Valdivino Braz - Conto

Valdivino Braz



Os lírios do brejo


          Grilos e sapos nos brejos, e ele a estortegar-se todo, no leito de palha, entre gemidos e bufos de bicho agoniado. Do outro lado da parede de taipa, a voz rouquenha de Sinhana:
      — Que é isso, Menino?
      Silêncio como resposta, o rosto afundado no travesseiro de paina, abafando a agonia. A noite. Os grilos. Os sapos. E novamente Sinhana: 
      — Sossega, Menino. Dorme.
      Menino era como a velha Sinhana chamava a um homem já feito, de nome Benedito, abrutalhado e meio palerma, filho bastardo de Quim Borba. No papel de avó, e num senso de caridade, ela tomara a criança sob seus cuidados, porque morrera-lhe a mãe, de nome Olívia, que o parira a susto de má hora, de forma traumática, donde a falácia de que o menino, cabeçudo e horroroso, era fruto de parto maldito, por vias adúlteras. Olívia era irmã de Jovina, mulher de Quim Borba, e finou-se em consequência da quebra de resguardo. Ressentida com a traição do marido, Jovina não quis saber da criança, “o amaldiçoado”, dizia ela, que nunca tivera filhos porque abortava toda vez que o Quim lhe botava um feto no útero. Além do mais, agora também já não era deste mundo, a Jovina: caiu do cavalo, quebrou o pescoço, morreu.
      Custava a dormir, o Menino. Noite adentro no seu desassossego, enquanto lá consigo mesmo não se aliviasse. Só então lograva adormecer, só então a avó também dormia, que antes ficava escutando tudo e pensando na linha torta que fora a vida de Quim Borba. Os bens que ele possuía — as terras, o gado, o engenho de açúcar mascavo, com os tachos pro melado e fabrico de rapadura —, perdeu tudo no jogo e nas farras de puteiro do povoado ou nos distantes cassinos e cabarés por onde passava. Perdeu-se a conta das mulheres que ele botava por sua conta. Contando, ninguém acredita, mas até dois dentes de ouro que tinha na boca ele arrancou pra vender e apostar na mesa de carteado. Pra ela, Sinhana, ficou só a casa em ruínas, numa nesga de terra que sobrou, e ali o neto abobalhado.
      De manhãzinha, mal os galos abrissem o bico nos poleiros, aquele meninão desajeitado se levantava, retirava os paus roliços da porta da sala, saía lá fora e urinava. Quedava-se, depois, a contemplar, atoleimado, a bruma da manhã e os vultos cinzentos das imbaúbas ao redor; a mão distraída nas virilhas, fuçando uma virilidade meio descomunal. Bruscamente, chutava um troço qualquer e resbunava com o seu jeito de bicho.
      Nas tardes, ao pôr-do-sol, costumava subir num tronco caído e ali demorar-se viajando os olhos pela soturna solidão sertaneja, contemplando o horizonte longínquo, esbraseado pelos matizes do crepúsculo. E quando a sombra da noite precedia a melancólica melopéia dos charcos, ele descia do tronco e, cabisbaixo, recurvo tamanduá, voltava pra casa. Quase sempre colhia lírios do brejo, como por ali chamavam a flor-de-são-josé, e oferecia-os a Sinhana, que os recebia calada, já meio maquinalmente, e colocava numa vasilha com água.
      Por vezes, plantava-se o Menino no meio do terreiro, a botar sentido nas manobras dos galos, assediando as galinhas, e não foi uma nem duas vezes que a avó se deparou com algumas delas mortas atrás das moitas, a princípio supondo tratar-se de peste ou cobra venenosa (!), até percebê-las estrompadas, com a cloaca em petição de miséria. Então chamou o bastardo pra uma conversa ao pé da letra, inclusive aplicando-lhe uns croques na cabeça deformada, anormalmente avantajada e assim no feitio de careta-de-caju, como se diz da castanha desse fruto. Depois dos croques foi que ele mudou o rumo de seus instintos.
       Uma tarde, Sinhana tomando banho na bacia, no quarto, o mondrongo vai lá e arranca o ensebado trapo de linhaça que serve de cortina. Sobressalto e as mãos encarquilhadas cobrindo as partes de baixo, a avó meio se curvando para isso e as mamas murchas penduradas feito mamões-de-corda. Os gritos indignados, que ele saia dali, que a respeite! O murro no queixo, como um coice de cavalo; Sinhana caída no chão batido, a besta já em cima dela, entrando nela com tamanho ímpeto, e cravando-lhe os dentes na muxiba dos peitos, raivoso morcego, ou fome de menino desmamado muito cedo.
*
       Três dias ele andou fugido, bicho do mato, comendo raízes e frutos que encontrasse. Sinhana a esperá-lo, no tempo todo a vigiar os arredores, perscrutando moitas e vultos de paus cinzentos. Varrendo a casa ou cuidando das panelas, não se descuidava nunca. Rastejar de réptil, voejar de pássaro ou mero farfalhar de folhas e a mão saltava para o porrete ali no jeito. Caso o engano, a velha tornava aos afazeres, mas sempre de olho, vigilante.
       Tardezinha do terceiro dia, olhe ele lá, furtivo, se esgueirando entre as árvores. Ligeira, Sinhana pegou o porrete, colou-se à parede junto à porta da cozinha e, os olhos metidos numa fresta do reboco, esperou.
       Benedito deixou, afinal, a proteção do arvoredo, e avançou, ressabiado, a terreno descoberto. Então Sinhana avistou, na mão pendente do neto, o molhe de lírios-do-brejo. Também reparou no aspecto andrajoso e abatido com que ele vinha, meio trôpego, e seu coração vacilou, penalizado: a pobre criatura de Deus, que era o Menino. Mas, não! Não podia fraquejar. O que lhe fizera o motreco, não merecia clemência. Abusar de uma velha sofrida que nem ela, já se viu? Bisca ruim é cobra criada, que a gente mata sem dó nem piedade, Quim Borba já dizia. Mas Sinhana agora ponderava que ali era o seu neto, o filho de seu filho, embora fosse um jumento sem juízo.
      Intensa luta íntima, o coração em dúvida, dividido, ora impiedoso, ora amolecido; bambas e trêmulas as pernas da pobre mulher. Benedito já quase no limiar da porta. Não, não tinha coragem!, Sinhana ainda em conflito, justo quando o neto transpõe o umbral, e uma só a porretada que o derruba, confusa a reação da avó, de joelhos agora, em desespero, chamando o Menino desfalecido; as mãos dela querendo mas não completando o gesto de pegar a cabeça ensanguentada, pegando, porém, os lírios espalhados no chão, e, no átimo do momento, mordendo-os um a um, ganindo e estraçalhando as flores com os dentes, como se possuída por uma fúria canina. Uma coisa de doido, ainda por explicar-se.
      Depois do acontecido, amiúde Sinhana era vista nos seus trapos, mexendo com barrela no terreiro e cantando antigas modinhas de amor. Ou então ali sentada num banco, tendo o neto Benedito, que não morrera com a paulada, ajoelhado no chão e com a cabeçorra em seu colo, enquanto ela se punha a catar-lhe gordos piolhos; dela o prazer de ouvir cada estalo ao esmagá-los com as unhas. E assim foram levando a vida por ali. Dizendo as más línguas que a velha teria reacendido o fogo morto no vão das pernas e tomado gosto pelo neto em cima dela.
       Os lírios perduram nos brejos. Por menor que seja, também uma florzinha do campo conduz o sentido de sua existência. “Uma florzinha é o labor dos séculos”, como disse o poeta William Blake ao escrever os “Provérbios do Inferno”.
 — o —

Valdivino Braz é jornalista, escritor e poeta. Secretário-geral reeleito da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás (UBE-GO), em Goiânia. Em 2011 e 2012, fez um curso de cinema na PUC Goiás, com o professor Leandro Cunha, e participou da realização do documentário “Sol Inimigo – O drama do povo de Araras” (sobre câncer de pele no interior goiano), lançado durante o 14º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), em 2012, na Cidade de Goiás. Publicou 16 livros, oito deles premiados em concursos. De sua autoria, “A trompa de Falópio — Rapsódia de Homero Canhoto” (poemas) foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte (1992). Dois de seus livros publicados são de contos: “Cavaleiro do Sol” e “Morcegos atacam o vampiro”. Seu romance “O Gado de Deus” (2009) conquistou o Prêmio Nacional Colemar Natal e Silva (2010), da Academia Goiana de Letras (AGL). Em 2011, com o romance “Redemoinho”, venceu, pela terceira vez, o concurso da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, patrocinado pela Prefeitura de Goiânia. Braz afirma que toda a sua obra é imperfeita, em múltiplos aspectos, impondo reparos para o caso de futuras edições. Em 1996, recebeu o Troféu Tiokô de Poesia, da UBE-GO. Em 2004, o Troféu Goyazes de Poesia Leodegária de Jesus, da AGL. Em 2012, foi agraciado com a Medalha de Mérito Cultural, concedida pelo Governo do Estado, por meio do Conselho Estadual de Cultura. Ainda em 2011, visitou parte da Europa: Holanda (Amsterdã e outra localidades), Londres, Paris e Bruxelas (Bélgica).


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