Raúl Antelo - Entrevista



ENTREVISTA RAÚL ANTELO / ÚLTIMA PARTE


O apóstolo da dissidência



Na terceira parte da entrevista, o professor e crítico literário Raúl Antelo discorre sobre a importância da construção dos sentidos a partir de si próprio, sem imposição, fala da pouca receptividade da poesia — dado o imediatismo da vivência cotidiana — e enfatiza que não é a adesão imediata das massas à poesia o que conta, mas sim o tipo de vínculo que estabelecem. Demonstra, com entusiasmo, seu interesse pela renegada literatura considerada marginal, porque a ação pelo diferimento é o que o move. Confira a última parte da entrevista concedida ao Jornal Opção.

Priscila Marília Martins — Parece-me alinhado o discurso de muitos críticos a respeito da poesia visual. Falam insistentemente na tese nietzschiana do eterno retorno, das linguagens poéticas utilizadas na atualidade como se fossem uma releitura, uma espécie de retorno diferenciado da poesia concretista. Em entrevista ao Jornal Opção, a também crítica Célia Pedrosa, da Universidade Federal Fluminense, afirma que esse aparente“retorno” da poesia concretista se dá a partir de elementos antigos lidos em novo contexto. O senhor concorda?

Para mim, o eterno retorno é sempre o eterno retorno da mesma figura, que dissemina uma energia, uma força, que é o que me interessa resgatar, e que nunca é a mesma. O eterno retorno não é sempre idêntico; o que me interessa nele é justamente o eterno retorno da mínima diferença, porque acho que é na mínima diferença que o sentido se constrói. Uma releitura é uma reconstrução e é claro que só pode ser outra, porque os tempos são outros, as inserções são outras, as posições dos sujeitos são outras. Mas o que vincula os dois momentos é uma demanda de sentido, uma solicitação, uma procura de sentido. A demanda de sentido só revela que o sentido nada deve à natureza, o sentido é puro artifício.

Priscila Marília Martins — A poesia tem atingido seu propósito? Se ele existe, consiste em essencialmente atingir o outro?

Atingir você sempre atinge. O problema é questionarmos sobre a qualidade do vínculo que se estabelece. Tenho a impressão que muitos dos autoproclamados poetas priorizam um contato mais festivo, esporádico, com o leitor, e julgam que esse vínculo é o que conta. Tento pensar o contrário, o vínculo como uma demora, um retardamento, um atraso, um diferimento; não espero a adesão imediata das massas, não é isso que conta. Nós vimos vários colegas, vários poetas aqui apelando diretamente para uma adesão, tentando arrancar uma reação visceral de gozo, de júbilo.

Priscila Marília Martins — Não é esse o maior propósito dos festivais, o apelo à adesão?

É uma ilusão ainda vanguardista a ilusão do agir próprio. Acho que talvez uma ação madura esteja na educação — que não é a pedagogia —, a educação como freqüentação, como retorno, como possibilidade de se permitir elaborar um problema, uma questão, um valor. Aí, sim, eu diria que a poesia pode cumprir uma função, um trabalho, apesar de ser um trabalho muito lento.

Priscila Marília Martins — Como o senhor trabalha com esse tipo de educação?

Às vezes me angustio muito por não ser compreendido de imediato, por alguns dos meus alunos não entenderem o que eu estou dizendo. Contudo, adoro que não compreendam, porque, se não entender for se traduzir em eles irem atrás, em poder recompor a biblioteca que apareceu na minha fala, ou seja, se eu citei, fulano, beltrano e sicrano, se esse aluno vai à biblioteca e persegue esses textos, cruza esses textos e volta no encontro seguinte com uma pergunta, com um questionamento — ontem você disse tal coisa, mas eu li fulano e beltrano e constatei que não é bem assim —, isso é educação, que não é pedagogia, porque pedagogia é visualidade. Esta me parece interromper a transferência. Educação é ainda manter o vínculo a partir do diferimento do sentido, não impor um sentido, mas fazer com que o outro aprenda a lidar com as ferramentas para ele próprio construir um sentido.

Priscila Marília Martins — Por que a poesia tem sido uma arte de pouca receptividade?

A sociedade em que vivemos é muito rápida, quer efeitos imediatos, quantificáveis, contáveis. As pessoas não têm tempo, não podem se dar ao luxo. Além disso, os poetas talvez sejam, dentre os artistas, os mais dispendiosos, porque gastam muito tempo para se formarem. Nesse sentido são anacrônicos na sociedade contemporânea. A sociedade pede um livro de poemas todo santo ano. Se você não lança, então já não é mais poeta, perdeu o vigor; não é bem por aí. Aposto muito na ação diferida, isso já é uma opção poética.

Priscila Marília Martins — O senhor escreveu João do Rio: o Dândi e a Especulação, além de ter reeditado A Alma Encantadora das Ruas. O que o levou a escrever sobre esse autor, visto o rechaço manifesto, de maneira geral, pela literatura considerada marginal, tida, quase sempre, como menor?

Essa foi uma lição. Por ter um livro sobre ele, Antonio Candido me pediu para organizar uma reedição d’A Alma Encantadora das Ruas para uma coleção da Companhia das Letras. Como sempre, as coisas que a gente faz são um misto de desejo e marginalidade, necessidade. Eu era leitor de João do Rio. Lembro-me quando me contrataram em Santa Catarina e me pediram um curso sobre pré-modernismo, porque a disciplina pré-modernismo era obrigatória, o que é meio sui generis, porque, se alguma coisa deveria ser obrigatória, seria o modernismo, que é a ruptura. Mas o pré-modernismo, que já de antemão nasce morto, porque não chega a ser tão completo como alguma coisa que veio antes, não se entende muito bem por que teria que ser obrigatório, se ele não é pleno. Em todo caso, a disciplina que tinha que ser lecionada era pré-modernismo, e ninguém se interessava por pré-modernismo. Se alguma coisa me caracteriza, é sempre remar contra a corrente. Recuso-me a dar um curso historicista sobre o pré-modernismo. Se estão esperando que eu vá dar vida e obra de Euclides da Cunha, negativo, não é comigo. Então armei um curso sobre o pré-moderno e o pré-modernista, escolhendo como representante do pré-moderno Lima Barreto e do pré-modernista João do Rio. Para mim parecia que na literatura de João do Rio prefiguravam os temas, as técnicas, as soluções que íamos encontrar em Mário [de Andrade], Oswald [de Andrade], dez anos depois. Eu percebia, ainda, talvez uma instância lacunar do próprio modernismo, a discussão sobre o artista como prostituta, como corpo, do próprio corpo como suporte e espaço da enunciação. Isso é fundamental em João do Rio, seja pelo interesse que ele dispensa à moda, aos perfumes, ao flerte, ao comportamento. Ele entrando para a academia e bolando o fardão, o próprio corpo obeso dele — um corpo que não se sustenta em todas essas regras de etiqueta que ele próprio, de alguma maneira, está divulgando — me fazem ver ali uma pré-figuração dessa instância demoníaca de que hoje estava dando um outro exemplo, também muito emblemático, que é do Flávio de Carvalho. Eles são como que as pontas do processo, quer dizer, a entrada e a saída do moderno. O Flávio coloca como sair do modernismo, e o João do Rio, de alguma maneira, está precipitando a questão de como entrar, como cristalizar, como fazer acontecer o moderno. Está claríssimo que ele encara os textos como partes que devem ser vendidas no mercado todo santo dia, sem nenhuma mediação, sem nenhuma ambição de idealização ou coisa que o valha.

Francisco Perna — Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz que “a vaidade dos outros é fastidiosa apenas quando se choca com a nossa própria vaidade”. Como o senhor lida com a vaidade no meio acadêmico e literário, onde prevalecem as tertúlias, as igrejas e outros credos? No campo da religião, o senhor segue o papa ou se julga ateu?

Eu tenho uma clara vocação para dissidência, senão não estaria onde estou. Começa por aí. Se dou aula numa universidade como a de Santa Catarina, é porque de alguma maneira houve também uma deliberação na minha decisão de preferir a autonomia em detrimento à submissão. O fato de eu ter escolhido e ter permanecido em Florianópolis é também uma deliberação de uma posição marginal com relação aos grupos, o que não quer dizer menor, porque acho que, na atual conjuntura, a minha inserção é dúplice, mas eu sou lateral porque, embora tendo sido discípulo de grandes mestres, por exemplo, da USP, como Antonio Candido ou Alfredo Bosi, digamos, não gravito em torno deles, não estou inscrito numa disputa de herança. Não tendo sido discípulo de Silviano Santiago — somos quase contemporâneos, nos separam 15 anos — posso manter com ele uma relação de fraternidade, que é uma relação mais livre, menos comprometida que ser um discípulo direto, e, ao mesmo tempo, estando em Florianópolis e tendo essas relações, que são relações de freqüência, de respeito, cordialidade com esses e com tantos outros colegas, isso não impede que eu tenha também uma presença em outros espaços, seja em universidades americanas, seja em Buenos Aires. Me parece uma característica do mundo contemporâneo, do mundo global, poder ter relações intensas com colegas de várias procedências. Talvez os meus interlocutores mais cotidianos sejam colegas que hoje trabalham fora do Brasil.

Francisco Perna — O senhor, argentino de alma brasileira, voltaria a morar em Buenos Aires?

Não sei se eu algum dia voltaria a morar em Buenos Aires. Também me ofereceram para voltar, mas recusei. Todavia moro num confim. O confim é justamente um espaço em que se tocam os fines, os limites, ou seja, moro num espaço de superposição. Todo o meu corpo de referências e de leituras, de inserções, os ecos das minhas falas — a própria formação de alunos — se dá em dois espaços, ao menos em dois espaços simultâneos, que confinam, se superpõem, e isto não cria em mim divisão, quando muito cria uma síntese disjuntiva. Pode ser que as coisas me custem mais porque, de alguma maneira, é como se eu estivesse vivendo duas vidas simultâneas; estou constantemente tendo que provar aqui que eu não sou tão estrangeiro quanto me julgam, estou tendo que provar para os argentinos que eu não esqueci tão completamente tudo que me foi ensinado com a língua materna.

Francisco Perna — Já escreveu poesia?

Não, apenas na adolescência. Devia ser um arremedo de não sei lá quem. Acho que fiz meu trabalho crítico com um fim: a mescla de especulação e ficção. Deposito muita confiança no conceito de ficção; considero meu trabalho crítico ficção teórica, porque acho que só se lê fingindo. Para você ler, tem que montar uma máquina de leitura, ser escritor, poeta e sensível para armar esse artefato.

Goiânia, Maio de 2006.


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