Francisco Perna Filho - Conto

Com a aproximação da Copa do Mundo de Futebol, resolvi republicar o conto Plenilúnio.



PLENILÚNIO




Francisco Perna Filho

                                               
Uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda e, rodopiante, acompanhou os mesmos movimentos de Natinho em volta da fogueira de São João, por um momento, pareceu coalhada no firmamento, todos a observavam, ao passo que se voltavam para o menino, que também inerte se perdia no pesadelo do esquecimento. A bola saiu do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito de Natinho, que se desfez em cinzas. Naquela noite.

Um menino, um rádio e a ilusão do futebol. Foi assim que muitos disseram, anos depois, quando Natinho já não estava mais entre nós. Era Copa do Mundo de Futebol, México, 1970, estávamos reunidos em volta de uma mesinha de centro, no alpendre da minha casa, ouvindo um rádio à válvula, quando ele chegou. Tinha os olhos tristes e distantes e uma palidez de ausências. Viera com a sua mãe e dela não se desgrudara por nenhum instante até o apito final, quando o Brasil venceu a Itália por 4 a 1 no estádio Azteca.

Durante a narração do jogo, num dado momento, começou a girar em torno de si mesmo, até cair desfalecido. Foi um alvoroço. Trouxeram álcool, esfregaram nos seus pulsos. Jogaram água na sua cabeça, e nada. Quando já pensavam em chamar o médico, ele começou a se mexer e, como se nada tivesse acontecido, abriu os olhos e levantou-se tranqüilamente. A mãe, sem se pronunciar, o pegou pelo braço e o levou para fora da casa. O jogo já estava no fim. Ouviu-se uma gritaria, foguetes e muito riso. O Brasil sagrara-se tricampeão do Mundo.

Alguns dias se passaram, e eu, ao voltar do trabalho, deparei-me com o menino, com os olhos arregalados, um cabo de vassoura na mão, e o rádio à válvula todo destruído. Sem saber o que fazer, pedi que chamassem a mãe dele, na casa ao lado. Quando ela veio, o menino começou a berrar e a pular repetidas vezes. Ela o pegou pela orelha, pediu-me desculpas, prometendo arcar com o prejuízo, e o levou embora. Mais tarde vim a saber o porquê daquela destruição. Por insistência de um garoto, filho da dona da casa na qual ele estava hospedado, resolvera procurar, por entre as válvulas, os homens que narravam o jogo com a promessa de ganhar - deles - uma bola.

Desde cedo, Natinho demonstrou uma predileção pela forma circular, arredondada. Ainda no meu colo teve a sua primeira experiência com essa forma, quando, na Lua Cheia de Áries, gritou descontroladamente e pinoteou, como querendo se soltar dos meus braços, para depois adormecer profundamente. E foi assim durante muito tempo, por doze ou treze vezes ao ano, repetia o ritual do plenilúnio, postava-se no batente da porta, que dava para o pátio, e ali, após um longo momento de contemplação, começava falar em uma língua estranha e rodopiar em volta de si mesmo, até cair inconsciente. 

Cresceu contando as luas, e, naqueles dias que antecediam ao espetáculo celeste, ele se transformava, ficava quieto, silencioso e isolado. Gostava de refugiar-se na Grota, um riacho de água gelada, que passava atrás do sítio da fazenda. Sentava-se na sua ribanceira, e de lá atirava pedras na água. Encantava-se com os círculos que iam se formando, crescendo e indo embora. Entre uma pedra e outra, aproveitava para fazer rolar, ladeira abaixo, as laranjas que trazia consigo, num misto de gozo e felicidade.

Natinho cresceu e, aos dez anos, ficou extasiado ao se deparar com um repolho, sobre a mesa da cozinha, aquela lua verde esbranquiçada, todo fundido em camadas, como ele viria a chamá-lo. Depois do susto, ficou andando por uma hora em volta da mesa, numa contemplação circunferencial, sem saber o porquê daquele sentimento. Durante toda aquela semana pensou no repolho, chegou até sonhar que ele tinha vida e eles eram amigos. Jamais aceitou comê-lo e repreendia, enfurecido, quem o fizesse na sua frente.

Desde a primeira vez que vira uma bola, nunca mais tivera sossego. Foi num exemplar da revista Cruzeiro, esquecida por um visitante na varanda da nossa casa. Naquele dia, algo mágico aconteceu. Ficou transtornado, deu cambalhotas, chorou. Até então só conhecia as bolinhas de meia que eu confeccionava para ele brincar. Depois disso, não quis mais comer, não saia do quarto, sempre trazia consigo a fotografia da bola, comprimida no peito nu e esguio. Uma paixão avassaladora.

O tempo passava e Natinho parecia mais esquisito, mais só, redondo nas suas elucubrações, nos seus pensamentos e visões, como a que ele tivera no momento que estava no curral ajudando o pai na ordenha do gado, como ele mesmo me dissera, e uma Lobeira, dessas bem grandes e verdes, desprendeu-se não se sabe de onde e começou a levitar, movendo-se em círculos, depois caiu e quicou inúmeras vezes, até desaparecer por detrás do curral. Seu pai nada percebera, mas jamais acreditou que o nosso filho estivesse predestinado ao encantamento, como os fatos viriam a se confirmar, anos depois. Na noite em que comemorámos o Pentacampeonato, uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda. À primeira vista, pensávamos que fosse fogos de artifício, algo a mais na comemoração da vitória do Brasil sobre a Alemanha, apenas pensamos, porque ela parecia repetir os movimentos do nosso filho. Ao sair do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito dele, que se desfez em cinzas.

Guillaume Apollinaire - Poema


Guillaume Apollinaire


Guillaume Apollinaire - grafismo de m. almeida e sousa


Nasceu em Roma, em 1880, filho de uma nobre polaca e de pai desconhecido (possivelmente um oficial italiano com quem a mãe vivia na época do seu nascimento). A infância e adolescência de Guillaume e do seu irmão, Albert, repartiram-se por várias cidades, obedecendo à errância amorosa da mãe: Roma, Paris, Mónaco, Cannes e Nice.Aos 20 anos, instalado em Paris, interessou-se por literatura e política, revelando simpatias anarquistas. Começou a procurar emprego. Também nessa altura, inicia a escrita novelas eróticas para sobreviver. Nos anos seguintes, viajou até à Áustria, Alemanha e Inglaterra. Por volta de 1901, quando trabalhava como perceptor de uma família alemã, conheceu e apaixonou-se por Annie Playden, a governanta inglesa. Este amor não correspondido inspirou-o a escrever «A canção do mal amado».

Entre 1902 e 1907 publicou contos e poemas em várias revistas (incluindo a portuguesa O Portugal Futurista). Entre os seus amigos de Paris dessa altura, contam-se Picasso, Rousseau e Delaunay, entre outros.Em 1911, foi preso por suspeita de roubo de umas estatuetas fenícias do Louvre. Em 1913, publicou Alcools, uma recolha do seu trabalho poético desde 1898.Alistou-se no exército francês em 1914, e partiu para a guerra (uma ocasião que lhe serviu para se declarar «francês genuíno» e servir a sua pátria). Combateu na Cavalaria, e mais tarde passou à Infantaria. Para não perder a veia poética, trocava abundante correspondência com os amigos e a mais recente paixão não correspondida, Louise de Coligny-Châtillon (ou «Lou», como lhe chamava nos poemas). Acabou por ser ferido na cabeça pela explosão de um obus.

Depois de recuperar, e já em Paris, voltou ao trabalho: levou à cena a peça Les Mamelles de Tirésias e publicou Calligrammes. Em 1918, casou com Jacqueline Kolb (a «linda ruiva» do último poema de Calligrammes), mas enfraquecido pela ferida de combate, morreu em Novembro desse ano, de gripe espanhola. Tinha 38 anos. Foi enterrado no cemitério de Père Lachaise, enquanto pelas ruas de Paris se festejava o fim da guerra. (Fonte: Assírio & Alvim)


TIVE A CORAGEM DE OLHAR



Tive a coragem de olhar para trás

Os cadáveres dos meus dias

Assinalam o meu caminho e eu choro-os

Uns apodrecendo nas igrejas italianas

Ou entre os limoeiros

Que dão ao mesmo tempo e em qualquer estação

A flor e o fruto

Outros dias choraram antes de morrerem nas tabernas

Fustigados por ardentes ramos

Sob o olhar duma mulata que inventava a poesia

E as rosas da electricidade abrem-se ainda

Nos jardins da minha memória.


In. O Século das Nuvens, trad. Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, 2007

Francisco Perna Filho - ensaio curto

sonhar.jpg image by Marota

AETERNUM


Por Francisco Perna Filho



Ruidosos de tempo e prisioneiros das próprias sentenças, ao dispararem os seus ponteiros irrefletidamente e se repetirem em realidades tão diversas, os relógios nos dizem muito do embaraço da nossa existência.

O tempo explica tudo, a despeito de qualquer pacto ou sentimento; de qualquer nobreza ou oligarquia. Às vezes é preciso aquietar-se para ouvir os seus murmúrios, os seus sinais, embora muitos não se mostrem sensíveis a isso ou, de outro modo, não durem o suficiente para testemunhá-lo.

O agora está estampado - neste exato momento - tão óbvio quanto esta afirmação, e é por ele que comprovamos o que antes se nos apresentava como improvável, absurdo, irrealizável. Tudo às claras, medonhamente plausível: a materialização da nossa insuportável espera, da constatação da nossa perecibilidade.

Talvez com os anos tenhamos a certeza de que o futuro é uma invenção, não chegaremos nunca a ele. O presente é o que somos, modelados à forma do nosso passado, das nossas recordações. Tão somente existimos, e existimos porque lembramos, porque somos capazes de nos convencer da unicidade do tempo, da fluência de suas teias a enredar a nossa ilusão, a magia da nossa permanência.

Nada passa incólume ao tempo, nada dele se esconde, muito embora tantos tentem provar o contrário: que os digam os potes de Renew, Cronos, Neutrogena, substâncias retardadoras do envelhecimento, abrandadoras das rachaduras da pele, restauradoras das nossas ilusões. Nada disso cicatriza as erosões da alma.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la. Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nosso modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O ápice do amor é a morte, diz George Bataille, no seu livro O Erotismo, já que, para que se tenha vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thanatos, morte.

Tudo o que temos ou fazemos agora, sem sombra de dúvida, amanhã será lembrança, e seremos lembrados na mesma proporção das nossas ações, dos nossos acordos, dos nossos desatinos. O que diferencia uma manhã de sol de uma manhã de chuva é apenas a forma como elas se mostram, as manhãs continuarão sempre manhãs, até que anoiteça, e elas serão apenas lembranças, como o são: O 11 de setembro, O massacre no Iraque, O acidente de Chernobyl, a desencapsulação do Césio 137. Numa linguagem mais moderna, o passado nos forMATA.

Tudo o que vemos e assistimos, talvez nos permita sonhar. Sonhar com um tempo de paz e consciência, quando os homens não mais brigarão pelo poder. Quando a força da grana, das imposições religiosas, das ideologias opressoras, não mais nos afrontará. Quando os homens, libertos de qualquer opressão, passearão livres pelas palavras e com elas comporão os seus países, as suas cidades, os seus jardins, sorverão o perfume das dálias, madressilvas, hibiscos e jasmins.


Imagem retirada da Internet: tempo

Visgo Ilusório

Inicial

LITERATURA

Lembranças de uma infância em versos

Obra Visgo ilusório será lançada hoje pelo escritor Francisco Perna Filho

Shara Rezende
Palmas

Uma das coisas mais difíceis na vida é encontrar a palavra certa para aquilo que queremos expressar. “Pois bem, escritores, poetas, compositores, todos eles de alguma forma já trataram desse assunto, falaram da luta diária pelo verbo preciso, pelo vocábulo não corrompido, pela palavra ideal para traduzir um estado de espírito, um sentimento vivido, ou para, simplesmente, relatar as impressões do cotidiano.” É partindo dessa ideia que o escritor Francisco Perna Filho escreveu o livro Visgo ilusório a ser lançado nesta quinta-feira, às 20 horas, na Cantina Boa Massa, em Palmas.

A obra faz parte da coletânea Goiânia em Prosa e Verso, uma parceria entre a Prefeitura da Capital goiana, editora Kelps e a Universidade Católica de Goiás. “Se trata de um livro de poesia, onde conta lembranças da minha infância, daí veio o nome visgo, que era uma pasta colante feita com substâncias extraídas de uma jaqueira utilizada para aprisionar pássaros. Partindo disso, eu fiz essa analogia para o texto e poesia, porque a palavra é uma convenção humana, nós nos convencionamos a chamar as coisas por um determinado nome sendo que aquilo é arbitrário, tentamos nos aproximar ao máximo, mas às vezes aquela palavra ainda não consegue expressar o que queremos”, diz o escirtor ao explicar o motivo do nome do livro. “Porque a palavra está presa ao seu significante e significado, na verdade, é apenas um ilusão e o poeta luta contra isso.”

O livro é dividido em cinco partes que retrata as poesias da infância do escritor. “Eu começo com O olhar, em que eu trago poesias da minha infância, do meu pai e uma autobiografia. Depois vem o Voo onde eu falo da poesia e do ofício do poeta, tem o Mergulho que é mais voltado aos sentimentos, e depois tem o Revoo onde eu reflito sobre o homem que está preso sob as mazelas da humanidade. Por último tem o visgo que trata da modernidade, do trânsito, do caos diário”, finaliza.

Coletânea

A coletânea é composta por 100 obras de diferentes autores que falam da capital goiana em verso ou prosa. Cada livro terá mil exemplares, sendo que 700 serão distribuídos em escolas, bibliotecas e universidades de Goiás. Os números restantes serão entregues aos autores, como forma de pagamento autoral, e poderão ser vendidos.

A ideia da coletânea é reunir o trabalho de um escritor com o de um artista plástico. Visgo ilusório está acompanhado da pintura Rio vermelho, do pintor goiano Amaury Menezes. Perna Filho já faz um trabalho semelhante em seu blog pessoal Banzeiro - a poesia em movimento, que pode ser acessado pelo link http://banzeirotextual.blogspot.com/.

Saiba mais
Autor

Francisco Perna Filho nasceu em Miracema do Tocantins, onde teve os primeiros contatos com a literatura. É mestre em Letras e Linguística - estudos literários, pela Universidade Federal de Goiás. Tem três livros publicados: Refeição, de poesia, lançado em 2001 pela editora Kelps; As mobílias da tarde, poesia, publicado pela Perna e Leite Editores, em 2006; e Criação e vanguarda: Bopp e Barros, crítica literária publicada pelo projeto Goiânia em prosa e verso, em 2008.


Prêmio Literário

LiteraCidade


poemas, contos e crônicas – tema livre / 2010/1 - tema livre



Os professores Abilio Pacheco e Deurilene Sousa – organizadores da Antologia Literária Cidade – promovem este prêmio literário nacional com o intuito de incentivar novos talentos literários, valorizar produtores literários já existentes e trazer a lume para o público da Região Norte estes nomes, de modo a valorizar, incentivar e promover a leitura.

Mais informações, clique aqui


Damário Dacruz - Poema


DAMÁRIO DACRUZ
(27/07/1953 - 21/05/2010)




Gran Finale



Avise aos amigos
que preparo o último verso

A vida
dura menos que um poema

E no alvorecer mais próximo
saio de cena.




Poema enviado pelo amigo/poeta José Inácio Vieira
Foto by Sinésio Dioliveira

Moema de Castro e Silva Olival - Ensaio Crítico


A REFEIÇÃO DO POETA

Em busca do maná existencial



Em sua estréia na literatura, o poeta Francisco Perna Filho instaura um projeto poético que gira em torno do eixo contrapontístico — o efeito destrutivo da realidade física circundante e a busca de equilíbrio do “eu interior”



MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL


Com prefácio do escritor Goiamérico Felício Carneiro dos Santos e orelha de Luiz Serenini Prado, o poeta e professor Francisco Perna Filho lançou seu livro de poemas Refeição, editado pela Editora Kelps, em 2001, com ilustrações infantis (de autoria de seu próprio filho de cinco anos, João Pedro Tavares Perna) e que, na intenção ao autor, não estão ali aleatoriamente, mas como coadjuvante de sua proposta temática. Vejamos. O projeto poético em questão gira em torno do eixo contrapontístico: realidade física circundante e o efeito destrutivo desta realidade sobre o “eu interior”, em busca do equilíbrio do ser humano, na sua bipolaridade: corpo e espírito. Recorre ao potencial energético da alma, induz à prática da visão lúcida, aguda, que mostra ao homem o tempo que lhe coube, as contas do rosário de sua travessia, os indícios dessa presença reconfortante e, muitas vezes, obscurecida, para o possível encontro do “alimento” que refaz, que se propõe reconstituir a unidade ameaçada.


E frente à perturbadora desordem de um “Cafarnaum” que o avassala, “nada há de novo que não nos mostre o velho”, e que, por isso, lhe instala a angústia, que o oprime e o deprime; resta ao ser humano “espectar”. Reconstituir-se, no tempo, operando memória, único recurso de solda dos fatos circunstanciais, para poder ocupar seu verdadeiro espaço de agente de seu destino. É preciso que não se perca de vista o propósito de recuperação, que o homem se permita sonhar, “voar”, para que encontre, no horizonte, as perspectivas de reabastecer-se e reenergizar-se, para poder enfrentar, lutar. Então, o poeta insiste na fome da liberdade, no contraponto de idéias que dividem o nosso “ego”, que balançam a nossa psique.

O livro se constitui de três partes. Com a primeira, iluminada por epígrafe de Fernando Pessoa, se instala o espaço das dúvidas, a dureza do enfrentamento da realidade. E o significativo poema “Montanha” nos faz descortinar o pétreo espaço:

A palavra pesada persegue a pedra, revela o austero pulsar do silêncio e, com ele, inaugura um olhar de montanha.(Refeição, p.19)


Metalingüisticamente, o poeta aponta, também, para a árdua luta na escolha (“no olhar”), na pesquisa da palavra-cerne, da palavra essencial. A significativa metáfora “olhar da montanha” aponta para a dureza dessa busca, que o preocupa e o instiga, arregimentando experiência, para firmar-se neste terreno tão árduo para os poetas e em que já se revela promissor.


Na segunda parte, instala-se o primeiro round dessa luta, quando o poeta, com plena demonstração da referida palavra aguda e perseguida, dá vazão ao seu “olhar de montanha”. Vejamos no poema “Todos” (com epígrafe de Manoel de Barros), como ele se expressa no claro propósito de agasalhar, em si, a síntese da humanidade:

Tente a revisão do ultrapassado, a coesão da arte do absurdo, a adaptação ao pós-moderno (...) Em mim estão todos. Eu sou todos. (Refeição, p.33)


Nesta segunda parte, o “eu lírico” questiona o vazio do mundo, das coisas em si, a força inaugural que o preside, como se pode ver em “Transformações”:

“O rio continua no riso pálido do pescador extático no hiato das culturas, na incontinência dos jovens poetas” (Refeição, p.37)


Sente-se o alento primacial que batiza o universo e, em reforço a essa imagem, é que Francisco Perna parece acrescentar a linha primeva da pintura do menino de cinco anos. Também, a partir desse olhar, é que se justifica, a nosso ver, o pragmático título Refeição, e não um outro, trabalhado pela transfiguração e, por isso, mais carregado de poeticidade, como “Realento”, ou “Renascimento”, ou qualquer outro nesta referida linha. Tem a força crua da realidade, fazendo transparecer o outro pólo de nossa unidade, o espiritual, uma vez que esse alento deve representar o êmulo da necessária reação. Destruí-lo é perdê-la, como tragicamente se constata no poema “Essencial”.


O enfrentamento da realidade deve resultar, pelo potencial de reflexão, na lucidez que permite descortinar o campo de batalha, que permite visualizar o que resta ao ser humano. Reagir, sim, pois cabe ao homem “parir o vôo de destinação”, já que a vida é múltipla e toda “estrada traz o peso dos passos”.


Nota-se, no exemplo a seguir, como o poeta acha a palavra delineadora, caricatural, criando a imagem expressionista, prenhe de carga social:

Assim a leveza do estômago que passivamente soletrava o pão. (Refeição, p.65)

Há, sem dúvida, um sopro revolucionário a sugerir e a comandar a reação necessária.

E aquele pensamento básico — “parir um vôo de destinação” — segue comandando a temática do livro, que discute a consciência da sensação de impotência do ser humano, deslocado de si mesmo, como se comprova em “Palavras de um Morto”:

Há um grito em cada verso meu, grito abafado, mas sereno. Um grito continental de clamor e piedade pela humanidade.


O clímax desse estado de espírito é alcançado pelo sujeito lírico, quando, assumindo, explicitamente, os cinco anos do filho do poeta, idade da esperança, mostra-se, em contrapartida, “totalmente desesperançado numa paisagem de desamor, de guerras, de extermínios, como vemos em “Kosovo”:


Estou com cinco anos, a lua acaba de se apagar. (Refeição, p.94)

Na terceira e última parte do livro, agora iluminada por epígrafe de García Lorca, “Ydespués”, canaliza-se a angústia pela constatação da impotência frente ao tempo que circunscreve os problemas que atingem os homens, “peregrinos das insolúveis sentenças”, bem como se evidenciam os meios de reação.

A metaforização das imagens que suscitam o desfilar das carências vitais do homem, carências indiciadas pelas metáforas que traduzem os elementos primaciais da vida (como os alimentos, por exemplo, daí o título, não só do poema-chave, “A Sagrada Ceia”, quanto do próprio livro), provoca a concretização, a sacralização da proposta do livro: a urgência e coragem de se “olhar” para se “descobrir” e para “sentir” o seu próximo; a urgência e coragem de se buscarem as fontes de desajustes; a tentativa de resgate da angústia deles decorrente; a possibilidade de se tentar uma sondagem reparadora, que “revise a fome de santos e peregrinos”.


E enfrentando o percurso da reação, “o poeta refaz-se do último pesadelo” de sua “fome existencial”. Deixa entrever como atitude redentora “um leque de possibilidades”, apontando para a direção de seu olhar recriador, voltado para o Outro, para o Mundo e para Deus.

E, no último poema, “Duplo”, o poeta mostra, ao ser humano, a dicotomia responsável por tanta angústia, chamando a atenção para o homem e seu desdobramento visceral:

Caminhos me levam para fora de mim viajo. Não há como entender. (Refeição, p.117)


Busca o seu vôo, mas os pés estão presos em sua realidade. Parece vencido:

Há uma escuridão perpetuada. Manhã pesada. Mas quer readquirir forças para reagir:

Contemplo o meu corpo petrificado no espelho da sala. Reflito um abraço e vou dormir. (Refeição, p.118)


Assim, Francisco Perna Filho sintoniza, neste livro, nas imagens que sacralizam os dois campos de batalha, sua visão de poeta, no “ser passante” que somos; ousa argüi-lo, de maneira criativa, mas, talvez numa mostra de seu lado docente, busca apontar-lhe, ou melhor, sugerir-lhe, as vias de salvação. Seu imaginário está prenhe do universal e, poeta contemporâneo, consegue mostrar, com tenacidade, sua preocupação em torno da “difícil luta com as palavras”. Feliz iniciativa, Francisco Perna. Prossiga na sua árdua missão. Parabéns.



MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL, doutora em letras pela USP e professora emérita da Universidade Federal de Goiás, é escritora e crítica literária, autora, entre outros livros, de O Espaço da Crítica (Editora da UFG, 1998).


Este ensaio crítico foi publicado em dezembro de 2002, no Jornal Opção, em Goiânia.

Foto by Tainá Corrêa

Memória - entrevista com o Artista Plástico M. Cavalcanti




MARANHÃO CAVALCANTI

“Precisamos de um novo Renascimento”



Para o artista plástico goiano, a sociedade moderna submergiu numa desordem praticamente medieval e cabe à arte contribuir para a reconstrução do ser humano em sua plenitude ética e cognitiva



Com dezenas de exposições no Brasil e no exterior, M. Cavalcanti é um dos mais conceituados artistas plásticos contemporâneos do Estado. Mineiro de Uberlândia, onde nasceu em 19 de novembro de 1956, Oswaldo Maranhão Cavalcante Júnior reside em Goiânia desde 1960. Já realizou dezenas de painéis, inclusive na sede nacional da OAB, em Brasília, além de esculturas e murais. Obras de sua autoria compõem acervos, entre outros, da University of Wyoming Art Museum, em Laramie (Estados Unidos); Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Brasília; Palácio das Esmeraldas (Goiânia); Unesco, no Rio de Janeiro; Museu de Arte de Goiânia, Fundação Jaime Câmara e Fundação Cultural de Brasília. Participou de cerca de 50 exposições (entre as principais), nos Estados Unidos, na França, em Goiânia, Brasília, Paraná, São Paulo e Minas Gerais.

Agora, M. Cavalcanti participa do Projeto Cor da Carne, inaugurado no dia 29 de fevereiro último e em cartaz no Flamboyant Shopping Center até 14 de março, domingo, das 10 às 22 horas. O projeto compõe-se de um rebanho de zebus pintados por 12 artistas plásticos goianos. Depois de ingressar no curso de publicidade e propaganda da Faculdade Cambury, M. Cavalcanti transferiu-se para o curso de arquitetura, na mesma instituição. Nesta entrevista concedida aos escritores Valdivino Braz (também jornalista), Francisco Perna Filho (também professor), com participação especial do escritor Delermando Vieira, M. Cavalcanti reflete sobre a arte — em sua acepção mais profunda — e, conseqüentemente, fala do homem — em suas tensões mais agônicas. Sem deixar de cutucar, com vara curta, a política cultural do Estado e do país.

Francisco Perna — M. Cavalcanti, vamos começar pelas coisas boas. Fale-nos do recente painel que você criou para a sessão de Brasília da OAB. Qual o significado disso, já que sua obra estará inserida no contexto arquitetônico Oscar Niemeyer?

Fui indicado por uma galeria de São Paulo, a Galeria André, e fiquei muito satisfeito. Há três anos, eles estavam tentando encontrar um artista para executar a obra. Quando eu soube que o painel faria parte da fachada da sede da OAB, em Brasília, projetada por Oscar Niemeyer, fiquei mais motivado ainda. Eu já tinha feito um painel na Receita Federal, em Goiânia, como tributo ao próprio Niemeyer. Esse painel na OAB exigiu pesquisa e me deu muito prazer. Tive que pesquisar um pouco a história da OAB, desde 1930, quando ela foi institucionalizada por Getúlio Vargas. Fui a Brasília, para conhecer a sede da OAB, pois sabia que havia uma escultura do Niemeyer na fachada do prédio. Então, eu queria realizar meu trabalho de uma forma que não interferisse e também não competisse, mas que somasse. Creio que fui recompensado: esse esforço resultou num trabalho coerente, bastante elogiado por todos que o viram.

Francisco Perna — O crítico de arte Marcos de Lontra Costa assim se refere a você: “M. Cavalcanti faz parte de um grupo de artistas que preferem investir na tradição da práxis artística, na valorização de seus meios artesanais, na elaboração de sua poética pictórica, que valoriza as cores, as texturas e o ato de pintar”. Como você interpreta a proliferação do conceitual na arte, supervalorizado pelos críticos e badalado pelos meios de comunicação?

Existem algumas correntes, entre as quais duas se distinguem: uma, a arte conceitual; outra, a arte mais figurativista, calcada nessa relação entre teoria e prática, mencionada por Lontra. Há bons artistas nos dois segmentos. Mas é preciso ter muito cuidado com o conceito de arte conceitual, pois há um certo modismo em se dizer adepto dessa arte, levando alguns críticos a forçarem a barra nesse sentido. Dizem que a arte tem que ter como ponto de partida o que o homem quer, o que o homem pensa. Concordo, em parte. Mas, quando o artista começa a desconstruir demais esse contexto, ele corre o risco de perder algumas raízes muito importantes. Prova disso é a facilidade com que muita gente diz: “Ah!, agora sou artista, faço arte conceitual”. E, a partir disso, olha com desdém para outros segmentos artísticos. Não pode ser assim. É possível desenvolver uma arte conceitual profunda, sem cair na banalização. Porque é muito fácil fazer um traço qualquer, jogar graxa na parede, e chamar isso de arte conceitual. Há muita bobagem sendo feita a pretexto de arte conceitual. O que prejudica os artistas que desenvolvem um trabalho sério de arte conceitual, como o artista carioca Tunga.

Francisco Perna — Você citaria alguém de Goiás, particularmente?

Em Goiás também existe uma geração nova que está virando as costas muito rapidamente para os pilares da arte produzida no Estado. São pequenos grupos que começam a incrementar a arte conceitual e a olhar com desdém a velha guarda, digamos assim. Entretanto, arte não é moda, arte não envelhece.

Francisco Perna — Que valor você dá ao desenho na formação do artista?

Considero o desenho como algo extremamente importante para o artista. A minha formação é figurativista e eu seria ingênuo se negasse a importância do desenho. Quem não sabe desenhar está perdendo muito em termos de sensibilidade. O que me preocupa é que está surgindo uma geração que não desenha, não gosta de desenhar e nega a importância do desenho. Aí fica fácil pegar o estrume, jogar numa tela, deixar escorrer e chamar isso de arte conceitual. Se o artista quer se expressar em termos de idéias, tem que pesquisar, estudar, a não ser que seja um gênio superdotado, o que não acontece em Goiás. Aqui não existe gênio nenhum, do meu ponto de vista. O que há são pessoas que se autodenominam gênios, de um modo prematuro, imaturo até. É uma pena que alguns artistas novos começam, de maneira até simplista demais, a achar que a arte conceitual, inspirada num modelo europeu, alemão ou seja ele qual for, tem que ser importada de qualquer jeito para o Planalto. Acham que basta comprar a passagem, viajar para a Europa, ver a arte conceitual que se faz lá e voltar correndo para começar a reproduzi-la aqui. Isso não tem base, não tem lastro. A nossa cultura é que tem que ser colocada daqui para fora, para ela se tornar universal.

Valdivino Braz — Como você relacionaria a arte conceitual de hoje e o vaso sanitário exposto em salão por Marcel Duchamp, bem como as latas de sopa Campbell pintadas por Andy Worhol?

Duchamp fez isso há muitos anos e, naquele momento, abriu uma janela impactante dentro da história da arte. O próprio Andy Worhol, com a banalização do consumo norte-americano, com as sopas Campbell, com a Gold Marilyn (Marilyn Monroe) e o retrato de Pelé, teve a sua importância naquela época. O que acontece é que, de lá para cá, existe uma lacuna e muita bobagem foi feita, inspirada até no próprio Duchamp. Mas, do ponto de vista histórico, não dá para revisitar o mesmo vaso sanitário, a mesma lata de sopa. Isso já foi feito. Não tem nada a ver com o nosso momento atual. O vaso de Duchamp foi importante naquele momento, como rebeldia em relação aos rígidos estéticos da época . Qual é o contexto de hoje? Qual é a desorganização de hoje? Não pode mais ser aquele vaso sanitário, pois isso já se foi. O nosso mundo, hoje, precisa passar por um novo período, que poderia se chamar de um novo Renascimento. Precisamos de um novo Renascimento, porque, pode parecer um paradoxo, um absurdo, um contra-senso, mas estamos próximos da Idade Média em pleno século XXI. Estamos vivendo quase à beira do caos. Então, precisamos de um novo Renascimento para restabelecermos alguns pilares de sustentação e podermos continuar a caminhada, culturalmente falando, politicamente falando, socialmente falando.

Valdivino Braz — Você traçaria algum paralelo entre a arte conceitual e a onda dos chamados flashmobs, tumultos relâmpagos, que consistem em praticar alguma atividade aparentemente sem sentido, como performance artística ou não, apenas para chamar atenção, e depois dispersar-se rapidamente, antes que chegue a polícia?

O que acontece é que, hoje, todo mundo está muito carente. Com relação à performance, muitos mergulham em sua loucura e não conseguem sair dela. Muitas vezes, vejo alguém realizando uma performance e fico surpreso, pois não sei se aquilo está sendo feito com a lucidez necessária ou se a pessoa tem alguma anormalidade no comportamento. Não sei se ela está drogada ou se está contaminada. Qualquer manifestação artística, seja qual for, tem que ser encarada com a maior responsabilidade. Não se pode fazer uma manifestação artística e sair correndo da polícia. Já passou essa época. Infelizmente, as próprias bienais de arte, hoje, vivem de provocações.

Delermando Vieira — Você não acha que existem muitos artistas plásticos forçando a barra em termos de criação?

Infelizmente, sim. Ser artista é um estado de alma, muito mais profundo do que você dizer que agora vai ser artista. Essa racionalidade é uma incoerência do ponto de vista da sensibilidade da criação, no artista genuinamente artista. Há muita gente produzindo bobagem, despreparada para trilhar os caminhos da arte. Ser artista é muito mais do que pegar uma tela e pintar. É decodificar os sinais do silêncio, o silêncio que não acaba, o silêncio que não existe, a verdade que não existe. Essas coisas é que são mais verdadeiras.

Delermando Vieira — Vemos, em Goiás, artistas plásticos pintando Jesus caolho nos prédios e pretensos escultores fazendo boizinhos de pau ou bonequinhas de espiga de milho. Como você vê essas misérias?

Isso é produto dessa confusão à qual me referi. Há coisas que são artesanato, não são arte. Essa confusão é própria do momento atual. Mas essa pretensa arte não dura — o tempo se encarregará de filtrar as coisas. Evidentemente, a própria mídia tem que assumir o seu papel como veículo de divulgação que se leva a sério.

Valdivino Braz — Um artista plástico local disse que o governo Fernando Henrique acabou com as artes no país e que muitas galerias estão fechando, inclusive em Goiânia e Brasília. Concorda com isso? E a política cultural do governo Lula?

O que acontece com as galerias é o reflexo, também, do exagero nessa questão da chamada arte conceitual. Na realidade, o que acontece com a arte conceitual? Muitas vezes, ela se limita a uma performance e dispensa os museus. O que é um desestímulo à estruturação de museus, sendo que nosso país precisa de mais museus. O único museu de grande peso que temos na América Latina é o Museu de Artes de São Paulo, o MASP, criado por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi. Hoje, temos o Gilberto Chateaubriand, continuando a caminhada. Mas a própria construção do MASP foi realizada sob a pressão da poderosa figura política de Assis Chateaubriand. A cultura se dá também através de eventos. As artes plásticas se materializam na tela, assim como a literatura se materializa no livro, mas elas não podem prescindir do evento, da divulgação, da mobilização, para se materializar perante a percepção alheia. Se não acontece isso através dos museus, caberia às galerias assumir isso. Infelizmente, o setor cultural vive com um pires na mão. Com isso, pequenos grupos dominantes se apoderam das parcas receitas disponíveis.

Francisco Perna — Esse problema afeta Goiás?

Afeta, porque respinga por aqui. O governo brasileiro interfere muito em nossa vida e, quase sempre, negativamente.

Francisco Perna — Como você vê a iniciativa do governo Marconi Perillo, em Goiás, de criar-se o Centro Cultural Oscar Niemeyer?

Um dia, conversando com o governador Marconi Perillo, fazendo um evento cultural para angariar fundos para a campanha do frio, da OVG [Organização das Voluntárias de Goiás], eu disse a ele que somos vizinhos de Brasília, mas não temos nenhuma obra de Niemeyer, que, então, estava com noventa e dois anos de idade. Sugeri ao governador a criação de um museu que lembrasse o grande arquiteto. Então, ele chamou o presidente da Agência Goiana de Cultura, Nasr Chaul, e as coisas começaram a caminhar nessa direção. Hoje, existe o projeto do Centro Cultural. Esse projeto será um grande marco cultural para nós.

Francisco Perna — Mais do que o trem-bala?

Mais do que o trem-bala, Antes de se pensar em trem-bala, é preciso duplicar a rodovia entre Goiânia e Brasília. Ainda não existe trem-bala nem no eixo Rio-São Paulo. Já perdi muitos amigos ali, naquele trecho. Quem não perdeu? Então, o trem-bala é um trem meio futurista ainda. O projeto é interessante e não sou técnico na área, mas penso que há outras prioridades.

Valdivino Braz — Inclusive o transporte coletivo urbano?

É um exemplo. E precisamos melhorar a nossa malha viária para escoar toda a produção de Goiás, que está vindo aí com tudo.

Valdivino Braz — Para o momento, esse trem seria uma bala perdida?

Poderia até ser uma bala perdida.

Valdivino Braz — Goiânia é vista, por alguns, como a capital dos outdoors, e tem o Projeto Galeria Aberta, nas paredes externas dos prédios. Esse projeto nao necesitapasar por um processo de recuperação?

Eu, inclusive, perdi um painel da Galeria Aberta, próximo à Praça Cívica. O síndico do prédio achou que tinha que apagar porque estava esquentando a parede. O Gomes também perdeu um painel. O Projeto Galeria Aberta é uma idéia muito boa, que se insere no cotidiano da cidade. Infelizmente, precisa de sustentação, que não há.

Francisco Perna — Você também está preocupado com a formação de novos valores. Fale-nos desse projeto.

Um grupo de pessoas estava querendo pegar aulas comigo. Eu disse a elas que, então, iríamos fazer um trabalho muito sério. Tenho visto alguns professores de pintura que parecem mais preocupados em arrancar o dinheiro dos alunos, que estão estacionados no tempo há muitos anos. Vou fazer um curso diferente. Quero resultados com meus alunos. Vamos fazer uma exposição, vou tirá-los do marasmo. Muitos artistas nasceram depois dos 40 anos de idade, e todos os meus alunos estão acima dos 40. O curso é muito embasado, inclusive com a aplicação de textos.

Francisco Perna — É sabido que há uma relação entre as artes plásticas e literatura, como no caso de Boticceli, que fez uma série de desenhos para A Divina Comédia de Dante. E Salvador Dalí foi escritor. Como a literatura se relaciona com obra de M. Cavalcanti?

Tenho muita sensibilidade para com a literatura e gosto de deixar que isso flua. Essa influência da literatura na obra de arte é uma herança anterior à Semana da Arte Moderna, em 1922. Quem teve um grande problema com isso foi Monteiro Lobato ao criticar a obra de Anita Malfati, por não compreendê-la. No meu caso, o meu mar é a pintura, mas a literatura tem mexido demais comigo. Tive uma experiência muito boa no semestre passado, na Faculdade Cambury, e isso foi muito bom porque vi que estava com saudade de pensar sob a ótica da literatura e escrever. Tenho algumas coisas escritas, mas ainda não é o momento de colocar isso para fora. Não tenho que provar nada a ninguém nessa área da literatura, será apenas uma criação minha.

Francisco Perna — Eu falo desta relação porque você já ilustrou alguns livros, fez algumas capas de livros.

Eu não saberia dizer quantas capas de livro já fiz. Entre outros, fiz capa para Carmo Bernardes. Nunca me furtei a essa oportunidade. Acho que ela é muito valiosa, celebra um momento único entre a literatura e as artes plásticas. Assim como o diálogo entre pnitura e arquitetura. Aliás, não posso deixar de registrar a perda de um grande companheiro e um grande arquiteto — Tadeu Batista, falecido recentemente. Sem dúvida, um dos grandes pilares da arquitetura goiana. Foi um revolucionário na área. Desenvolvi meu último trabalho com ele —uma escultura de uma tonelada e seis metros de altura, em frente ao Executive Tower, na avenida 136, no Setor Sul, e um painel que pintei no teto deste mesmo edifício. Essa escultura insere-se no meu projeto de produzir obras em grande escala para incorporá-las ao cenário urbano, pois aqueles bustos que os militares colocavam nas praças não fazem mais sentido. E a perda desse grande amigo, Tadeu Batista, é uma pena porque eu vinha tentando incrementar, cada vez mais, essa parceria entre o artista plástico e o arquiteto.

Valdivino Braz — O artista plástico faz uma leitura da obra literária e expressa com outras tintas essa leitura, daí a importância da capa realizada por ele. Não deixa de existir, sempre, uma empatia entre tela e texto.

Exato. E isso é muito provocante.

Valdivino Braz — Ainda no contexto dos conceitos e performances, como você observa a exposição de cadáveres, a Body Worlds (Mundos Corporais), apresentado pelo alemão Gunther von Hagens?

Sabia que ele se acha revolucionário tal qual Leonardo da Vinci? Afirma que será julgado pela história pelo impacto que está provocando. Eu coloco esse artista — esse artista, não, olha só! —, essa figura, esse alemão, dentro da mesma análise dessa desorganização que estamos vivendo. É interessante o trabalho de Gunther von Haghens, do ponto de vista do estudo da anatomia. Mas quando ele começa a comercializar isso, sistematicamente transformando isso em produto cultural, ele começa a banalizar o ser humanoEle pega os órgãos, distribui, põe numa gaveta e remonta isso como numa oficina de carro. Ele está mexendo com o que há de mais sagrado dentro de nós, a morte, que ainda temos muito mal resolvida. Quando nos encontramos com a morte transformada, revisitada e esteticamente organizada, é uma coisa que nos provoca. É um assunto muito complicado.

Valdivino Braz — Gunther von Hagens teria utilizado cadáveres de vítimas de execução chinesa. E, já que falamos de ética, como você avalia a clonagem?

A clonagem de seres humanos parece inevitável, porque o ser ser humano é muito inquieto, tem sede de conhecer. Mas, se aceitarmos isso sem debater, como estamos debatendo o caso de Ghunter, incorreremos num gravíssimo problema ético. Uma pessoa pratica um roubo e, por causa disso, é executada com um tiro na testa. Outra vem, compra seu cadáver e o transforma para fins pretensamente artísticos. Isso ainda será julgado. Ghunter está mexendo com a religiosidade das pessoas sem o mínimo pudor. E com bilheteria, não é?

Valdivino Braz — Fale-nos um pouco, agora, do seu projeto Cor da Carne, juntamente com outros artistas plásticos, colocando-se aos olhos do público um pequeno rebanho de bois feitos com fibra de vidro, em tamanho natural.

É um projeto de Camilo Pereira, que tem o título de Barão of Fulwood, que lhe foi conferido na Inglaterra. É um goiano que saiu daqui aos 15 anos de idade e está voltando agora, com a pretensão de montar uma galeria de arte para atuar com mais profissionalismo no ramo. Ele está sentindo falta disso. Todos nós sentimos essa falta disso em Goiás. E o projeto Cor da Carne é idéia dele. Reunimos um grupo, somos 13 artistas participando do projeto: D.J. Oliveira, Cléa Costa, Peter Rodulfo [artista inglês que veio com Camilo], Selma Parreira, Nonato e Luiz Mauro [estes dois de Inhumas], Roosevelt, Telma Alves, Tarciso Viriato [de Brasília], Marcelo Solá, Edney Antunes, Juliano Morais e eu. O suporte do projeto é o boi. O interessante é que cada artista entra com um boi e vamos montar um pequeno rebanho muito provocante, porque a política do boi é um dos pilares na economia goiana e teve a sua interferência do ponto de vista cultural. Antigamente, deixava-se de comprar um quadro porque, na visão do comprador, ele custava dez bezerros, 50 cabeças, e isso, para ele, era um absurdo. Hoje, a coisa mudou. A arte vai invadir o boi, sob a nossa ótica cultural. O boi é uma moeda corrente, faz parte da nossa economia, e a arte também. Emblematicamente, esse casamento do boi com a arte tem um sentido muito curioso, e as pessoas vão ver e sentir isso. O projeto está sendo exposto na parte nova do Flamboyant Shopping Center. Alguns artistas, inclusive, vão pintar suas telas no local. Depois a mostra irá para um museu de artes em Brasília e será transformada em livro pelo escritor pelo poeta Brasigóis Felício. Camilo Pereira bancou tudo do próprio bolso.

Valdivino Braz — Como você avalia o papel do Estado na cultura?

Temos algumas referências em Goiás, em termos de política cultural. Tivemos o governo Irapuan Costa Júnior, que foi um grande incentivador da cultura e o governo Henrique Santillo, que foi bastante atuante. Marconi Perillo tem feito um trabalho interessante. A minha preocupação é quanto à formação de pequenos grupos que acabam monopolizando a política cultural. Apesar de termos grandes valores individuais, também sinto falta de um movimento goiano de artes, como se faz em outros Estados, como a Bahia, por exemplo. Devemos observar que alguns chamados baluartes da pintura goiana, com uma projeção nacional muito grande, foram, de certa forma, omissos nessa questão. Foram bem-sucedidos somente para si, e não para o movimento. Não tiveram a preocupação com o coletivo, com a formação de uma consciência goiana de cultura, seja ela nas artes plásticas ou na literatura. Cada um tem a sua individualidade, mas é o momento de se fortalecer o segmento, para se levar a identidade goiana para fora. Uma vez fiz uma exposição em Cambridge, a convite, e chamei o padre César, então secretário municipal de Cultura, para ir conosco a essa exposição. Neste sentido, houve agendamento com a prefeita de Cambridge, Padre César confirmou presença e, na reta final, acabou não indo. Pedi-lhe, então, que enviasse um ofício a Cambridge, que esperava por um agente cultural de Goiás. Recolhi fitas sobre a cidade de Goiânia e levei para lá, fui recebido pela prefeita, que esteve em minha exposição, e eu trouxe a chave daquela cidade. Entreguei-a ao padre César e lhe disse que sua ausência fora sentida. Vejam a importância do artista plástico — o que aconteceu comigo poderia ter acontecido com qualquer outro artista. É necessário que se tenha o agente facilitador do processo cultural.

Francisco Perna — O que você acha das leis de incentivo à cultura, tanto estadual quanto municipal?

Funcionam. Eram uma coisa que não tínhamos e que vieram como incrementadoras da cultura. Sabemos que essa parte foi muito boa. Mas há aspectos ainda polêmicos, como o artista ter aprovado o seu projeto e ser obrigado a ir atrás do orçamento, convencer o empresário a bancar o projeto. A grande política cultural, se tivesse uma lei melhor, seria ver o projeto aprovado e o governo pagar esse projeto, sem fazer o artista correr atrás dos recursos. A via crucis que o artista faz é um processo doloroso, ir atrás do empresário quando nem todos têm habilidade para isso. E ainda há alguns quesitos da própria lei, como, por exemplo, entrar no mérito de saber que material o artista vai usar, quantos pincéis etc. Quantificar isso é uma coisa complicada.

Francisco Perna — Você acha que o empresariado goiano já está mudando o seu conceito em relação à arte, sabendo que quando investe em cultura está investindo em sua própria empresa e incrementando a vida cultural?

Eu tive um projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura, um painel em cerâmica na Faculdade Alfa, patrocinado pela Coca-Cola. Houve demora entre a tramitação e a aprovação do projeto. Graças a Deus, tenho um bom relacionamento e consegui encaminhá-lo. Fico pensando em artistas que não têm essa fluência e que vão entrar, às vezes, em estado de sofrimento. Por exemplo, quando o padre César era secretário municipal de Cultura, eu e o Gomes fizemos um projeto em parceria, que consistia na elaboração de um painel no Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico de Goiás. Apresentamos esse projeto à Lei Municipal de Incentivo à Cultura, mas só foram liberados 10 por cento do valor que havíamos pedido. Decidimos, então, subsidiar o restante, por entender a importância do painel, por uma questão de consciência da nossa responsabilidade social. As leis de incentivo à cultura são boas, mas precisam de suportes suplementares.

Francisco Perna — O caso do padre César foi atípico, não? Ele não era da área cultural?

O padre César é uma figura muito polêmica. Aliás, todo padre. Eu não viro as costas para um padre. Historicamente, todos os padres que passaram por aí foram figuras interessantes. Um grande exemplo foi o frei Nazareno Confaloni, que foi artista e um grande incentivador da arte. Mas a questão não é essa. A questão é que o governo, seja municipal ou estadual, tem que ser um facilitador do processo cultural.

Valdivino Braz — Há que ser um facilitador, e não complicador. A burocracia é cruel, até porque, amiúde, é um meio que não chega ao fim.

Exato. Ãs vezes, uma lei de incentivo à cultura parece boa, mas se torna complicada ou inoperante, prejudicando o artista.

Francisco Perna — Outro problema, ao que me parece, é que o atual secretário municipal de cultura, Sandro di Lima, que é da área do teatro, prioriza a sua área em detrimento dos demais.

Com relação a isso, é até uma questão vocacional. Isso existe porque nós, seres humanos, às vezes somos tendenciosos demais. Era de se esperar essa atitude, porque o secretário é da área do teatro. Mas ele tem procurado atender outras áreas também.

Valdivino Braz — Em resumo, o que falta em todo esse contexto cultural?
Falta unidade de pensamento, fluência e espírito de equipe.


Esta entrevista foi originalmente publicada no Jornal Opção, de Goiânia, no dia 07 de março de 2004

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