novo suceder.
Em 1971, Jean Starobinski, publicou um livro magnífico, onde põe à mostra toda a riqueza de análise que já conhecíamos de La relation critique, quando fala de Psicanálise e literatura. Trata-se de Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle suivi de sept essais sur Rousseau. Partindo da descoberta de Rousseau, nas Confissões, de que as aparências o condenavam, o estudioso investiga a dolorosa reflexão do filósofo ao se dar conta de que perdeu a sua inocência e tem de encarar a perda de um mundo dominado pela aparência (a hipocrisia, a mentira) do que ele pensava pura transparência. Devido a um pequeno incidente (que ele narra nas suas Confissões), Rousseau percebe que “O malefício da aparência” o havia atingido e que a “sua verdade, a sua inocência e a sua boa-fé” não foram compreendidas pelos “outros”. Sente que o seu eu se distancia “em relação aos outros”. Starobinski então comenta que “Quando o coração do homem perdeu sua transparência [normal nosso] o a natureza se empana e se turva. A imagem do mundo depende da relação entre as consciências”. Logo a seguir, já agora no subcapítulo “O tempo dividido e o mito da transparência”, o crítico genebrino deixa claro o que foi esse momento de crise na vida de Rousseau:
      desce o “véu” da separação, em que o mundo se empana, em que as consciências se tornam opacas umas para as outras, em que a desconfiança torna para sempre a amizade impossível –, esse momento tem sua data e uma história: marca o começo de uma perturbação na felicidade infantil de Jean-Jacques. Então começa uma nova época, uma outra era de consciência. E essa nova era se define por uma descoberta essencial: pela primeira vez a consciência tem um passado. Mas, ao enriquecer-se com essa descoberta, a consciência descobre também uma pobreza, uma falta essencial. Com efeito, a dimensão temporal que se cava atrás do instante presente tornou-se perceptível pelo próprio fato de que se esquiva e se recusa. A consciência se volta para um mundo anterior, do qual percebe simultaneamente que ele lhe pertenceu e que está para sempre perdido. No momento em que a felicidade infantil lhe escapa, ela reconhece o valor infinito dessa felicidade proibida. Então não resta mais do que construir poeticamente o mito da época finda; outrora, antes que o véu se houvesse interposto ente nós e o mundo [...] nada alterava a transparência e a evidência das almas. [Itálico nosso.]
E mostra que Rousseau se valeu do mito religioso para descrever a sua história e, nela, o drama da sua queda – a sua tomada de consciência no espetáculo iluminista do século XVIII:
      Ora, se a queda é nossa obra, se é um acidente da história humana, é preciso admitir que o homem não está naturalmente condenado a viver na desconfiança, na opacidade e nos vícios que as escoltam. Estes são a obra do homem, ou da sociedade. Então não há nada aí que nos impeça de refazer ou de desfazer a história, tendo em vista redescobrir a transparência perdida. [itálico nosso]. Nenhuma proibição sobrenatural a isso se opõe.
Starobinski conclui que “Rousseau nos convoca a querer o retorno da transparência, para nós e em nossas vidas”. E lembramos, de passagem, que o grande escritor brasileiro, João Guimarães Rosa escreveu a seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, a respeito de Corpo de baile, que a obscuridade às vezes é necessária:
      O Corpo de baile tem de ter passagens obscuras.Isto é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o óbvio, que o frouxo.Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro.
Nos capítulos 5 e10, o ensaísta de Trois fureurs volta ao termo transparêcia, usando-o, primeiro, ao tratar da música no canto uníssono das vindimas, falando que “a transparência da festa” despertava em Rousseau lembranças inocentes do passado e isto perturbava a sua reflexão; e, depois, já no fim do seu excelente ensaio usando a expressão “A transparência do cristal” de que Rousseau se valeu para várias vezes definir o seu coração, Starobinski o parafrasea para comentar que
      No limite, a transparência é a invisibilidade perfeita [a morte]. Os homens me vêem diferente do que sou: portanto, não me vêem, sou-lhes invisível, impõem-me uma opacidade que me é estranha, colam em meu rosto máscaras que não se parecem comigo.
Nos seus devaneios Rousseau chega a lamentar não possuir o anel de Giges para, invisível, poder fazer o bem sem as aparências e os obstáculos impostos pelos homens.
O sentido de transparência é o mesmo que já descrevemos no Dicionário de sinônimos poéticos, no exemplo com a água: “é clara, quando nenhum corpo estranho a turva; é diáfana, por que por ela passam os raios de luz; é transparente porque permite se apresentem à nossa vista os objetos que em si contém.” Deste modo, as imagens do passado, vindas com o canto, podem ser lidas como marcas pré-proustianas do tempo perdido, matéria de memória mas já conhecida e que, segundo o pensamento de Bergson, se apresentava numa nova ordem, numa idéia radicalmente nova e simples, captada pela intuição. Era, enfim, uma dupla Transparência: a do próprio passado de Rousseau e a de sua época, iluminada agora pela consciência que se formava entre luz e sombra, alastrando-se pela filosofia, pela política, pelas artes e pela literatura como um rastilho de pólvora. Na belíssima imagem que Starobinski vai buscar em Hölderlin, Rousseau é a “águia que voa ao encontro da tempestade”.
A tensão estabelecida entre a Reforma e a Contra-Reforma no século XVI fez com que a arte clássica pusesse todos os seus meios de representação a serviço da imagem clara, da forma nítida, transparente em si mesma, de tal maneira que o que não fosse claro era tido como não-canônico, errado ou defeituoso. Mas no final do século aparece outra concepção de arte, a de que, jogando com a luz e com as sombras, cria-se um sentido de obscuridade em meio à claridade absoluta. A representação já não coincide com a nítida aparência das coisas, quer as nuances, o sombreado, o indefinido das formas. A transparência clássica convive agora com outro conceito de “transparência”, a do simultaneamente claro e escuro, não inteiramente opaco, mas translúcido, assim como a forma começa a transitar do fechado para o aberto. Há portanto uma modificação na maneira de olhar e ver as formas da arte, principalmente na pintura, o que vai continuar pelo século XVII e por grande parte do XVIII. No entanto, no século XVIII, ela vai encontrar um sentido próprio, revolucionário, assim como, no final do século XIX, transformar-se-á em vanguarda nas manifestações de vários movimentos artísticos.
Desconhecida das civilizações pré-históricas, cuja expressão artística era puramente bidimensional, a técnica do claro-escuro foi a grande revolução da pintura barroca, onde o seu conceito se firmou como técnica de distribuição de luzes e sombras num quadro, dispostas de tal maneira que adquirem novo valor na relação de umas com as outras. O claro-escuro cria uma nova forma de transparência, atua na percepção do relevo e das distâncias, introduz a variedade e dá nova unidade às formas e cores da verdade pictórica, chegando-se hoje a ser tomada como a própria estrutura de uma tela. Aí o conceito de Transparência perde muito da sua diafaneidade do século XVIII, uma vez que as formas artísticas (pintura, escultura, arquitetura, música e literatura) se contentam agora com o seu autotelismo, num jogo de aparência e transparência.
Nos estudos sobre a arte no século XVIII, a palavra véu adquire função de termo, aparecendo como metonímia de transparência: está contígua a ela e, assim, se deixa tomar por ela, num processo de metáfora-metonímica. Em Le clair et l’obscur à l’âge classique (2001), Alain Faudemay analise a persistência paradoxal da obscuridade no século das “Luzes”. Assim, escreve que “Para muitos pensadores, no século XVII, existem duas ‘luzes’
nitidamente distintas: a que é ‘natural’ e iluminada pela razão, e a que é ‘revelada e concedida por Deus’. As duas viviam em equilíbrio, respeitando as suas funções e os seus limites, mas algumas vezes se confundiam, como nos casos da moral.
É aí que entra em cena o Véu, palavra de forte reiteração tanto no livro de Starobinski quanto no de Alain Faudemay. Este, por exemplo, a propósito do Emile, de Rousseau, fala sobre o jogo das “Luzes” como educação do gênero humano, mas fala também da “obscuridade divina” utilizada pelos filósofos que recomendam uma parte de obscuridade voluntária para se dirigir ao público:
      Ainsi, l’obscurité, dont les sprits religieux reconnaissaient la place dans la pensée chrétienne en vient à caractériser celle-ci, au point d’en exclure les lumières. [...] Ils [os ‘’filósofos’’) recommandent en effet une part d’obscurité volontaire, mieux adaptée que la pleine lumière au public de mal voyants auquel ils s’adressent.
Em relação ao véu, à obscuridade transparente”, Alain Faudemay cita a obra de Vivant Denon (Point de lendemain) que “associe d’un part une ‘nature’ omniprésente et comme divinisée, exaltant la nudité, e d’autre part des ‘voiles’ répétés, qui emblématisent ceux Rhétoriques, d’un langage plus chaste que ce qu’il désigne:
      La nuit était superbe; elle laissait entrevoir les objets, et semblait ne les voiler que pour donner plus d’essor à l’imagination ; [...] L’obscurité était trop grande pour laisser distinguer aucun objet ; mais à travers le crêpe transparent d’une belle nuit d’été, notre imagination faisait d’une île qui était devant notre pavillon un lieu enchanté.
Tratando da “volutuosidade do véu’’, cita Santo Agostinho (Da doutrina cristã), comentando que há uma face do desejo ligada à obscuridade e bem expressa pela metáfora do véu (na verdade, uma metonímia ou uma metonímia metafórica): “Porque o véu é ambíguo. Ele pode servir para esconder, aguça a vontade de o tirar, de o rasgar ou de o profanar: o véu que esconde dos olhos do amado a beleza de Doña Esvira a torna mais desejável aos olhos de D. Juan’’.
A partir de Quintiliano a retórica praticamente completou o processo de criação das figuras que a ideologia intelectual da época necessitava e permitia. As figuras exercem um notável efeito sobre o público, seja efeito “realista’’ (ou de credibilidade) ou “emotivo” (de afetividade). A maioria dessas figuras chegaram até nós e os tratados de retórica podem, hoje, beneficiar-se com vários termos provenientes da semiologia e da linguística modernas. Uma das figuras mais exigidas pela retórica antiga era a clāritas (e o seu cognato clārus). Através delas descobriram o vītium, contrário a percūrsiu e à evidēntia, que é afetiva, enquanto a percursiose conforma com o objetivo intelectual. É pela clāritas que se percebe o efeito estético da verossimilhança (similitūdo), ornato do paralelismo destinado a comprovar se a força poética está de acordo com a “realidade”. Para isso o ornātus há de ser claro: o conteúdo da imagem há de ter um grau de cognoscibilidade superior ao da coisa ilustrada pela comparação. O uso do ornato provém da necessidade que toda pessoa (falante ou ouvinte) tem de que “haja beleza nas expressões humanas da vida e na apresentação do próprio homem em geral. Deste modo, o ornātus, com a sua intenção criadora, atinge o domínio das artes elevadas”.
Embora os retóricos não tenham diretamente percebido a transparência como uma figura de linguagem, ela pode ser vista na oratória e na literatura comoquālitas, isto é, como elemento importante para a expressão de certos conteúdos. Podemos vê-la hoje como um tropo situado entre o plano de expressão (o significante) e o do conteúdo (significado), funcionando ao mesmo tempo como metonímia e como metáfora. Neste sentido a transparência está contígua ao significante, é uma parte dele, a sua qualidade de ser permeável pela luz, pela razão, pela inteligência; e, ao mesmo tempo, está em lugar do significado, mostrando não como exatamente é, mas modificado pelo olhar penetrante do observador (cientista, crítico, leitor). Em A escrituração da escrita (1996), já havíamos falado datransparência e da opacidade como figuras que têm sido usadas para distinguir os discursos das linguagens comum e literária.
Chegamos a esta observação por intermédio de Tzvetan Todorov (Littérature et signification, 1967), para quem o discurso comum é transparente, é um discurso aparentemente sem figuras, que deixa apenas “transparecer” o conteúdo da mensagem, ficando "invisível" para o leitor. Nele só há praticamente uma referência, tanto para o ato de enunciação como para o da leitura do enunciado: a mensagem do emissor é descodificada quase totalmente (ou até totalmente) pelo receptor, pois os semas postos em circulação são os semas essenciais à comunicação da linguagem quotidiana. Já o discurso literário é um discurso opaco (ou translúcido), coberto de "desenhos", de figuras, um discurso que, em vez de mensagem, isto é, em vez de conteúdo, tem o privilégio de se mostrar ao leitor, alterando pela retórica o sentido do significante e do significado, ficando a cargo do leitor complementar as conotações. É que nesse tipo de linguagem se interferem os semas particulares que conotam as experiências do emissor e do receptor, semas que, conotando o real (a experiência de cada um), motivam o espaço da figura, os tropos que vão fazer o discurso ficar "visível" como na frase de Roland Barthes: "J'ai une maladie: je vois le langage".
Essa possibilidade de “ver” a linguagem, avaliar a sua transparência e opacidade, é que nos leva ao conhecimento poético, conforme escrevemos numa entrevista sobre poesia:
      é uma linguagem artisticamente construída, mas linguagem. A poesia é também um meio de comunicação, só que não lhe interessa comunicar o comunicável, os conteúdos comuns da linguagem comum. Ela se empenha em comunicar as marginalidades, no sentido de que, como uma “religião”, ela revela para os iniciados aspectos indizíveis, os fatos e as formas que, despidos de expressa utilidade pública, carecem de valores práticos e ficam desconhecidos, marginalizados na sociedade. Mas a poesia tangencia também o surreal, o mundo dos valores mágicos, sobrenaturais e põe de repente o homem diante da transparência de uma realidade maior, absoluta, que o envolve ao mesmo tempo no passado, no presente e no futuro, abolindo-lhe o tempo e lhe dando a condição de herói, herói da totalidade de seu cotidiano e de sua própria perplexidade.
E acrescentamos: “A poesia mostra ao homem outros sentidos da existência, integra-o na plenitude da sua cultura, dá ênfase ao visível e escancara as janelas do invisível, amplia portanto o seu universo e lhe restitui a ilusão de sua divindade, desde que lhe dá o poder da criação através da linguagem”.
Uma linguagem diáfana, porque é “através dela” que se “vai além”, à transparência do que se deixa ler como Poesia. É por isso que os tiranos de todos os tempos e lugares temem os poetas e a poesia: eles desvendam os sentidos subversivos da linguagem. Não é à toa, portanto, que, para Hölderlin, a linguagem, melhor, a linguagem poética, é ao mesmo tempo a mais inocente das ocupações e o mais perigoso dos bens.
À guisa de conclusão, veja-se a análise que José Fernandes fez do poema “Álibis”, que abre o livro Álibis (2000), em Hora aberta (2004), poemas reunidos de Gilberto Mendonça Teles:
ÁLIBIS
      Quando desejo fortemente
      uma mulher iniludível,
      ouço primeiro alguns conselhos
      do Opó-rapá-cupú-lopó.
      Depois invento um assobio
      sibilino,
      pio ou psiu:
      logo uma virgem me acompanha
      ao ponto extremo da linguagem.
      Do contrário não haveria
      outro lugar para os meus álibis,
      nem a mulher irresistível
      se deitaria assim num anagrama.
A primeira observação do ensaísta diz respeito ao ritmo octossilábico do poema que termina, entretanto com um decassílabo. Este tipo de verso, com acento na 4ª e 8ª sílabas predomina no poema (em 9 dos 12 versos) e dá-lhe – escreve José Fernandes:
      um ritmo de prosa, como se o poeta quisesse contar uma história e estivesse receoso de contá-la, precisando primeiro ouvir o conselho de alguém. Mas esse “alguém” estámascarado por um jogo de linguagem: primeiro pela simples transparência de palavras, esse lado diáfano do objeto verbal, que é o poema; depois, por uma Transparênciamaior e mais profunda, cujos níveis de significação se vão desdobrando pelo texto a dentro.
O crítico fala a seguir do desdobramento que se dá por meio de uma série de recursos retóricos, através do anagrama do título (álibis / Sibila); da evocação de uma mulher que não admite dúvida, mas que não aparece no texto (a profetisa de Delfos); da alusão literária a um poema de Manuel Bandeira, onde se fala da morte como a “Iniludível”; de um trava-língua que oculta a palavra “oráculo”; de associações fônicas (assobio / sibilino que chama a Sibila como se chamasse a atenção de uma mulher); de alusões mitológicas (referência à virgindade da Sibila); de concepções teóricas (considerar o poesia como “o ponto extremo da linguagem”; de alusão aos poemas amorosos do livro (“os meus álibis”); a repetição modificada do segundo verso e a permuta de “iniludível” por “irresistível” antes de deitar a Sibila no anagrama, calando o nome da pitonisa e todo o ato amoroso que se pode imaginar, além de uma autocrítica humorística ao verso decassílabo, censurado por um crítico que achava que não se devia mais usar esse tipo de verso. Todo o poema, afinal, deixa transparecer, por fragmentos, o corpo despedaçado, não de Osíris, mas da profetisa, cujo espírito o poeta convoca para ir recompondo e configurando o seu corpo no poema. A idéia geral deconvocação da Musa, da Sibila, de uma ajuda “sobrenatural” para o poema, assim como o fizeram Homero, Hesíodo, Virgílio, Camões e o próprio Gilberto na suaSaciologia goiana, não passa de estratégia para dar a ilusão de que o que se vai ler é de inspiração “divina”.
José Fernandes, como crítico perspicaz, soube ver na transparência um feixe de vários raios de luz atravessando o poema e deixando na travessia o sentido do claro-escuro do discurso literário. Na Nota” para a segunda edição de seu livro O poeta da linguagem (1983), dedicado ao estudo da poesia de Gilberto Mendonça Teles, agora reeditado em O selo do poeta (2005), o crítico escreve que:
      Tratando-se de arte literária, mormente da poesia de GMT, eu não poderia ter criado melhor símbolo para a sua obra, uma vez que a ação de selar implica fechar, lacrar, reservar, o que transforma o selo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em símbolo do segredo. O que define um bom poema se não a capacidade de revelar escondendo e esconder revelando? [...] O enigma é a marca, o estigma da produção poética de Gilberto Mendonça Teles, não só nos poemas visuais, mas em todos os poemas, desde que lidos em profundidade.
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