José Fernandes - Ensaio crítico


Abolição da Literatura



Por José Fernandes*





Estarreci-me com a possível censura à Caçada de Pedrinho. Pensei razões de cunho ecológico que, também, seria cegueira, porque a arte é a expressão estética de uma época. Mas, não, elas eram muito mais ridículas, porque resultantes de preconceitos que mostram o apequenamento por que o homem está passando. Sobretudo, mostram uma total miopia literária. Se o tratamento conferido pelo narrador à simpática e querida Tia Nastácia se configura como racismo, teremos de abolir da literatura brasileira grande parte da lírica crioula, de Gregório de Matos que, em seus estilos maneirista e barroco entronizava a mulher negra e, às vezes, a rebaixava, quando ela merecesse ser satirizada.

Teríamos de suprimir de nossa cultura literária, pelo menos, dois romances de Aluisio de Azevedo. O primeiro, por causa da personagem Rita Baiana, descrita como a própria sedução e, pior, por causa da Bertoleza, que fora nomeada com o nome de mula, ou feminino de Bertoldo, a que governa com brilho, e que trabalhava como um animal, assim descrita pelo narrador naturalista com impiedosa ironia: ”Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo: essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo: pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a des-graçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira.

João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem.” E que dizermos de O Mulato, em que Raimundo realmente é vítima do racismo de Maria Bárbara? Mas, se o extinguirmos, como ficará cristalizada aquela época em linguagem, como saberemos das ideologias e filosofias que embasaram o naturalismo em toda a sua extensão estética? E A escrava Isaura, também passaria por algum tipo de censura, em decorrência dos sofrimentos a ela impostos pelo comendador Almeida e, sobretudo, pela sanha do indecoroso Leôncio?

Mas, e o nosso simpático Macunaíma, herói sem caráter, uma das principais produções do estilo modernista? Deveria ser extirpado de nossa cultura ficcional por que suas “malandragens” constituem a essência mesma do brasileiro irresponsável e brincalhão só pelo fato de ele fazer piadas aparentemente indecentes, como ao perguntar “em que lugar a negra tem os cabelos mais crespinhos”? E o estupendo poema de Jorge de Lima, Essa Nega Fulô, em que ele joga magistralmente com os sentidos vários de fulô, que pode ser flor e aquela que roubou? Deveria ser excluído da poética brasileira por que acusa a negrinha de roubar as jóias da Sinhá, ou por que roubara o Sinhô, decor-rência de sua beleza exuberante? Coitado do poema Irene no céu, obra-prima de Manuel Bandeira – “Irene preta, Irene boa/Irene sempre de bom humor.//Imagino Irene entrando no céu?/ – Licença, meu Branco?//E São Pedro bonachão:/ - Entra, Irene! Você não pre-cisa pedir licença!”?

Seria abolido só pelo fato de ela ser chamada de preta? E o ritmo do poema Monjolo, de Raul Bopp, banido, por que se refere à labuta dos escravos na fazenda?: “Fazenda velha./Noite e dia/Bate-pilão.//Negro passa a vida ouvindo/Bate-pilão.//Relógio triste o da fazenda./Bate-pilão.//Negro deita. Negro acorda./Bate-pilão.//Quebra-se a tarde./Ave-Maria./Bate-pilão.//Chega a noite./Toda a noite/Bate-pilão.//Quando há velório de negro/Bate-pilão.//Negro levado pra cova/Bate-pilão.”

Mas, e Negrinha, que dá nome ao esplendoroso livro de contos do próprio Lobato? Que será dessa narrativa ímpar de nossas letras, se, para retratar os sofrimentos cruéis da personagem, inicia-se com uma descrição impiedosa da criança?: “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre es-condida, que a patroa não gostava de crianças.” Todo ele expeliria preconceitos em todas as direções, inclusive contra brancos, igreja, solteirice? Deveria ser banido da literatura por estilar ironia e sátira em todas as letras e palavras? E a inimitável trilogia de Antônio Olinto, seria visto nela algum tipo de preconceito contra os iorubás, por causa dos mitos e ritos sabiamente cristalizados em um processo intercultural singular?

O fato de os ex-escravos e seus descendentes, ao voltarem para a África, terem de descer nus, ou enrolados em lençóis, como ocorre em A casa da água, não seria um tipo de constrangimento e de racismo imposto pelos próprios patriotas? E centenas de outras criações de nossa literatura que cristalizam verdades de humano, de história e de cul-tura que tem como personagens negros, índios, jagunços, favelados, garimpeiros?... Só se pode calar se se puder falar! Lobato, como os tempos mudaram, para pior! Querem calar-te! Querem cassar o Pedrinho! Como os professores estão analfabetos, meu caro! Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro... ou se é verdade tanto preconceito inútil perante os céus! Cálice!


*José Fernandes é Doutor em Literatura, Professor aposentado da UFG, Crítico Literário e Membro da Academia Goiana de Letras.


Fonte: União Brasileira de Escritores - Seção Goiás

Imagem retirada da Internet: Monteiro Lobato

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