SAGRADA CEIA


Francisco Perna Filho

















A imagem,

carcomida,

age,

na ilusão da mesa,

na solidão do prato,

comportando olhos

peregrinos

e santos.

A imagem

da amanhecida ceia

ainda traz em si

uma serena alma

amarelecida em prantos.

A imagem,

que carcomida age

colhendo pratos,

revisa a fome

de santos e peregrinos.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 105.

Imagem: Pablo Picasso, Pintor e Escultor Espanhol (Cubismo), 1881-1973. Girl Before a Mirror [Femme au miroir],1932 - (Museum of Modern Art, New York)

GOIÂNIA


Para Celina Manso










Francisco Perna Filho

Goiânia,
ouço o teu grito,
como num eco, repetidas vezes,
nesse corredor vazio da Avenida Anhanguera,
nas mortes irrelevantes da Rua 90,
nos banheiros pobres da periferia
encardidos de amor barato,
de retalhos e esperanças,
cheirando a naftalina e eucalipto.
Eu contabilizo a tua dor
Nos barracões de lona preta,
Nas casas sem porta,
E nas goteiras da tua ilusão.
Eu vejo o olhar iluminado do césio 137
passeando num velho Fiat
pelas ruas esburacadas do nosso desencontro e,
deslumbrado, contemplando a natureza morta
nas tuas curvas e viadutos.
Eu choro o teu abandono,
o teu desprezo,
a tua impotência,
nos olhos paralisados dos meninos de rua,
tão vermelhos quanto os semáforos da Avenida Mutirão,
e mastigados pela cola que os consome.
Eu sofro com os teus vagidos
nas obscuras celas dos teus presídios e manicômios,
e na pálida alegria das tuas garotas de programa,
ao se sentirem importantes nas páginas dos classificados,
postadas como estampas de alguma correspondência barata.
Vejo-a daqui de cima, do Morro do Além,
e a fumaça que sobe dos teus prédios é da cor da alma dos teus algozes.
Vejo os teus mortos e desabrigados,
desiludidos e aviltados,
chorosos e maledicentes ao se virem enxotados de suas ilusões.
Goiânia,
Talvez o meu canto, de natureza triste,
de escombros e revoltas,
Pareça uma ofensa, mas não.
O teu lado belo, da Art Déco, todos conhecem.
As tuas praças floridas,
Tuas avenidas,
Os bairros nobres e condomínios fechados,
Já não são novidades.
Os teus hospitais, centros de excelência,
Tuas catedrais,
Teus palácios,
Aeroporto,
Rodoviária e shoppings.
Tudo isso nos enche de orgulho,
Mas não podemos quedar-nos diante do feio,
Da corrupção,
Do desmantelo.
Goiânia,
A tua história é canto de toda gente,
De todos os cantos,
De todos os povos,
Que aqui chegaram,
Vindos de outras terras,
Com olhares vários,
Com sonhos, costumes e tradições,
Deixando para trás o berço,
A família e o olhar,
Porque foste a eleita e,
Por ser assim, é que te queremos mais amada,
Menos amarga,
Porque fazes parte do mundo,
Porque trazes uma parte e uma fala de cada povo,
E em ti estão as feições de uma sociedade cosmopolita.




Foto by Francisco Perna Filho

POEMA HOMENAGEM



Clique na imagem para ampliá-la!












Hoje cedo, tive a grata satisfação de receber esta homenagem do meu dileto amigo/irmão Sinésio de Oliveira, poeta, jornalista e fotógrafo.




Foto by Sinésio DeOliveira

New York



Francisco Perna Filho












O pássaro

vê a cidade

Lentamente/ letalmente

Mergulha.

O pássaro

É de metal

E só percebe o próprio vôo,

Desconsiderando as cores

E os sonhos que carrega.

O pássaro vê

Mas não ouve.

A cidade ouve

Mas não vê.

A vida imita a arte:

O pássaro explode

Em chamas,

A cidade

Chora escombros.




In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001.

TRANSFORMAÇÃO


Francisco Perna Filho












Peixe na linha,

rima de pescador.

Encontro de águas e arco-íris.

Rio quebrado nas voltas dos olhos,

no piscar dos barcos,

na manga de chuva.

Perpetuado no mormaço da existência.

Os olhos observam o ritmo:

na rima quebrada do peixe fugido,

na desalegria de morte escapada,

na deselegância de mesa-objeto, sem pão.

O rio continua

no riso pálido do pescador extático,

no hiato das culturas,

na incontinência dos jovens poetas.

Linha, água.

Peixe, anzol.

Pescador.



In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.37.

AUTOBIOGRAFIA



Francisco Perna Filho


Nasci,

tomei conhecimento do mundo

e de mim.

Além dos outros,

somente eu:

UM.

Um a contabilizar os dias,

os goles e os livros,

a jurar amores

às cartomantes.

A correr sem medo,

sem dinheiro e sem rumo,

espantava a velhice escovando as horas.

Quando cresci,

fui jogado no mundo,

bati com a cabeça na vaidade alheia,

conheci mulheres

e espelhos,

e descobri-me sobrevivente

ao brindar com o inimigo.

Acumulei perdas

e desilusões.

Talvez, por ter nascido bem mais tarde,

não me calaram a voz.

Chorei.

Persegui amores,

como os cães do interior

perseguem carros:

uma luta vã.

Sobrevivi,

tive bem mais sorte

do que o Latim.

Historicamente me fizera,

na repetição dos dias

e dos filhos,

descobri o amor.



Foto by Tainá Corrêa

URBANO




Francisco Perna Filho









Rádios,

vozes,buzinas,

o cheiro dos cafés

e o dia refaz-se

nas palavras do homem

que denuncia o mundo

ao contemplar os seios

da mulher que passa.

Labirinto humano,

traçado e forjado

no livre arbítrio.

O homem,

cujos seios busca,

desmancha-se

em vozes,

luzes

e cansaço.

Também é morte,

Norte,

breve,

que se faz

noturno.



In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.63


SHOW DE GRAÇA


Francisco Perna Filho













O ser, capenga,
capina.
A mata, em riste,
resiste.
Na lâmina cega,
o reflexo de mais um capítulo
de devastação.

Tão desolado,
do outro lado,
o homem fica.
Setenciado,
brinca de ser humano.

A lua olha
o cambaleante homem,
que perfila tombos pela avenida.
Numa igreja à vista,
uma placa indica:
Show de graça!
Sem pagar ingresso,
ele entra,
senta-se,
chora,
morre de rir.




In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.91.

Imagem: Giorgio de Chirico. The archeologist, 1927. Óleo


ANOTAÇÕES


Francisco Perna Filho









Fundada em lonjura,
a saudade é áspera.
Farpado arame,
pintura descascada.

Turvo canto,
lânguido e impessoal
como a ausência,
sem defesa na hora que ataca,
como a fera que espreita e devora.


In.Refeição.Goiânia: Kelps, 2001, p.43.

MODERNIDADE


Francisco Perna Filho














Divisando o vazio

no espaço do grito,

na transgressão do interdito,

na instabilidade da perda,

no reflexo do eco.

Chorando os muros da modernidade,

com palavras parafusadas na alma

do fragmentado Ser,

a virgem cola sentimento

e clona o amor.





In.Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p. 55.

PANDEMIA


Francisco Perna Filho










Meu gato Pan,

de noite,

Mia.

Com sede,

Mia.

Com sono,

Mia.

Pan, de noite,

Mia.

Pan, de dia,

Mia.

Mia é a sua mãe.

Todos chamam-no

de Pan de MIA [PANDEMIA].



Foto by Francisco Perna Filho - Gato Chico.

Palavras de um morto










Francisco Perna Filho



O que seria a loucura para vós?
um homem voltado ao vazio,
nas ruas grávidas de gente?
meu coração parte-se.
E a mudez que o estampido rompe,
não desfaz minha fé nos homens,
nas palavras.
Tivésseis carregado vossas armas de boas intenções,
por certo, o medo não rondaria nossos caminhos.
Não vos acuso pela loucura do mundo,
mas não posso admitir
que façais tombar a esperança
de campos floridos,
de crianças correndo brilhatemente pelos bosques,
de janelas abertas prenhes de um novo dia.
Há um grito em cada verso meu,
grito abafado, mas sereno.
Um grito continental,
de clamor e piedade pela humanidade.
De que artes & manhas são feitas as guerras,
irmãos meus?
talvez da racionalidade humana,
porquanto loucos não declinam maldades,
apenas perseguem vazios.




In.Refeição. Goiânia:Kelps, 2001, p.89.

Imagem: http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=8797139806311672068

Espelhado de céu muito sereno














Por Francisco Perna Filho





Depois de morar em São Luis do Maranhão, Cuiabá, Palmas, Goiânia e Fortaleza, Jádson Barros Neves voltou à sua pequena cidade, Guaraí-TO, para uma jornada de intensas leituras e escritas.Leitor de William Cuthbert Faulkner, estudioso contumaz das nossas Letras, traz na alma, um tanto quanto inquieta, os causos, lendas e mitos da Região Norte, principalmente do sul do Pará, onde trabalhou como vendedor de secos e molhados, juntamente com seu pai, já falecido.

Jádson, ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, vem construindo um trabalho de fôlego na narrativa contemporânea brasileira, mais particularmente na categoria conto. Detentor de diversos prêmios literários, tanto no Brasil, como no exterior, valendo destacar o Concurso Guimarães Rosa/Radio France Internationale.

Enquanto o primeiro livro não chega (ainda é para este ano) Jádson vai se firmando como escritor, conquistando novos leitores e novas premiações, como recentemente o fez, nos 40 anos da UNICAMP, quando teve o seu conto “O Funil” incluído no livro “CONTOS – UNICAMP ano 40” (Editora da Unicamp,2007).

Ambientado num vilarejo qualquer, às margens de um rio qualquer, da memória do autor, o conto nos fala de companheirismo e perdas. Conta a história de Suzana, viúva de Orlando, e a do seu cunhado, José, na incansável busca para encontrar o irmão que fora tragado pelo rio quando nadava de volta para canoa, após recuperar a sua vara de pesca que caíra na água.

Narrada em terceira pessoa, intercalada por idas e vindas, irrompendo, às vezes, o discurso direto e o discurso indireto livre. O tempo narrado compreende quatro dias na vida dos personagens, desde a Sexta à tarde, quando Orlando caiu no rio, o Sábado e Domingo de buscas, até Segunda feira, quando o corpo foi encontrado.

Já de início, pode-se ver a força narrativa de Jádson, as belas imagens com que trabalha, consubstanciadas pela força lírica do seu texto. Como se pode conferir neste trecho:

“José havia remado a tarde inteira, por mais de dez quilômetros, rio abaixo, e também havia procurado ao longo do delta, nos baixios e nos remansos e agora estava exausto. Subia a ladeira que dava no vilarejo, onde uma lua gorda, amarela, nascia atrás da colina da igreja. Quando passava, as pessoas olhavam-no em silêncio, e José as cumprimentava e baixava a cabeça e as pessoas também baixavam a cabeça. Era um coro só, o coro do silêncio. José vinha adoecido daquele crepúsculo rápido e sangrento, daquele fim de inverno chuvoso, que ainda repercutia no horizonte em forma de relâmpagos esparsos.(...)”.

Com assomada capacidade perceptiva Jádson Barros Neves consegue, pela plasticidade de suas imagens, compor a atmosfera propícia para o fato narrado, como quando descreve a velha casa onde moram José e Suzana e, outrora, Orlando:

“A casa onde ela morava era velha, pintada de um amarelo corrompido pela ação das intempéries e descascada pelo sol. Esquecida, quase abandonada há anos, suas duas portas, suas três janelas fechadas, com fendas na madeira, guardando o silêncio e a poeira de muito tempo de esquecimento”.

Assim como a descrição encimada, muitos outros belos trechos são marcadamente inesquecíveis, como o que segue:

“Ela concordou mais uma vez com a cabeça e José foi fechando os olhos lentamente, contemplando a imensa lua amarela que sangrava perto da janela e lembrando do quanto era bonita a chuva no delta. Vira-a à tarde, uma cortina escura, que cavalgou escurecendo o horizonte”.

Percebe-se aqui, pelas passagens lidas e superficialmente analisadas, o pleno domínio da narrativa curta por Jádson Barros, a primazia com que tece as tensões nas suas histórias, sempre carregadas de muita reflexão e humanidade. Um voltar-se sobre si mesmo, revelando e encobrindo, causando no leitor a vontade de seguir adiante, como bem nos ensina Wendel Santos:

“O conto forma-se sob o anseio de duas tensões: o de revelar e o de encobrir. Tais tensões podem compor-se de modo o mais diverso. Há o conto que alterna revelação e encobrimento; há o conto que, de início, revela um mínimo suficiente para despertar a curiosidade leitora e, em seguida, numa ordem de crescimento constante, encobre seu objeto até o ponto em que é necessário outra vez revelá-lo(...)”

Jádson sabe muito bem do que fala Wendel Santos. Ele tem pleno domínio da técnica e da arte da escrita, sem falar no seu apurado senso estético. Adentrar a sua obra é permitir-se participar desse jogo, dessas tensões, para uma jornada de acontecimentos. O leitor está convidado a conhecer mais de perto o poder criativo deste autor tocantinense, que, sem medo de errar, faz parte do que de melhor há na Literatura Brasileira. Boa leitura!.





Imagem: Selfportrait - Maurits Cornelis Escher, Illustrador Holandês - 1898-1972.

Um olhar sobre as diferenças




A muda da minha rua falou-me das estrelas,
com ela aprendi a escutar o rio da minha infância










Por Francisco Perna Filho




Ao nascermos, a primeira leitura que fazemos do mundo é a leitura sensorial: os sons, as cores, os cheiros, a temperatura, as texturas, os sabores. Daí, passamos para abstração do mundo, começamos a sair do concreto para o abstrato, vamos eliminando as figuras; passamos ao simbólico, às sentenças, ao descortínio do que se nos apresenta implícito, nas entrelinhas. Tornamo-nos críticos do mundo e das coisas, senhores do nosso nariz, da nossa boca, do nosso paladar, do nosso cheiro, do nosso som. Espelhos de uma sociedade perfeita, aparelhada de um estado perfeito, de uma justiça perfeita, de um legislativo perfeito, portanto de homens perfeitos. Democraticamente perfeitos.

Descoberto um mundo não tão perfeito, ou quase imperfeito, modificamos a nossa crença, antes absoluta, para um aprendizado de realidades outras: os nossos pares são tão imperfeitos quanto nós, mas não se dão conta disso, até serem colocados à prova da convivência, quando os pré-conceitos afloram, quando a razão é imperativa e degrada, alija e maltrata.

Começamos a nos redescobrir como seres sensíveis, dotados de sentidos e de intuição; capazes de sentimentos e de reflexão. Passamos a valorizar o que somos e o que temos. Passamos a olhar o mundo, outra vez, com os olhos infantis para o descortino de um tempo ainda não corrompido. Um mundo vibrante, de formas e cores; de sons e cheiros. Redescobrimos a beleza do simples, para uma contemplação de plenitudes.

Reabilitamo-nos para a convivência plena: sem preconceito, sem discriminação, sem qualquer estigma. O outro nas suas particularidades, com as suas diferenças, com as suas idiossincrasias. O outro que - ao nos mostrar aquilo que somos - nos habilita para recifração de um mundo mais humano e pleno.




Imagem: Pieta - Jan Saudek, Fotografo Tcheco - born 1935-

Olhando o homem, o peixe se reconhece




Por Francisco Perna Filho






Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade, buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.

Ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.

Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entramos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.

O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.

Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o empecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume, já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranqüilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bocado, logo vamos fisgar um”.

Após ser tranquilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que alguns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.

O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranqüilizou-me dizendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por sinal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.

Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pesando “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.


Impression, Sunrise, 1872 - Claude Monet, Pintor Francês (Impressionismo) - 1840-1926 - (Musee Marmottan, Paris)


Ouvindo a própria voz



Por Francisco Perna Filho












Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saía. Fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presenteou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas estantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, o mesmo que tínhamos pelos inúmeros livros da minha infância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô materno, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeeiros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó Euzébia Nolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, depois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, apertou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não causaria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Caçador de Pipas (The Kite Runner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão Khaled Hosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de Wazir Akbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma história comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gravador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvir a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendizado.



Imagem: Vincent's Room, Arles, 1888 - Vincent Van Gogh, Pintor Holandês (Pós-Impressionismo) -1853-1890 - (Van Gogh Museum, Amsterdam, Netherlands).

Ternura, talvez seja o que nos falta


Por Francisco Perna Filho











Cada um deve comportar os seus abismos, apesar da insuficiência de muitos, que, a reboque, carregam uma dor bem maior do que suportam e, por isso, precisam de ajuda, de compreensão, de quem lhes garanta o pão de cada dia e a doce palavra de consolo.

Talvez não saibamos, ainda, da nossa impotência. Do tempo que, célere, nos conduz. Das tragédias diárias que teremos de enfrentar. Da dor progressiva de quem chora a depressão. Do triste olhar de quem há muito perdeu a esperança. Pouco sabemos da nossa desumanidade, já que o nosso interesse é pelo corpo, pela forma, pelo poder e dinheiro.

Se pouco sabemos, é porque a nossa ignorância é bem maior do que a vontade de enxergar a miséria humana - tão próxima de nós, tão dentro de nós – colocar-se no lugar do outro. Ser mais solidário, altruísta, sensato e irmão. Ninguém vence o mundo sem vencer-se a si mesmo. Ninguém dá carinho sem conhecê-lo.

Nada do que fazemos passa incólume aos olhos da natureza. Toda ação gera uma reação, isso é mais do que sabido. As nossas inimizades são do tamanho dos inimigos que possuímos. Os nossos delírios, aos olhos alheios, não passam de loucura. Ama-se o aprazível, o que é belo, o fácil.

Quantos se julgam dono do saber, do conhecimento, do estabelecimento que dirigem, da repartição onde trabalham. Quantos maltratam por insegurança, por incompetência e, por que não dizer, por pura maldade. Quantos, por inveja, desprezam, ofendem e, covardemente, perseguem.

Amar aquilo que se faz é, no mínimo, compreensível, agora, aceitar o outro nas suas diferenças, nos seus delírios, na sua impaciência, são atitudes enlevadas, dignas de humanidade, de sensatez, de libertação.

O mundo, as artes e o saber não têm donos, estão aí para os homens de fé, de coragem, de determinação e sensatez, apesar dos abutres que rondam as nossas cabeças tentando uma brecha para sua devoção.

Ternura, talvez seja o que nos falta, ou pelo menos, um pouco daquilo que necessitamos para enfrentar a turbulência da nossa desumanidade. Juntando a ela um pouco de carinho, afeto, atenção e empatia, sem sombra de dúvidas, o mundo tornar-se-ia mais mundo e menos imundo.




Imagem: The Helping Hand, 1881 - Emile Renouf, Pintor Francês - 1845-1894

CRIAÇÃO


Dá ao rei, ó Deus, o teu dom de julgamento,

E ao filho do rei o teu senso de justiça

(salmo 72 (71) – O Reino do Rei Messias)






Francisco Perna Filho



A madrugada é louça mal acabada,

e o oleiro tenso arremata o sonho,

moldando o barro da própria existência.


Deus de si mesmo, julga-se

capaz das próprias inconclusões

ao acompanhar o martelar das horas que ainda estão por vir.


Ele só, sozinho só, ali

atento aos ruídos de sua rudeza,

nos arredores de si mesmo,

silencia em pó, em pós, no reino.



The Creation of Adam, detail of Adam , 1508-12 - Michelangelo Buonarroti (Painter) Pintor, Escultor e Arquiteto Italiano (Alta Renascença) 1475-1564 - Sistine Chapel Ceiling - (Vaticano, Rome, Italy).

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...