Delermando Vieira - Ensaio Crítico




Mobiliário poético


De um verdor de faias e sombras incontáveis
A plena e fácil voz celebra o verão.
John Keats








DELERMANDO VIEIRA*




A poesia em Francisco Perna Filho, poeta telúrico, cônscio de seu laborar poético, recende a grãos de terra esmiuçados ao vento das águas da chuva acendendo, nos dias, o espírito dos homens, sob o que tange e locupleta o fôlego, a estética e sabedoria das horas, em sua essência e memória humanística.

Força que assopra e sopesa, na forja do tempo, a leveza do que, ao fundo, medra a mais simples sensibilidade em seu caminho, assim é a sua poesia, tão farta de flashes e nuanças próprias de quem, no passado, viu e viveu a sustância das causas terrenas, num espaço de época longínqua, cuja natureza se esplende ao susto do amor legado, na infância, àqueles que a bem de sua vida sabem, e souberam, como nunca, construir em seu destino os valores de um eterno existir, ainda que efêmera seja, ou fosse, a sua passagem por este mundo.

Profundamente ligada às raízes da sensibilidade, atendo-se, inclusive, aos claros labirintos do dizer-se pleno, assim é a poesia deste poeta, ora chegando, ora se fazendo, dentro de sua vasta particularidade de erguer a grande poesia, sem, contudo, deixar-se conduzir pela vã e medíocre vulgaridade, que certos poetas de hoje defendem, sob o pretexto de que estão construindo uma poesia aberta, comum e viável à compreensão do povo.

A poesia edificada por Francisco Perna Filho em seu belo livro, As Mobílias da Tarde, é, sem dúvida, simples, porém humana, carregada de uma serenidade e grandeza de quem já viveu, e vive, o íntimo testemunho dos fatos legados àqueles que, tão-somente, se propõem a memorar em si todo o cenário e riqueza de seu passado, quando, então, pelas raias da infância laboravam o seu cotidiano untado de sublime natureza. Seguro em suas palavras, Francisco Perna Filho, ou naturalmente, Chico Perna, aqui poeta autêntico, se faz sensível e tocante, ante a clareza de suas idéias se fazendo necessárias, ao poético intento de levar a todos o seu anunciado, ou seja, a forma mais pura de sua poesia erguida sob o crisol de uma razão precisa, finalmente realizada em seu motivo maior: a sínese do silêncio em aguda sensibilidade.

Leve, como leve é o espírito das coisas se prontificando, se traduzindo, à sua mesma natureza de soerguer, na paisagem das horas, o sentido do belo em sua estóica essência, sem, no entanto, descer forçosamente à frágil intenção da mesmice, assim é a poesia deste poeta; e sua força, por certo, traduz-se no espelho de sua natureza terrena, como se fosse de seu hausto a franqueza maior de inspirar e expirar a sabedoria, mais simples e possível, ao cognoscível sentimento das gentes, do mundo mergulhado em suas imagens proliferando cenários de rios, estradas, cidades e lugares de ermo fazer-se em profunda memória. Como vislumbres poéticos arraigados na alma, aqui, neste As Mobílias da Tarde, a poesia se constrói, se sustenta, ao conduzir-se clara e direta em seus versos. Chico Perna, poeta antenado que é, soube, como poucos, relatar os fatos do passado, revelando-os numa sabedoria de admirável sutileza e, por isso mesmo, edificada em sintonia agradável, sem peso algum, que a possa tachar de frágil e simplória.

As Mobílias da Tarde, editora Perna e Leite, 105 páginas, capa de M. Cavalcanti, editado em 2006, traz em sua estrutura a forte memória do que, em suma, minera o espírito do homem, às suas mesmas e profundas raízes e costumes, ao escopo do ser e sua lúdica visão, tão inerente àqueles que, fatalmente, se ressentem, se tocam e se sensibilizam, às lembranças dos dias idos, viajados para nunca mais, quando na velha infância, quando na súbita juventude dos olhos, já gastos, envelhecidos em sua demora, no seu fim de ser já nascido para outro mundo, que não o de hoje, que não o de agora, mas, sim, como o de ontem, que no amanhã, certamente, far-se-á, feito um chamado de Francisca a seu filho, então chegando do rio.

Versos, como “Foi quando ela aprendeu sobre a vida e a morte, acompanhou as estações do ano, a gestação do rio, entusiasmada com a possibilidade de romper o próprio leito”, A Infância, pág. 33; ou, então, “A cidade é vista sob a neblina difusa. Há um desejo de vê-la cada vez mais de perto. Ela é vária e, diluída, ensina um olhar de milhas que não se perde em mim”, A Infância, pág. 51, e, ainda, “O rádio não existe mais, desfez-se no rio dos anos. Hoje, ouço os velhos telhados antecipando o barulho dos galos, os inconsoláveis soldados da noite”, Gênesis, uma visão lúdica, pág. 81, subentendem-se, ou melhor, explicitam-se, dentro de sua anuência inerente à imantada ternura de uma imagética singular, coerente e possível, àqueles de sentimento sincero, honesto como a luz do dia. Versos estes, sim, que em seu estar coevo, expõem, como nunca, o estigma daqueles que em verdade se sabem, tantas vezes, vivendo sua mesma e única essência de viver o que passou, sem, no entanto, coerirem-se à estúpida e forjada mentira de nutrir-se de sentimentos jamais tocados, nunca sentidos. Como a preciosa pedra esquecida no sequitel, versos como “O orvalho nas folhas da erva-cidreira, fumaça subindo da chaminé, rangido de carros-de-boi e a menina com o rosto refletido na água da cisterna”, Gênesis, uma visão lúdica, pág. 29, refletem em si o fôlego de memorável simplicidade que, de certa forma, levam a um traduzir-se à plena natureza, feito fosse sua estrutura, nada mais, nada menos, que um vilancete, uma espécie, assim, de revelação madura, própria e eficaz, sem dúvida, ao coração do ser, do súbito mundo de cada um. Eu, que não sou nada, e nada mais posso ser, senão o que sou, faço-me de pleno e de direito ao dizer, e afirmar, se preciso, que Francisco Perna Filho, possui em sua fala poética longos sinais e reflexos, que lembram, sutilmente, a verve poética de Walt Whitman, ou, talvez, de John Keats, ainda que em sua retórica verbal, concisa e perfeitamente cingida aos dias de hoje. Francisco Perna Filho, sem medo de dizer, é, em suma, um poeta verdadeiro.



Este texto foi originalmente publicado no Jornal Opção, de Goiânia, em 15/06/2007
Delermando Vieira é escritor e Membro a Academia Goiana de Letras.

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