Brasigóis Felício - Ensaio Crítico



O voo camicase de pássaro só lâmina



Por Brasigois Felicio



Em um “voo só lâmina”, cortante e abrasadora, em seu livro O pássaro do bico de ferro ((R&F Editora, 126 pg), Maria Luísa Ribeiro apresenta à literatura poética uma obra marcante, em sua força expressiva. Em apresentação da obra, “algo pode apresentar-se extemporâneo a muitos leitores e poetas imantados pela lógica cultural rasteira de nossos dias: mas este é o tempo que vemos desenhar-se diante de nossos olhos, sobre o branco aflito da página de Maria Luísa Ribeiro. O tempo urgente da revelação”.

Ainda meio tonto, da vertiginosa viagem feita aos abismos da condição humana, reconheço que para sua escritura foi preciso ter muita coragem humana, seguindo o fogo da inspiração de Prometeu, ao ousar desafiar os deuses, em sua ânsia de conhecer e revelar aos Homens os mistérios dos mundos. E o faço em um tempo não só de estranhas e ignóbeis aporias, mas tragicamente marcado por uma forma muito solerte de maldade, que vem a ser a conspiração do silêncio, pela qual poetas e pseudo-críticos, dentro e fora das academias, condenam ao esquecimento obras recém-lançadas, através de pactos de silêncio, partidos de torres de marfim ou de grupelhos constituídos de igrejinhas especializadas em intrigas, fuxicos, e outras vilanias. Desde sempre e hoje, principalmente, é assim: as vozes que têm força original são cerceadas pela conspiração da maldade, enquanto o vasto cortejo da mediocridade tem sempre festivas bandas a saudar sua passagem.

Em uma obra constituída por um só poema, “neste tempo de aporias contemporâneas, de um tempo que não mais escuta em nós”, no dizer de Fábio Andrade, a poesia desta autora vai de modo quase solitário (haja vista a pobreza temática e a inanidade existencial de boa parte ou da qualidade da poesia feita hoje no Brasil) “desenvolve estratégias radicais de sobrevivência neste mundo hostil à sua lógica outra.

(...) O pássaro, então, desde sempre um símbolo de liberdade e candura, e mesmo do sagrado, converte-se numa força verbal contundente, capaz de dissolver mitos e destruir aparências, com seu afiado bico, mesmo que seja para instituir ele mesmo um reencontro através de sua cruel e cortante linguagem simbólica. E que realidade vem esse pássaro de bico de ferro realizar? Uma realidade mais funda e definitiva do que essa que se faz evidente. A realidade do desejo em várias dimensões, uma luta pela palavra, uma luta pela liberdade de ser e do vir a ser, daí a urgência de seu estribilho: Por isto preciso ir!”

Antecipando-se ou seguindo-se ao estribilho que permeia cada fase do longo poema, há trechos de grande força poética, como este: “Ninguém haverá de viver o meu cansaço,/tampouco beber/a baba do meu copo/porque a saliva/de bicho sem pátria/escorre no vazio deste chão/ (...) “Entrarei no meu país/de árvores tortas/e serei pássaro de mim,/passado de ti,/um elefante velho,/uma pedra,/ um pó/ um nó na garganta,/um bico atravessado/no buraco da vidraça/”. E ainda: “A esse país./escrevo/a dor dos apenados,/nascidos/nos porões da inconfidência./trementes nos senões/dos mortos vivos,/brincantes/no cartel do carnaval (...) ao regar o meu país/de árvores tortas/ouso olvidar a natureza morta/dos homens polidos/por cargos de confiança/”.

A leitura deste belo e impactante poema de Maria Luiza Ribeiro nos faz pensar que destinos se cruzam nos aeroportos, sem que se conheçam uns aos outros, ou a si mesmos. Fernando Pessoa nos diz: “Para viajar, basta existir. Vou de dia para dia, de estação para estação, no comboio de meu corpo, ou de meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos sempre iguais e sempre diferentes como, afinal, as paisagens são. A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Há pessoas que são garatujas passageiras das colunas sociais. Vivem a seguir tendências, resilientes que são em se contentarem com as aparências, só atendendo à fome o inútil, de que se alimentam seus insaciáveis desejos. E assim se transformam em seres do desmantelo. No dizer de Maria Luísa Ribeiro: “São mais uma peça no varal dos artifícios/que vivem do que sobra/na orla das aparências:/uma vaidade a mais/gastando a tinta dos jornais/”.

De fato, a poetisa tem razão, quando alude, em seu livro O pássaro do bico de ferro, à vanidade dos que se comprazem em ser “riscos passageiros na agenda cultural”.

Pois a dor que anuncia a falência do humano vem de uma doença reincidente: o vício de viver a rebobinar o filme do absurdo. Filme cotidiano do qual somos eternos atores que não querem sair de cena. E de tanto “bicar cansaços/como pássaros desesperados/já não sabemos quem somos/de tão escravos nos tornamos/das miragens do futuro, e das moendas do passado.

Na dor de ser demônios de nós mesmos, somos contaminados com nosso medo e nossa violência. Mas a Vida sempre se faz presente, na leveza dos inocentes, e também se mostra com seu rosto sombrio, nas criaturas que só se expressam por sua astúcia e suas demências. E não obstante vivam como demônios, não aceitam que seus santos lhes faltem, ou mesmo que falhem – e sempre se apresentem com sacos cheios de milagres, que os salvem das aflições cotidianas.


Imagem retirada da Internet: Kamikaze

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