Antônio Torres - "De onde vêm esses seres?"




Beth Brait, no seu livro A Personagem, dedica um capítulo para  ouvir o que alguns escritores contemporâneos têm a dizer sobre os seus personagens: como surgem? de onde vêm, quem são esses seres? Reproduziremos, aqui, ao longo desta semana, tais depoimentos, começando com o Escritor Antônio Torres. Boa leitura! 



Eles vêm do fundo de uma gaveta chamada memória. Aparecem quando menos esperamos. Rondam as nossas noites, nos perseguem por madrugadas a fio. A princípio são imagens vagas, feições humanas de quem mal nos lembramos, sombras de um passado que o presente quer resgatar.

Convivo com esses seres durante meses, às vezes durante anos, até pularem sobre o teclado. Engata a primeira frase, eles, o seres reais que me serviram de ponto de partida para o romance, vão desaparecendo e dando lugar ao que chamamos de personagens. Uma gente que se cria, anda por suas próprias pernas e nos impõe o seu próprio destino.

Foi assim com Um cão uivando para a lua: uma visita de poucas horas a um amigo que se encontrava internado numa clínica psiquiátrica no Rio de Janeiro – e que me abalou profundamente – viria a gerar um personagem chamado “A” e seu duplo “T”. Assumi a primeira pessoa, enquanto narrador-personagem, e até hoje todo mundo pensa que é um romance autobiográfico.

Já em Os homens dos pés redondos a imagem que me perseguia era a de um desenhista que trabalhava comigo num casarão mal-assombrado, na cidade do Porto, Portugal. Ele andava com uma tesoura no bolso e me dizia que ia matar o nosso chefe. Não o fez. E me deu um romance.

Com Essa terra  a história é mais longa. Custou-me duas viagens ao sertão da Bahia. Eu qeria saber quem tinha sido o homem que, depois de muitas idas e vindas no eixo Nordeste-São Paulo, acabou por se enforcar no armador de uma rede. Mas todas as pessoas do lugar se negavam a tocar no assunto. O romance, então, foi se fazendo à medida que eu ia percebendo que a negação dos fatos era o próprio fato, em relação à tragédia daquele homem. Por falta de dados, a pessoa que eu buscava desapareceu. Aí nasceu o personagem.

Carta ao bispo foi escrito em homenagem a um primo meu, um grande amigo, político amador, que queria inserir o nosso pobre lugarejo no mapa do mundo. Ele tomou veneno na casa do bispo de Juazeiro. Me contaram que, envenenado, ele andava por um corredor, deixando marcas de sangue – marcas das suas mãos – nas paredes. Bastou esta cena para me ajudar a criar todo o romance.

Quanto ao Adeus, velho, que conta a saga de uma família de dezoito irmão, foi inspirado por velhos recortes de jornais sobre a prisão, em Salvador, de uma moça do sertão acusada de um crime que não cometera. A imprensa assumiu um papel de juiz e a condenava, provocando um grande escândalo. Isso me chocou.

Finalizando: quanto a mim, o personagem surge com uma lembrança, um fato, qualquer coisa que me toca, no presente, em relação a qualquer coisa que me tocou, profundamente, no passado.


In. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985, p.71-72.
Imagem retirada da Internet: Antônio Torres

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