Tahar Ben Jelloun - Poema






Tahar Ben Jelloun









Que meu povo me perdoe



Tu que não sabes ler
pega meus poemas
pega meus livros

Faz deles uma fogueira para aquecer tuas solidões
que cada palavra alimente a tua brasa
que cada sopro se perpetue no céu que se abre

Tu que não sabes escrever
que teu corpo e teu sangue me contem a história do país
fala

Seria ilusão do arco-iris
ser apenas de ti
deste corpo mutilado

Eu lerei os livros ao contrário
para ler melhor um prado de flores sobre teu rosto

Eu falarei a língua do campo e da terra
para entrar na multidão que se rebela

Eu desembarcarei nas feridas da tua memória
e habitarei teu corpo que se cala
Nós anunciaremos juntos a primavera às crianças dos
terrenos baldios

Nós anunciaremos o sol moribundo ao astro que se esvazia
Nós anunciaremos o mudar da vida a montanha anônima
que avança

Enquanto eles despacham os assuntos corriqueiros
dançam sobre o dorso uniforme de homens e de mulheres
riem e comem o fígado das mães de luto
Devolveremos o bicho desfigurado aos arquivos dos
ministérios

A história não tem mais intenção de se mover
ela se agarra às fibras da morte
e preside a sessão de abertura no abatedouro da cidade

Nossa história é um território de chagas que uma primavera
de euforia encerra

Lembra-te
íamos pelos campos semear a esperança
Revolvíamos a cidade como a terra grávida

descobríamos árvores selvagens prontas para perfurar o céu
e milhares de ombros voluntários para levar esse país
aos píncaros do sol

acreditávamos na aurora diamantina
a aurora despontava ao chamado das crianças
a rua dançava em nossos braços
esquecíamos que a luz podia gerar alma estranha
embriagávamo-nos ao fogo para melhor abraçar o brilho do céu

Em seguida a cidade e o céu se descompuseram
o sonho partido vertia seu desgosto nas ruelas desertas

O povo amarrou a esperança na espera
prolonga as sextas-feiras
bebe vinho
fuma kif
come vermes da terra
e pega o sol

Os outros
mãos e sexos corrompidos
apostam nossa memória no pôquer

nossa memória envelhece
nossa memória cochila

Povo
minha cabeça está pesada
ela é carniça
ela fede o verbo
ela cai

Eu a entrego à víbora maldita

nossa loucura
nossa cólera
abraçadas à víbora maldita




In. As cicatrizes do Atlas. Poetas do Mundo. Tahar Ben Jelloun. Organização e tradução: Cláudia Falluh Balduino Ferreira. Brasília: Editora UnB, 2003, p.36-43.
Imagem: Fogueira

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