Otto Lara Resende - Conto



O elo partido



Subitamente, não sabia mais como se ata o nó da gravata. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. Uma vez, outra vez — e nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele pedaço de pano dependurado no seu pescoço. Vagarosamente, tentou dar a primeira volta — e de novo parou, o gesto sem seqüência. Viu-se no espelho, rugas e suor na testa: a mão esquerda era a direita, a mão direita era a esquerda.

— Vou descendo — anunciou a mulher, impaciente.

— Escuta — disse ele forçando o tom de brincadeira. — Como é que se dá mesmo nó em gravata?

— Engraçadinho — e a mulher saiu sem olhá-lo.

Quanto tempo durou aquela hesitação? Essa coisa familiar, corriqueira, cotidiana — dar o nó na gravata. Uns poucos segundos, um minuto, dois minutos ou mais? O tempo da ansiedade, não o do relógio. Não fazia calor, e nas costas das suas mãos começou a porejar um suor incômodo. Assim como surgiu, na mesma vertigem, passou: logo suas mãos inconscientes se organizaram e, independentes, sem comando, ataram a gravata e o puseram em condições de, irrepreensivelmente vestido, sair de casa. Ia a um jantar.

Estimulado pelo uísque, desejoso de atrair a atenção dos circunstantes, ocorreu-lhe, no meio da conversa, contar o pequeno incidente pitoresco:

— Agora mesmo, em casa. Ao me vestir. Esqueci como é que se dá o nó da gravata.

E antes que despertasse qualquer curiosidade, uma chave se torceu dentro dele. O fato insignificante deixou de ser engraçado. Uma aflição mordeu-o no íntimo. Como uma luz que se apaga. Uma advertência. Um sinal que anuncia, que espreita e ameaça.

— Essa é boa — curioso ou simplesmente gentil, um dos ouvintes procurou estimulá-lo.

Mas o ter esquecido como se dá o nó da gravata já não era apenas um incidente pitoresco. Disfarçou o próprio desconforto e, grave, interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer como é que se ata a gravata fosse logicamente sucedido da incapacidade de contar.

Apenas um lapso, que pode acontecer com qualquer um. Tolice sem importância. E nem se lembrou mais, até que dias depois, achando graça, a mulher tirou-o da dificuldade: atou por ele a gravata desfeita na sua mão. Uma terceira vez ocorreu dois dias depois. “Estou ficando gagá”, pensou, entre divertido e irritado. Retirou-se do espelho e procurou com calma recuperar a inocência perdida. Pois era como ter perdido a inocência, de súbito autoconsciente.

Mas logo esqueceu e saiu para a rua, como todo dia. Pegou o carro e, autômato, foi até o edifício do escritório. Estava na fila do elevador, quando deu acordo de si. Era o terceiro da fila. Bem disposto, recém-banhado, cheirando à nova loção de barba, o estômago nutrido pelo recente café da manhã, olhava com magnanimidade o dia que o esperava, o mundo em torno. Pulsava nas suas veias sãs uma suculenta harmonia. Presente tranqüilo, futuro próspero. Confiava em si, confiava na vida.

Só o elevador demorava mais do que de costume, pequeno borrão na manhã alegre e amiga. Não fazia sentido aquela demora que, de repente, perturbou-o como um cisco no olho. Agarrado à pasta como se temesse perdê-la, verificou que o elevador continuava parado no sétimo andar, exatamente o do seu escritório. Queria não pensar em nada, apenas esperar como todo mundo, mas via com nitidez, como se estivesse de corpo presente no sétimo andar, um contínuo fardado a segurar a porta do elevador que se abria e se fechava por meio de uma célula fotoelétrica. Dois homens tentavam a custo enfiar dentro do carro uma mesa de escritório. Era a sua mesa, mas muito maior. Seus papéis pessoais, sua caneta, as gavetas devassadas.

Fechou os olhos, meio tonto, reabriu-os. A fila crescia, ninguém conhecido. Olhou a nuca do homem à sua frente: toutiço sólido, de cinqüentão próspero. Jurava que agora o elevador vinha descendo. Quis certificar-se e deu com a luzinha sempre acesa no sétimo andar. Outra vez, como se a tudo assistisse, viu o contínuo segurando a porta do elevador e dois homens de macacão tentando irritadamente encaixar lá dentro a mesa enorme. Na fila, ninguém dava mostra de impaciência. A rua ao sol lá fora — gente e carros passando — movimentava-se como todo dia. Pouco adiante, matinal, recém-florido, aparecia um trecho do jardim.

Mas o elevador continuava parado no sétimo andar. Retirou o lenço do bolso e, a pasta debaixo do braço, enxugou a fronte e o pescoço. Vinha-lhe de longe um desconforto a princípio moral — como se tivesse cometido uma falta grave que ali mesmo ia ser descoberta. Depois um mal-estar físico, como se tivesse perdido a carteira, alguma coisa que o diminuísse, uma vez desaparecida. Olhou o relógio de pulso, procurou conformar-se, esquecer que esperava. Há quanto tempo esperava o elevador? No sétimo andar, a mesa, a sua mesa, era grande demais para passar pelas portas que o contínuo continuava a imobilizar.

Dentro dele, um desejo minucioso de examinar-se. Como costumava fazer quando ia viajar. Arrumar a mala sem esquecer nada, um lenço sequer. Começava pela cabeça: pente, escova, loção. O aparelho de barba. As gravatas, as camisas, as cuecas. Peça por peça, ia passando tudo em revista. Mas naquele momento era como se tivesse esquecido qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos da fila cada vez mais numerosa.

Quando a revisão a que se submetia chegou aos pés, ocorreu-lhe que tinha se esquecido de calçar as meias. Tentou sorrir da dúvida disparatada. E queria lembrar-se, ter certeza das suas meias, do momento em que as calçara. Recompunha cada detalhe de tudo que tinha feito desde o momento em que acordara. A barba, o banho de chuveiro, todos os atos, que, automáticos, inauguravam um novo dia, um homem novo. Usava habitualmente só meias cinzas, azuis e pretas.

De que cor eram, naquele momento, as suas meias? Um desejo ardente de esticar uma perna, depois a outra, arregaçar as calças e olhar, comprovar. Mas o medo irracional do ridículo, como se toda a fila acompanhasse a sua preocupação e esperasse apenas um gesto de sua parte para vaiá-lo. Sorriu sem sorrir, o sangue estremeceu pela altura do peito até o pescoço. Lá em cima, no sétimo andar, interminável, continuava a luta para meter a imensa mesa no elevador — e era como se estivesse presente, a tudo assistia.

A obsessão agarrou-o: de que cor eram as meias, de que cor? As suas meias, as que usava naquele exato momento. De que cor eram? Procurou se lembrar das circunstâncias com que em casa se vestiu, sua rotina, uma cadeia de gestos repetidos inconscientemente. Mas agora precisava lembrar-se: as meias? Tinha vontade de suspender a calça e olhar, mas se continha. Nada o denunciava, um cidadão como outro qualquer, um cavalheiro, impecável, à espera do elevador, que todavia não se deslocava do sétimo andar — a luzinha continuava acesa. E ninguém, na fila aumentando, se impacientava. Como se só a ele coubesse quebrar o silêncio. Todos o observavam.

Até que foi invadido pela certeza cruel de que usava meias vermelhas, um grito de sangue na sua indumentária azul. A gravata era azul, podia ver. A camisa era branca. O terno era azul. Mas as meias. As meias berrantemente vermelhas tornavam os seus pés alheios, episcopais. Estava de pé sobre pés estranhos, sapatos quem sabe de fivela e meias cardinalícias. Seriam rubras, eram, podiam ser?

Enxugou o suor no rosto, agarrou-se aflito à pasta como se, para existir, para continuar na fila, precisasse dela. A fila silenciosa, irritantemente tranqüila, aguardava um sinal para protestar, começar o motim. A manhã perfeita, luminosa. Lá fora, os carros e as pessoas passando. Mas as meias eram inabsorvíveis. Onde é que fora arranjar aquele par de meias, santo Deus? Ocultas ainda sob as calças, ameaçavam vir a público, denunciá-lo. Agora tinha definitivamente certeza: um escândalo, ridículo, um vermelho-vivo como o sangue fresco de um touro.

Súbito, como se tivesse estado distraído, ou dormindo, o elevador escancarou a porta no andar térreo. Sentiu-se paralisado, preso ao chão, incapaz de locomover-se como as pessoas à sua frente, como os que se postavam às suas costas. Procurava, pasmo, os dois homens de macacão, o contínuo uniformizado — e a mesa, a sua mesa. Mas só via o elevador, como sempre, como todos os dias. Foi preciso quase que o empurrassem, as grotescas meias vermelhas, para que ele, morto de vergonha, sem poder olhar os próprios pés, se animasse a entrar no elevador.

Saltou no sétimo andar e, por um triz, ia deixando cair a pasta. Trancou-se na sua sala. A mesa, devolvida às dimensões normais, continuava lá, imóvel. Finalmente tomou coragem para verificar. Suspendeu as calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo as suas meias eram azuis. E os sapatos voltavam a ser os seus sapatos. Movia-se outra vez com os próprios pés. O telefone o chamava. Foi falar ao telefone. E o dia prosseguiu, na sua confortável rotina. Nem de longe podia pensar em contar para alguém. Não havia o que contar.

O tempo passou. Nada fora do comum aconteceu nas semanas seguintes. A não ser um pequeno desmaio da memória: esquecera o nome de um amigo de infância. Teimoso, idéia fixa, passou horas tentando lembrar. Não podia dormir sem que lhe viesse o nome que escapava. Uma falha na cadeia lógica e vulgar das lembranças que cercavam aquele antigo colega de ginásio. Puxando pela memória, reavivou pormenores há muito sepultados pelo tempo. Mas o nome. O nome não lhe ocorria. Sob a língua. Ou na ponta da língua, mas inarticulado, desfeito. Como a gravata, trapo inútil incapaz de organizar-se no nó. Tinha de esquecer que esquecera, para então recuperar, espontâneo, o que com esforço não conseguia arrancar de dentro de si mesmo. Tudo perfeito, alerta, mas um pequeno colapso insistente, inexplicável. Via a cara do companheiro, ouvia-lhe a voz, podia descrevê-lo traço por traço. Mas o nome. O nome por atar. Dormiu frustrado, mais aborrecido do que seria natural diante de lapso tão inexpressivo.

— Gumercindo — no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.

Amnésias assim, sabia, acontecem a todo mundo. Não chegam a ser tema de conversa. Deu de ombros, não comentou nem com a mulher. Dois ou três dias depois, porém. Numa noite em que se recolheu mais cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à cama e não conseguia deitar-se a cômodo, como toda noite.

— Como é mesmo que eu durmo? — queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono, insabida. Probleminha idiota, mas que o desorganizava mentalmente e súbito o lançava numa aflita perplexidade física. Deste lado: não era. Virou-se do outro lado: também não era. Estendeu-se de costas: as mãos sobravam, os braços não se incorporavam à rotina. Como distribuir o corpo na cama? Cruzou os braços no peito e sentiu-se estranho, ridículo. Cruzou as mãos e pareceu sinistro, fúnebre. Era como se antecipasse o defunto que não queria ser. Angustiante idéia da morte.

Até que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera dar o nó na gravata. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um episódio ao outro. Nada de particularmente alarmante, só uma ponta de grotesco. Vexame. Ajeitou o travesseiro, a cabeça alta demais. Afastou o travesseiro e enfiou a cara no colchão como se procurasse com alívio uma forma de sufocação. Insustentável, esticou as pernas e dividiu-se em dois. Recolheu as pernas, dobrou os joelhos, mas ainda assim não conseguiu retomar a naturalidade. Buscava um ponto de equilíbrio e não o achava. Seu corpo exigia um prumo inencontrável. De barriga para baixo, a cabeça sobrava, pesava, descomprometida. Não era assim. Nunca foi assim. E o tempo passava; o sono não vinha. Sentado na cama, passou a mão pelos cabelos ralos e procurou controlar-se. Que é que estava acontecendo? Ansiedade sem sentido, tolice. Decidiu recomeçar do princípio e ainda sorriu do próprio embaraço. Tinha a sua graça. Um cidadão morto de sono esquecer como é que costuma dormir. Virou a cabeça para a esquerda. Para a direita. Para a esquerda. Para a direita. A cabeça sobejava mesmo. Num princípio de tonteira, a cabeça cresceu de volume e desprendeu-se do corpo, que agora lhe parecia estranho, como se não fosse dele. Outra vez esticado, recolheu as pernas, dobrou os joelhos na altura da barriga. Enfiou as mãos entre os joelhos, enroscado em si mesmo, fetal. Suportou aquela disciplina por alguns minutos; resistindo ao desejo de se levantar, fugir da cama, do sono, de si mesmo. Vontade de esquecer-se, abandonar o próprio corpo, com que já não se sentia solidário.

— Como é mesmo que eu durmo? Como é raios que eu sempre dormi em toda a minha vida? — e não se sentia anatomicamente confortável, como se tivesse perdido uma chave sem qualquer importância — até perdê-la.

Como todas as noites, serena, abandonada, sem arquitetura, a mulher dormia ao seu lado. Impensável acordá-la para perguntar como é que ele dormia. Ficaria uma fera com a brincadeira sem graça. Ou ia pensar que estava louco. Pé ante pé, levantou-se no escuro e foi até a copa. Tudo rigorosamente normal. De pé, seu corpo era do tamanho de sempre, articulado. Abriu a geladeira — a luz da geladeira rasgou um cone de claridade na copa — e bebeu sem sede um copo d’água. Só percebeu que estava descalço quando pisou nos ladrilhos do banheiro social. Sem acender a luz, o medo de não se ver no espelho. O medo de não se reconhecer arrepiou-o. Outra cara, infamiliar, ou quem sabe sem cara. Acendeu a luz: afinal era ele mesmo, banalmente. Com alívio, reapertou a calça frouxa do pijama. Saiu do toalete sem apagar a luz e, outra vez na copa, tomou um comprimido para dormir e, com a mão trêmula, levou um copo d’água para o quarto. A mulher dormia tranqüila. Todo mundo dormia. Devagarinho, sem alterar a respiração, meteu-se debaixo dos lençóis, de costas, os olhos fechados.

E começou a flutuar no espaço. Abria os olhos, continuava a boiar, mais baixo, mais baixo, até chegar ao nível da cama. Fechava os olhos e o jogo recomeçava. Ora só o corpo, girando circularmente, subindo, descendo. Ora o corpo e com o corpo a cama, rodando depressa, mais depressa. Abria os olhos, parava. Mudou de posição: de bruços, como no seu tempo de criança. A mãe lhe trazia o xarope no meio da noite e lhe recomendava que se deitasse de bruços, para vencer o acesso de tosse. Antigamente. Mas agora o sono não vinha. A ponta do sono, inagarrável. O sono desfeito como um novelo amontoado, sem começo nem fim. Sem nó.

Pacientemente, deitou-se do lado direito. Depois do lado esquerdo. Não insistiu na postura: encolheu as pernas, esticou os braços. Um braço recolhido e o outro estendido ao longo do corpo. Não reencontrava a perdida intimidade consigo mesmo. Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele a sua luz amarela. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir. Recostado contra o travesseiro, meio sentado, a noite tinha ancorado para sempre num porto de fadiga e torpor. Noite longa, lenta, oleosa, de silêncio e vácuo.

Um chinelo pendendo do pé. Cochilou na cadeira de balanço, como um agonizante, afinal entregue, que sem convicção espera o amanhecer. Despertou com o corpo dolorido, os pés inchados — na árvore da rua a algazarra dos pardais despertos. O dia clareando, libertou-se da insônia e se meteu na cama até a hora do costume.

Dia estafante, devolvido à rotina como se nada demais tivesse acontecido. Só à noite contou o caso, a insônia, para a mulher, que ouviu calada, irrelevante. Mas não contou o que agora lhe parecia absurdo: esquecer-se, como quem perde uma chave, de como deitar-se para dormir. Era um segredo e uma ameaça. E à distância de algumas horas, remoto como uma experiência alheia.
Naquela mesma noite levou para o quarto e para a cama o temor de que tudo ia se repetir. Pegou um livro, mas não conseguia prestar atenção à leitura. Ligou o rádio. Demorou-se no banheiro. Entrou e saiu do quarto, cortou aplicadamente as unhas dos pés. Ao espelho, observou as rugas nos cantos dos olhos, o cabelo ralo. Com uma pinça, tirou uns fios mais espessos das sobrancelhas. Espremeu os cravos do nariz e arrancou dois ou três cabelos encravados da barba. Queria afastar a lembrança da véspera. Distrair-se.

E dormiu naturalmente, como todo dia. O cotidiano refeito, as noites tranqüilas, repousantes. Até que uma semana depois:

— Esqueci como é que eu durmo — disse ansioso à mulher.

— Bobagem — ela resmungou, morta de sono.

— Minha posição na cama.

— Deita e dorme — disse a mulher imperativa, sem olhá-lo.

Foi a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora, minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma parada, um branco, uma ausência. A falta de uma ponte. Um elo perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que devia continuar sendo, sem interrupção. Fumou cigarro atrás de cigarro. Porque não queria fumar fumava mais. Andava pela casa. Olhava pela janela a rua — a calçada vazia, a árvore, as lâmpadas acesas. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão para nada. Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si mesmo. Tentou dormir no sofá da sala, mas nem o sofá nem a cama acolhiam naturalmente o seu corpo, o seu sono. Dormir era perder a própria companhia.

O dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho e saiu. Foi trabalhar — a incomunicável insônia, de que à luz do sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.

— Que é que há com você? — a mulher deu enfim sinal de perceber.

— Nada.

— Então dorme.

O horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo. Tinha medo e orgulho — um homem diferente. Sua singularidade ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si mesmo.

— Por que você não consulta um médico? — a mulher desconfiava.

Pequenos derrames imperceptíveis — leu numa revista vagas informações sobre problemas que os neurologistas estudam. Falhas de memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar mesmo um clínico: medir a pressão, o sangue. Mas não gostava de médico e confiava na saúde de ferro. Deixou de preocupar-se com o nó da gravata. Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.

Uma tarde, ao falar pelo telefone. Era com o sócio, com quem se dava bem, prosperavam. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois não conseguia se lembrar da cara do sócio. A voz conhecida, a conversa nítida, o riso de sempre, os mesmos cacoetes — mas como era mesmo a sua fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? Transpirava como se estivesse numa sauna. E aquele vazio: a cara, como era a cara? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o ameaçava. Ansioso sinal, plano inclinado.

Trancou-se no banheiro e lavou várias vezes o rosto. Precisava refrescar-se, afogueado. Um frio fogo o queimava. No entanto, refletida no espelho, sua cara normal, até favorecida. Menos rugas, as entradas da testa menos cavadas. Seu definido perfil: era ele mesmo, sem qualquer alteração. Como todo mundo, tinha uma fisionomia pessoal e intransferível. Mas o sócio — como era o sócio? Estúpido vazio. Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez, frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não conseguia desvencilhar-se. Precisava apelar para alguém, pedir socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o que sobrevinha, iminente, incontornável — e não tinha nome, nem configuração.

Desligado de tudo, sem interesse pelo trabalho, foi para casa mais cedo. A casa podia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocava. Telefonou para a casa do sócio, não o encontrou. Desejo de sair para a rua, ver gente, cada qual com seu perfil. Ver o sócio, recuperá-lo — o que só foi possível no dia seguinte, quando se avistaram no escritório.

— Nunca me viu? — por um momento o sócio pareceu estranhar a maneira como ele o fixava.

Queria e já não podia contar. E não poder contar o isolava definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado, passado para a outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo que era — ao dia-a-dia, aos negócios, ao confortável cotidiano. Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado desprevenido. Obsessivamente, arquivava, armazenava traço por traço do sócio, seu rosto de sempre, inesquecível, doravante inescamoteável.

Uma tarde muito quente, no escritório, o ar-condicionado ronronando, vinha da rua exaltado, feliz com o resultado de um negócio que há semanas se arrastava, quando precisou telefonar para a mulher. Ao discar — lembrava-se do número, claro — deu por falta de alguma coisa. Um pássaro que de repente levanta vôo, uma paisagem que se oculta por trás de um obstáculo, um perfume que se esvai. Algo que se interrompe, curto-circuito na corrente elétrica. Uma ficha que desaparece. Ao alcance da mão, habitual, mecânico, um objeto que se subtrai — uma caneta, um par de óculos, uma anotação. Do outro lado da linha, na sua casa, o telefone chamava.

— Alô — disse ela.

Uma leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. Perplexo, não aceitava o próprio silêncio e, para libertar-se, desligou. Sua mulher, não se lembrava da própria mulher. Seu nome, seu rosto — tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Mecanicamente, tirou a gravata e de pé, como num teste decisivo, refez o laço. Perfeito. Mas sua mulher. Às pressas, sem despedir-se, saiu imediatamente para casa.

— Chegou cedo — disse ela. — Alguma coisa?

— Dor de cabeça — ele disfarçou e, ao olhá-la, se convenceu do absurdo que era ter esquecido. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto, seu nome.

Trancou-se no quarto, espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página. Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queria estranhar, alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os olhos uma pequena bruxa a cabecear tonta contra o teto.

— Que é que você tem? — até que enfim a mulher veio chamá-lo.

— Nada — respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado.

Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar.

— Quem sou eu? — ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.


In. Pompas do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1975.
Imagem retirada da Internet: elo partido

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